A Folha, a Abril, a BBC, o Guardian, China Daily e Al Jazeera adotam a forma Gaddafi; o Estadão, O Globo e o Clarín, Kadafi; Jornal Nacional, G1, Le Figaro e Le Monde, Kadhafi; o N.Y. Times, Qaddafi; a CNN, Gadhafi; La Nación, Khadafy; El País, Gadafi; La Repubblica, Gheddafi... Não há uniformidade em uma mesma língua, em um mesmo país, em veículos de uma mesma organização. E um mesmo veículo pode adotar diferentes padronizações ao longo do tempo (e haverá variações em diferentes textos de um mesmo período - já que são produzidos por diferentes pessoas que nem sempre estão a par da padronização ou que provêm de agências internacionais com padronização diferente).
Qual a forma correta de transliterar o sobrenome do ditador líbio ('قذافي')**? Todas. Não existe uma forma oficial ou universalmente aceita de se transliterar a escrita árabe para o sistema de escrita latina. Variações quase sempre ocorrem quando se tenta transliterar palavras de um sistema para outro, isso porque os fonemas presentes em uma língua nem sempre estão presentes na outra. Isso é válido inclusive para línguas que usam o mesmo sistema de escrita. P.e., Bush é lido aproximadamente como 'bâxi', mas como o sistema de escrita é o mesmo, não se altera de um texto em inglês para um em português. O japonês e o chinês possuem sistemas oficiais de romanização (transliteração para o alfabeto latino) - o roomaji e o pinyin. Mas isso porque o japonês é falado apenas no Japão como língua oficial e o chinês é falado predominantemente na China. Já o árabe é falado em 22 países como língua oficial.
A letra 'ق' (qaf) representa um som de 'q' enfático. No português não há esse fonema, ficando entre o /k/, o /g/ e o /q/. Pode parecer estranho à primeira vista, mas esses sons são 'vizinhos'. Essas consoantes são chamadas de plosivas ou oclusivas: repare que para pronunciar /k/asa, /g/omo ou /q/ueijo sua garganta se contrai interrompendo a passagem de ar (daí oclusiva) e liberando-a repentinamente (daí plosiva - de explosiva). E mais, /k/ e /g/ são ditas velares, a articulação* do som se dá no palato mole (véu) da boca; o som /q/ quase sempre é transformado em /k/, mas a rigor é uvular, a articulação se dá, sim, na campainha da boca. /k/ e /q/ são surdas (as cordas vocais não vibram), /g/ é sonora (bingo, as cordas vocais vibram). Assim, acabamos aproximando o som 'qaf': alguns puxam mais para o /g/, outros mais para o /k/ - na transliteração pode aparecer o 'h': 'gh' ou 'kh', indicando que o som não é exatamente 'g' nem 'k' (mas iremos ler sem o 'h' - /g/ ou /k/).
A letra 'ذ' (Dal) representa um som de 'd' duro, similar ao som do dígrafo 'th' nas palavras inglesas: 'then' ou 'that'. É uma consoante chamada de fricativa: os articuladores estão posicionados bem próximos entre si e o som é produzido pela 'fricção' do ar que passa entre eles - e dental ou linguodental: no início a língua - um pouco além da ponta - toca nos incisivos superiores. Difere do /d/ também porque não há oclusão da passagem do ar na garganta. Uma aproximação natural, em português, é com o 'd', mas alguns acrescentam 'h' ou outro 'd' para indicar que é diferente do /d/ (mas vamos pronunciar como /d/ de qualquer maneira).
A letra 'ا' (alif) representa ou uma parada glotal (uma interrupção com o fechamento da glote) ou um 'a' longo. No caso, um 'a' longo. Mas como um mesmo símbolo representa sons tão diferentes? Bem, em português temos o 'x' que representa vários sons: pei/sh/e, se/cs/o, he/cz/assílabo, e/z/ato, pró/s/imo.
A letra 'ف' (fa) é mais tranquila. Representa o som /f/. Mais tranquila não quer dizer tranquila de todo modo. Como o árabe não tem som /v/, quando eles fazem a transliteração de uma palavra com esse som, eles normalmente usam o, vocês sabem, 'fa'. (Se acham isso estranho, de novo, são sons 'vizinhos': ambos são fricativos - como o 'dal' - de articulação labiodental, os lábios inferiores tocam nos incisivos; a diferença é que /f/ é surda e /v/ é sonora. E mais, o que chamamos de /v/olkswagen, os alemães chamam de /f/olkswagen - eles representam o som /f/ com a letra 'v'. 'Volk', lê-se, /f/olk, significando povo, como em inglês é 'folk' com 'f' mesmo.) Além disso, 'fa' é derivada do 'pe' fenício (que deu no 'pi' grego e no nosso 'pê'): no árabe não há também o som /p/.
A letra 'ي' (ya) representa três sons: o /j/, o 'i' longo e o ditongo /aj/. No nome do ditador líbio é o 'i' longo. O som /j/ não é da nossa letra 'j', mas da consoante 'y' - sim, confuso: até porque, no português, tendemos a pronunciar a consoante 'y' como vogal 'i'.
Tudo certinho, então... epa, peraê. E entre a consoante 'qaf' e a consoante 'Dal'? Não tem letra nenhuma, de onde surge o 'a' ou o 'e'? No árabe, muitas vezes omitem-se as vogais, elas são deduzidas pelo leitor. Para o falante (ou melhor, escrevente) do árabe nada mais natural (infelizmente não é o meu caso) - aliás, é uma característica das líguas semíticas, no hebraico isso ocorre também.
Como dito, no árabe não tem o som /p/, mas no português felizmente temos, então, embora haja vários modos de transliterar 'قذافي', podemos perfeitamente substituir todos por três consoantes bem conhecidas (não, não é o Freie Demokratische Partei ou outra listada aqui).
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*A articulação é a conformação e o posicionamento relativo dos órgãos das vias aéreas externas à glote (o sistema articulatório): faringe, língua, cavidade nasal, dentes e lábios.
Para detalhes:
Portugiesisch: Interne Sprachgeschichte und Entwicklungstendenze
A produção dos sons na lígua portuguesa
The international phonetic alphabet
Arabic alphabet
**Upideite(01/mar/2011): O leitor ou a leitora terá observado, claro, que a escrita árabe é da direita para a esquerda.
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ResponderExcluirTakata, até onde sei, o fonema /q/ do alfabeto fonético internacional é estranho ao português. O som do nosso quê é /k/ mesmo. Assim, dizemos /ˈkejʒu/ e não /ˈqejʒu/.
ResponderExcluirSalve, Lima,
ResponderExcluirPor isso que escrevi: "o som /q/ quase sempre é transformado em /k/".
Embora a gramática normativa oficial (nossa tradição cartorial nos força esse tipo de aberração - uma gramática oficial), não reconheça em sua fonologia o /q/; na prática, ainda que de modo bem minoritário, ele está presente (não por outro modo, pela influência local de comunidades de origem árabe).
[]s,
Roberto Takata