quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Zero tom de verde - capítulo 10


Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.

(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 9 aqui.)
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Flora respirava com dificuldade. As feras a cercavam e com seus olhares testavam seu controle. Um vacilo, uma nesga de hesitação era o que esperavam para avançar sobre ela e arrancar-lhe as vísceras, refastelando-se em festim bestial.

Ela girava, algo nervosa, o anel em seu dedo.

"Sei que ninguém aqui me conhece."

Não começara bem. Os olhares de desconfiança reprobatória dos acionistas na assembleia não eram disfarçados. Cada pergunta feita por eles eram flechas direcionadas em seu coração – derrubariam-na de um modo ou de outro. Não aceitariam um forasteira arrivista vinda do nada. Não importava que fosse a acionista majoritária.

"Por que deveríamos confiar a direção da empresa a você? Por que deveríamos confiar em você?"

(Olhou discretamente para o anel. Inspirou fundo.) Não deveriam. Ela conquistaria a confiança através do trabalho. (Tentaria.)

Sim, era a única mulher entre eles. (Que observação perspicaz. Aliás, e daí? Era isso que a tornaria menos apta?)

Sim, era jovem, muito jovem. Tinha metade da idade deles. (Na verdade, tinha um terço.) Mas várias grandes empresas haviam sido desenvolvidas por jovens.

"De fato, mocinha, muitas empresas são criadas por jovens. Mas uma vez que crescem, elas precisam também de uma direção madura. Empresas pequenas podem fazer apostas arriscadas. Uma com 70 anos de tradição e valor de mercado de 17 bilhões de dólares não pode se dar a esse luxo. É preciso uma administração segura. Alguém que conheça a fundo os detalhes das operações. Preferimos contratar um executivo experiente."

Se precisavam de alguém que conhecesse a empresa a fundo, de que adiantaria buscar uma pessoa de fora? Quem mais além dela sabia dos detalhes das operações de cada unidade. Quem ali havia estado nas fazendas do Pará, Rondônia, Mato Grosso? Nas granjas das cooperativas em Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul? Nas propriedades ao longo do São Francisco? Nos centros de processamento de carnes e derivados. Nos laticínios, nas fábricas de embutidos. E até em alguns centros de mineração de fosfato. Em oito meses, Flora tivera contato direto com cada detalhe [ela percebeu a malícia correndo na mente dos homens, mas mostraria a eles que não era apenas uma ninfetinha, um briquedinho de GC] que nenhum dos acionistas nem sonharia que existisse por trás da lucratividade que lhes garantia a valorização das cotas. (Na verdade, nem Flora sonhara que viria a conhecer isso enquanto tremelicava diante da RH. Vários detalhes chocantes, aliás, mas aquela não era a ocasião de tocar no tema.)

Sim, ela pretendia introduzir mudanças no estado de coisas. Isso deixava os acionistas particularmente inquietos. Passara o último mês e meio mergulhada na contabilidade da empresa. Não era capaz de destrinchar os detalhes financeiros da muita coisa, mas a mensagem geral lhe pareceu clara: sucessivas multas ambientais e trabalhistas carcomiam pelo menos 30% da lucratividade potencial das organizações GC. De relance, pareceu-lhe que os olhos dos acionistas brilharam com a perspectiva de ganho de tal ordem. Mas, se foi isso, foi um momento fugaz.

As coisas estavam funcionando do modo como eram. O conservadorismo confundia-se entre a prudência e a covardia. Repetiram, a empresa era grande demais para se meter em aventuras.

Flora queria bater o pé, mas as normas estatutárias da eleição do conselho e da presidência não lhe garantiam – mesmo na condição de sócia majoritária – sustentação para se bater contra o desejo consensual do restante daquela assembleia. O soft power apenas excitava o frêmito feral deles. Bateria o pau na mesa.

"Há duas alternativas, senhores. Ou me elegem agora como a presidenta da GC Foods e partilham comigo deste ideal de modernização organizacional [evitava a todo custo a expressão 'responsabilidade socioambiental'] ou serão obrigados a me vender suas cotas – não se preocupem, serei generosa, haverá recompensa de 50% sobre o preço médio negociado na bolsa nas últimas duas semanas."

Não se convenceram da ameaça. Era um blefe certamente. Pagariam para ver. Pagaram (e viram).

Dois golpes rápidos de aquisição agressiva bastaram. A operação foi bastante bem planejada pela banca regiamente paga dos advogados e especialistas mobiliários. Limpa. Tanto que a CVM, incitada a proceder a uma investigação, deu de ombros (não era um fechamento de capital, tampouco uma Evil Tag Along, era uma OPA  – oferta pública de aquisição – por aumento de participação corriqueira; hostil, mas corriqueira). Bem planejada, porém não sem riscos. A ideia básica era bem simples. Puro efeito dominó. Bastaria convencer um único cotista a abrir mão de sua parte – com o devido sobrepreço. Suficiente para implantar um sinal de alta. Os demais saberiam que a guerra estava perdida. Se não vendessem naquela janela, logo em seguida, os preços desabariam e eles arcariam com o prejuízo. Teriam que vender agora, e com ótimo lucro, senão amargariam um papel micado por longo tempo. A cada papel vendido, a pressão por nova venda aumentava mais e mais. A primeira peça não foi tão fácil de cair, mas caiu. O risco seria algum aventureiro desavisado tentar embarcar na onda. De fato, surgiu um que passou a adquirir os papéis na esperança de que a alta se mantivesse. A operação teve que ser interrompida (foi preciso só um boato a respeito do vazamento de informação privilegiada), dando um tombo no intrometido. Três semanas de espera para a completa tomada de Constantinopla. Ao menos da parte necessária de Constantinopla.

Flora seguira à risca as instruções do anexo testamentário de George. Inclusive quanto ao anel que portava. Não a aliança do casamento, mas um anel com um pequeno diamante artificial. As cinzas compactadas dos restos mortais de seu marido, a bem da verdade, a maior parte do carbono era mesmo do pesado caixão de carvalho. Urna lacrada, nem pudera ver pela última vez o rosto do amado, mas o teria para sempre consigo.

Conquistada a corja de abutres. Restava uma fera.

O leão continuava à solta. O acerto de contas era inadiável.
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(Capítulo 11.)

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