sábado, 17 de julho de 2010

A boneca de porcelana

Carol é espevitada. Do alto dos seus seis anos, nem o atropelamento que lhe tirou a perna direita a impede de ser o que é: uma criança.

Olhando a cristaleira, ao fundo de uma das prateleiras, atrás do velho conjunto de chá (herança de família de um tempo mais próspero), uma boneca à moda antiga: não de plástico polietileno, mas de delicada porcelana branca. Aquele brilho perláceo fascinou-a.

Equilibrando-se sobre uma das muletas, abriu a porta de vidro, afastou cuidadosamente a bandeja com as xícaras e chaleira, esticando o braço alcançou finalmente aquilo que por tanto tempo lhe passara despercebido.

Mas, ao fechar a porta, o apoio de sua outra muleta enroscou-se na borda do tapete desequilibrando-a. Carol teve sua queda amortecida pelo próprio tapete. Mas a boneca... A boneca voou pelos ares em pirueta de ginasta olímpica aterrissando sobre o assoalho duro de madeira.

O barulho de algo quebrando atraiu a mãe, Mercedes.

- O que você fez, filha? - repreendeu à menina (após perceber que estava bem).

A mãe pegou a boneca. A parte de cima estava intacta, mas as pernas haviam se estilhaçado. Mercedes lançou um olhar entristecido. Dirigiu-se ao cesto de lixo para se livrar do brinquedo avariado.

- Vai jogar a boneca, mamãe?

- Vou né, filha.

- Só porque está sem as pernas?

- É. 'Tá quebrada. Agora não prest... - nem terminou a frase. Foi correndo em direção à menina. Abraçaram-se. Em silêncio. Aquela comunhão não durou mais do que 5 segundos e 128 milésimos, mas parecia jamais acabar.

E, em um sentido, jamais acabou. Nem quando Mercedes se foi - já velhinha e tendo Carol lhe dado um casal de netos.

Completa-se agora a quarta geração - não na opulência de tempos idos, mas recuperados dos piores anos de magras vacas de eras até recentes - que guarda a cristaleira: agora com a boneca em orgulhoso destaque.

Upideite(22/jul/2010): Via @clauchow.

Os outros convites from AACD on Vimeo.

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