sábado, 6 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 8
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 7 aqui.)
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Dali da sala de direção a vista da redação era de tirar o fôlego. Parecia que o aquário era o lado de lá, não o lado de cá. Uma dúzia de peixinhos frenéticos nadando para um lado e para o outro: meio Marlin, buscando desesperandamente alguma coisa, meio Dory, esquecendo-se no meio do caminho o que era mesmo de que estava atrás.
Subitamente o vidro passou de transparente para translúcido. Uma persiana teria bastado, mas uma janela eletrocrômica sem dúvida causava uma maior impressão de "jornalismo na era digital".
"Obrigado por nos receber aqui, mas não acha que o jornalismo que vocês praticam muito superficial?", perguntou um dos jovens reunidos na sala.
"Sim", respondeu com toda a sinceridade o editor-chefe.
Os alunos do professor Real ficaram surpresos, inclusive Flora.
"É preciso ser assim", continuou. "De outra forma, nossos telespectadores não entenderiam. O brasileiro médio não consegue acompanhar temas muito complexos, então mastigamos tudinho."
"E não é tendencioso?", tornou o mesmo jovem que fizera a pergunta inicial.
Desta vez, um esperado "não".
"Mas e a edição do debate eleitoral?"
"Era nossa primeira experiência. Erros acontecem. É possível que tenhamos errado. Na verdade o erro nem foi nosso, foi de um funcionário. Um funcionário com ótimos serviços prestados a esta casa, mas que, como todo ser humano, é falível. Porém não houve distorção. Um candidato de fato se saiu melhor do que o outro e foi isso que nós mostramos. É como se, fazendo o compacto de uma partida em que o time A ganhasse do time B, colocássemos poucos lances de perigo do time B, mas o placar final não foi alterado, mostramos todos os gols."
"E o episódio da bolinha de papel?"
"Bolinha de papel?"
"Que jogaram no candidato..."
O editor rapidamente interrompeu, perdendo levemente, só levemente, o tom absolutamente cordato de até então.
"Não foi bolinha de papel. Nós demonstramos que atiraram uma pedra e ele de fato se feriu."
"Mas ele ficou um tempão sem qualquer reação depois de ser atingido. Só foi levar a mão à cabeça vários segundos depois."
"A opinião do perito que contratamos para analisar as imagens é bastante clara de que se trata de uma pedra."
"Mas o site de um professor de física mostra que a dinâmica do objeto na imagem é completamente diferente..."
"Qualquer pessoa pode escrever qualquer coisa na internet. Nós confiamos na análise de um perito, professor de renomada universidade. Por quê? Porque nós [disse enfatizando o 'nós'] não somos peritos. O que achamos ou deixamos de achar será apenas a opinião de um leigo, alguém que, ao contrário do perito, não conhece profundamente a área."
"A emissora de vocês não mostra muita violência?"
"Nós mostramos a realidade em nossos telejornais. A realidade é violenta. Não gostamos tanto quanto vocês de mortes, sequestros, estupros, roubos, espancamentos, ameaças, mutilações, terrorismos. Mas são coisas que, infelizmente, acontecem. Não podemos tapar o sol com a peneira e fingir que nada disso ocorreu. Claro, o clima fica pesado. E até por isso também fazemos reportagens especiais sobre coisas mais amenas: gente que está há bastante tempo casada com a mesma pessoa e continua apaixonada, projetos sociais que deram certo... 'O Brasil Tem Jeito' brinca com o famigerado 'jeitinho brasileiro', voltado para o bem.'"
"Mas digo da violência nos filmes e nas novelas. Ela não influencia as pessoas? Teve o atirador que se fantasiou de vigilante e saiu matando pessoas como no filme do herói que enloquece e..."
"Olha, esse não é meu departamento. De todo modo, as pessoas não vão se influenciar pelo que veem na TV. Elas são capazes de pensarem por si. Não vão sair matando pessoas só porque viram um filme. São pessoas desequilibradas que fazem isso."
"Mesmo assim..."
"E fazemos muita coisa boa. Além da série de reportagens que citei antes, temos o Especial de Solidariedade que arrecada milhões para programas de educação e cultura de crianças e jovens. E mesmo novelas exercem influência positiva. Basta ver como a minissérie 'Os Indignados' motivou os jovens a protestarem contra os corruptos e até derrubar o presidente."
"Que vocês elegeram..."
Flora pensou brevemente se não havia contradição entre se eximir de culpa da violência alegando que não influenciavam as pessoas, que eram entidades autônomas quanto a suas decisões, e se atribuir a mobilização dos estudantes no impichamento do presidente por meio de seus produtos audiovisuais. Não tinha mais, no entanto, oportunidade para isso.
"Muito bem, muito obrigado pela visita. A TeleUniverso está sempre aberta para receber os futuros jornalistas. Na saída vocês receberão um brinde e material informativo com os detalhes de nossas organizações." A esta altura a voz do editor-chefe era, claro, abertamente hostil.
Os alunos e o professor Real dirigiram-se para a van da faculdade. Flora os acompanhava quando foi parada por um chofer:
"Cássio?"
"Perdão senhorita. Preciso levá-la."
"Para o escritório? O que aconteceu?"
"Não. Para o hospital. É o senhor GC."
"Ai, meu deus, o que aconteceu?"
"Ele... o patrão... um leão."
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