sexta-feira, 27 de julho de 2012

Space quota exceeded 10

A tramitação do PLC 180/2008 está em seus momentos finais, mas parece que vai longe ainda. E muitas das críticas ao projeto são baseadas no desconhecimento de seu teor.

Há 10 dias, o amálgama publicou um texto contrário às cotas. O único detalhe relativamente diferente é que é um texto de uma pessoa negra. Sob esse aspecto é interessante - mas não é exatamente uma novidade, José Roberto Ferreira Militão, por exemplo, é um dos negros de primeira hora contrário às cotas.

O problema do texto no amálgama é que é eivado de erros de caracterização dos argumentos pró-cotas.

1. "O raciocínio pró-cotas é o seguinte. Dada essa injustiça histórica, nada mais válido e justo do que haver uma reparação de tal situação, pois existe uma dívida com o negro desde a escravidão, e uma necessidade urgente de que ela seja paga. O Estado deve ser o responsável para que se solucione estas distorções, e por isso a aplicação do sistema de cotas não é só justa, mas inevitável. Só pessoas racistas, preconceituosas e torpes não veriam justiça nas cotas."

A reparação histórica é apenas *um* dos argumentos pró-cotas (e, de modo mais amplo, das políticas de ações afirmativas). E não é defendida de modo unânime. Há pelo menos quatro classes de argumentos - não necessariamente mutuamente excludentes, mas não necessariamente defendidos em conjunto: a reparação histórica, a reparação da injustiça atual, a geração de diversidade e a divulgação para certos grupos excluídos normalmente.

Para mim, a reparação da escravidão é complicada pelo fato de os registros terem sido destruídos. Não há muito como saber quem da população atual é descendente ou não de escravos. Pode haver reparos caso a caso com a apresentação de documentos. Mas a discriminação atual é patente e é isso que precisa ser reparado. Pode ou não ser por meio de cotas. Embora, claro que as cotas sozinhas não sejam mecanismos suficientes.

E não é verdade que somente pessoas racistas e torpes sejam contra as cotas. Há as que são apenas desinformadas. Há as que são bem informadas, mas partem de pressupostos diferentes - como uma defesa da exclusividade da meritocracia no acesso ao ensino superior (embora haja argumentos que fragilizem essa visão da meritocracia - já que estamos partindo de situações desiguais na disputa por vagas). E, sim, há as que são racistas - não necessariamente torpes. E há as torpes.

2. "Os favoráveis às cotas argumentam que os negros são 51% da população, contra 49% de brancos, e que a desproporcionalidade da presença das duas etnias nas universidades é gritante. Esse argumento já traz uma falácia e adulteração tremenda. Primeiro, dados do IBGE mostram que a população se declara como sendo branca em sua maioria, 49%; em segundo lugar, pardos, 43%; seguidos dos negros, 7%."

A desproporção da representação não tem exatamente com o fato de os negros serem (ou não) a maioria censitária. No IBGE 7% correspondem aos pretos - e há bem menos do que 7% entre os universitários. Do mesmo modo que há bem menos do que 43% de pardos entre os estudantes de nível superior. E indígenas, que ninguém falaria que são maioria censitária, também são bastante subrepresentados na população universitária.

No entanto, dizer que negros representam a maioria da população não é falácia nem adulteração tremenda. As proporções de pretos e pardos são unidas sob a denominação de negros. Essa prática é comum nos estudos sobre questões raciais no Brasil, por exemplos:

"As categorias relativas à cor das pessoas, contempladas nesta análise, são branca, negra (formada pelos pretos e pardos) e outras (que inclui os indígenas e os orientais)." aqui

"Conforme convenção do IBGE, no Brasil, negro é quem se autodeclara preto ou pardo, pois população negra é o somatório de pretos e pardos." aqui

"Quanto ao quesito raça, ainda que os dados da PNAD e da NHIS considerem uma gama variada de cores/raças (no Brasil) e grupos étnicos (nos EUA), vamos nos ater, por razões de comparabilidade, aos grupos ‘Brancos’ e ‘Negros’, incluindo neste último os indivíduos que se declaram ‘Pretos’ e ‘Pardos’. Esta classe, ‘Negros’, criada a partir da junção de ‘Pretos’ e ‘Pardos’ tem mais afinidade com o conceito ‘Black’ utilizado nos EUA e na linha dos afrodescendentes, como reivindicam os movimentos negros." aqui

E não é para fins falaciosos ou adulterativos. É pelo simples fatos de que as condições dos dois grupos são similares - a discriminação racional no Brasil se liga muito ao grau de melanização da pele. Vários estudos do próprio IBGE mostram a similaridade das condições socioeconômicas entre pretos e pardos, p.e.: aqui, aqui, aqui, aqui, etc, etc. (No texto do PLC 180/2008, no entanto, usa-se 'negros' para denominar o que o IBGE considera 'pretos': a lei fala em negros, pardos e indígenas, e.g., art. 3o.)

3. "Outra questão ignorada pelos apologistas das cotas é que a ciência praticamente eliminou o conceito de raça, pois os genes de alguém de pele branca podem conter mais raízes africanas que os de um negro, e vice versa. Isso posto, o uso do critério 'raça' para definir cotas perde a validade e é um retrocesso científico. Alguns defendem que se deve ter em mente a dimensão social, pois as raças ainda têm aplicabilidade social. Porém, no Brasil, um país miscigenado, esse argumento deve ser relativizado. Obviamente, o preconceito e a discriminação existem por aqui; sabemos que, em certas ocasiões, postos de trabalho e lugares dentro da sociedade são negados a um sujeito devido à cor de sua pele. Mas esse fato não torna o Brasil um país racista em sua essência, pois aqui as etnias convivem de maneira razoavelmente próxima, com poucos conflitos de cunho racial, graças à miscigenação que constituiu o povo brasileiro desde a época colonial [...]"

Não é uma questão ignorada de que raça como conceito biológico não se aplique bem à situação humana. Tanto é que o sistema aqui é de autodeclaração e não um teste biológico. (Veja que critério socioeconômico como renda também não é biológico - quem é rico pode ter tido pais pobres ou ter sido ele mesmo pobre e vice-versa; há mistura de classes e o corte de quem é rico e quem é pobre é arbitrário.)

Agora, negar oportunidade de trabalho por questão da cor de pele torna *sim* o Brasil um país racista. Não se trata de um fato isolado, mas de um fenômeno social - tanto é que é mensurável na forma de exclusão socioeconômica. Menos oportunidade de emprego, trabalhos piores, menor remuneração...

Porém, as cotas (e as ações afirmativas) não dependem de haver ou não racismo (preconceito por conta de raça ou etnia atribuída). A questão é de se há ou não discriminação (exclusão socioeconômica correlacionada à raça ou etnia atribuída).

4. "E os descendentes dos japoneses que chegaram aqui no começo do século XX e foram vítimas de um preconceito quase tão intenso quanto os negros, e, sem incentivo de ninguém, apenas com a própria força, através de educação e disciplina, conseguiram ascender socialmente, terão que pagar?"

Na verdade o preconceito contra os japoneses foi muito *inferior* ao que sofreram e sofrem os negros. Japoneses nunca foram escravos - embora muitos tenham trabalhado em condições análogas à escravidão. Chegaram aqui dentro, justamente, de uma política oficial de embranquecimento da população brasileira (na outra ponta, dentro de uma política expansionista não-militar do Japão). A ascensão social foi possível justamente porque tinham direito à posse: podiam acumular riquezas, comprar e negociar propriedades. Coisa que durante a escravatura era virtualmente negada aos negros escravos.

Mas, sim, os japoneses e seus descendentes também terão que pagar. A discriminação é difusa. E muitos japoneses são racistas e contribuem com a discriminação por meio do preconceito - p.e. ao negar emprego para negros. Os próprios negros também acabam pagando - seus impostos também sustentam as universidades públicas. Isto é, a contribuição deve ser de todos.

5. "O que os defensores das ações afirmativas nunca lembram em seus argumentos é que em nenhum local onde as cotas foram implementadas houve alcance dos resultados desejados, e em vez de diminuir os conflitos e as distorções étnicas, elas as ampliaram. Thomas Sowell, renomado economista norte-americano e insuspeito de ser racista (ele é negro), estudou a questão das cotas nos EUA, na Índia e na África."

O estudo de Sowell é bastante falho como demonstra James Sterba. Os exemplos de outros países que não os EUA são falhos porque são cotas elaboradas por maiorias sociais (ainda que minoriais censitárias eventualmente) em benefício próprio. (Aliás, os erros de Thomas Sowell na crítica às ações afirmativas merecem uma análise mais extensa, que deixo para outra hora.)

5b. "Caso exemplar é dos EUA, onde a maior parte dos estados já eliminou as ações afirmativas, pois concluiu-se que eram ineficientes e catalisadoras de ódio entre grupos e classes."

Não é verdade. A eliminação de política de ações afirmativas do tipo cotas raciais ocorreu por decisão da Suprema Corte e não tem a ver com ineficiência ou geração de ódio, mas por entenderem os juízes (conservadores na maioria, diga-se) que elas só poderiam ser aplicadas em caso de correção de prejuízos anteriores (justamente a tal reparação histórica): isso, no entanto, obrigaria às empresas e universidades assumirem culpa anterior - o que abriria brecha para pesados processos indenizatórios.

6. "A real solução para o problema é uma só: melhoria do ensino de base (ensino fundamental e médio)."

Mais ou menos. É algo pelo qual todos lutam. No entanto, se há consenso, por que tão pouco é efetivamente realizado? Há questões bastante complicadas por trás. Mesmo eliminando-se disputas ideológicas a respeito: que tipo de educação é a melhor? a conteudista? a construtivista? - educação de qualidade envolve muita verba. E a briga pelos 10% do PIB na educação é encarniçada. E, acredite, os que defendem a adoção de cotas *defendem* também os 10% do PIB na educação - não todos, claro; do mesmo modo que nem todos os que são contra as cotas defendem aumento de gastos com educação.

De todo modo, não são objetivos excludentes. Como disse antes, boa parte dos pró-cotas são também favoráveis a mudanças e melhorias gerais no ensino básico. A melhoria da educação básica não é uma *alternativa* às cotas. São dois projetos distintos - um de mais longo prazo (tanto em se efetivamente conseguir fazer as tais melhorias, como em tais melhorias surtirem efeito) e outro de mais médio prazo (as cotas já estão implementadas e os efeitos estão a ser medidos).

7. "O sistema de cotas raciais beneficia parte dos negros, os que possuem arcabouço educacional para alcançar uma universidade, mas não alcança os reais necessitados, os pobres, que são de diversas etnias."

Mesmo que beneficiasse, já seria um ganho em relação a não ter cotas. Repare que o problema aqui não é a cota: remova-a, os pobres são beneficiados? Não.

Cotas raciais podem (embora não precisem) ser vinculadas a condicionantes socioeconômicas. O PLC 180/2008 prevê no parágrafo único do art. 1o que 50% das vagas sejam destinadas a alunos egressos de escolas públicas e que 50% das vagas de cotistas sejam destinadas a estudantes de famílias com renda per capita de até 1,5 salário mínimo.

Vários desses pontos já abordei anteriormente em postagens da série, como disse, à exceção do fato de o autor ser negro, não há nenhuma novidade maior na argumentação.

De passagem, em relação ao PLC 180/2008, a SBPC e a ABC emitiram nota conjunta contrária ao projeto. Embora sejam favoráveis às experiências com cotas - sociais e raciais - creem que o projeto atente contra a autonomia universitária. Particularmente não entendo que a noção de autonomia universitária (AU) abarque a decisão sobre o ingresso - se se abolirem os sistemas de vestibular e obrigar a adoção de um exame nacional único (como o Enem), isso não diz respeito à AU. A AU é sobre a estruturação didático-pedagógica, os cursos oferecidos, a destinação das verbas, priorização das área de pesquisa, e coisas assim. Concordo com a Dra. Nader de que as IES devem opinar sobre o perfil dos alunos a serem admitidos, mas não defini-lo.

A minha preocupação com o projeto é de outra natureza. É que julgo que ainda não temos dados suficientemente consolidados que demonstrem a eficiência (ou não) das cotas para os fins a que se destinam - qual seja a da inclusão social dos indivíduos beneficiados; e muito menos o melhor (ou os melhores) modelo(s) de cotas. Considero louvável a ousadia do projeto - ao estabelecer 50% das vagas para cotas -, mas essa mesma ousadia, na ausência de maior embasamento, torna-se um tanto temerária.

As IES estão estabelecendo suas políticas de ações afirmativas. Mais de 2/5 das IFES têm cotas atualmente. Cada uma tem um sistema. Com seus méritos, limitações e defeitos. A uniformização imposta pelo projeto pode não atender às necessidades específicas de cada comunidade e de cada IES. E corta essa riqueza de experimentos que podem nos fornecer dados importantísimos para a avaliação mais rigorosa dos efeitos das políticas de ações afirmativas, incluindo as cotas.

6 comentários:

  1. Talvez um pouco de chatice seja inerente a qualquer ativismo. Mas não vejo atitudes isoladas de ativistas como um impeditivo para as cotas.

    Na universidade, que é onde as cotas se aplicam, há muito pouca convivência, de modo que há poucos conflitos. Não tenho notícias de que nas universidades onde as cotas já vigoram passou a ocorrer conflitos étnicos. Mas se isso de fato ocorrer, as cotas podem ser revogadas.

    Quanto ao caso da UNB, não creio que um único erro deve desmantelar todo o sistema. Se fosse assim não poderíamos ter o SUS, ou a PM.

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  2. Salve, André,

    Grato pela visita e comentários.

    Sim, eventualmente haverá excessos de um e de outro lado. Mas a questão realmente deve se centrar nos argumentos, menos nas atitudes.

    Uma falha nos processos de implementação das políticas de ações afirmativas foi a ausência de mapeamento adequado da situação anterior. Como eram as relações raciais antes da adoção das AAs? Seria uma informação importante - ainda que não crucial.

    []s,

    Roberto Takata

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  3. Eu sou favorável às cotas e ainda não encontrei um argumento que me fizesse mudar de idéia. O fato do autor ser negro não muda muita coisa, a menos que uma pesquisa séria mostrasse que uns 90% dos negros são contra as cotas.

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  4. Salve, André,

    Valeu pela visita e comentário.

    É, se os próprios negros e índios fossem na maioria contra as cotas, não faria muito sentido.

    []s,

    Roberto Takata

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  5. "Japoneses ... Chegaram aqui dentro, justamente, de uma política oficial de embranquecimento da população brasileira"

    Isso é falso, a política de branqueamento da população brasileira incentivava apenas a imigração européia, considerava os orientais tão inferiores quanto os negros.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Imigra%C3%A7%C3%A3o_japonesa_no_Brasil#Necessidade_de_imigra.C3.A7.C3.A3o_no_Brasil

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  6. Willy,

    Não. Embora houvesse preferência por europeus caucasianos, os amarelos eram considerados uma alternativa ao embranquecimento - ao menos por parte dos eugenistas (outra parte, sim, considerava que apenas europeus caucasianos contribuiriam com o processo de branqueamento - excluindo até europeus do sul como italianos).

    "Ainda, a ideia de que o chim, figura que personifica a raça amarela, atenuaria a interferência negativa da raça negra facilitando o branqueamento do homem brasileiro."
    http://migre.me/atMkX
    ----

    []s,

    Roberto Takata

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