quinta-feira, 2 de maio de 2013

O ECA protege menores sociopatas?

No facebook a neurocientista Suzana Herculano-Houzel adiantou o tema de sua coluna na Folha. Diz a cientista em um dos parágrafos:

"Lembrando: cometer um crime hediondo não é garantia de sociopatia (embora seja mais que meio caminho andado...), mas os especialistas sabem muito bem reconhecer os sociopatas homicidas. Acredito que o risco de colocar na cadeia um menor de idade não sociopata seria ínfimo - e com isso a sociedade ganharia proteção daqueles sociopatas que, como eles bem sabem fazer, se aproveitam da proteção atual que o Estatuto da Criança e do Adolescente lhes garante." (grifo meu)

É um equívoco comum. De fato, o ECA diz:
"Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
§ 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.
§ 4º Atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o adolescente deverá ser liberado, colocado em regime de semi-liberdade ou de liberdade assistida.
§ 5º A liberação será compulsória aos vinte e um anos de idade.
§ 6º Em qualquer hipótese a desinternação será precedida de autorização judicial, ouvido o Ministério Público."

O parágrafo 6o faz com que sociopatas diagnosticados - e indivíduos que apresentem grau de periculosidade incompatível com a vida em sociedade - *não* sejam liberados. São internados em hospitais psiquiátricos.

Diz a lei 5.258/1967:
"Art. 2º São as seguintes as medidas aplicáveis aos menores de 14 a 18 anos
II - se os elementos referidos no item anterior evidenciam periculosidade, o menor será internado em estabelecimento adequado, até que, mediante parecer do respectivo diretor ou do órgão administrativo competente e do Ministério Público, o Juiz declare a cessação da periculosidade.
§ 1º Completada a maioridade sem que haja sido declarada a cessação da periculosidade, observar-se-ão os §§ 2º e 3º do art. 7º do Decreto-lei número 3.914, de 9 de dezembro de 1941.
§ 2º O Juiz poderá sujeitar o menor desligado em virtude de cessação de periculosidade à vigilância, nas condições e pelo prazo que fixar, e cassar o desligamento no caso de inobservância das condições, ou de nova revelação de periculosidade."

Ou seja, para os fins a que se refere SHH, *não* há nenhuma necessidade de alteração dos dispositivos legais. Bastando sua correta aplicação.

Não considero um anátema a discussão da alteração da maioridade penal ou do tempo máximo de internação de menores. É uma questão presente e, devidamente encaminhada, salutar para a autocompreensão da sociedade: que sociedade queremos, como queremos tratar nossos jovens? Só acho que:
1) Ela deve ser realizada com base em argumentos embasados - sem distorções sobre o conhecimento científico a respeito da psicologia humana (não é o caso de que SHH tenha distorcido), sobre a realidade legal (é o caso aqui, credito que ao desconhecimento da legislação por SHH), das condições sociais, do sistema prisional, etc.
2) Alteração na maioridade penal dificilmente afetará o ponto que está por trás da discussão: a redução da violência criminal no país (no caso, cometido por menores). Para tanto creio que seria mais produtivo discutir dois aspectos: a modificação das condições sociais que levam um indivíduo a entrar na vida criminosa e a modificação das condições prisionais e pós-pena que levam um indivíduo a continuar na vida criminosa. Nosso sistema prisional é, nas palavras do Ministro da Justiça, medieval. Extremamente inadequado à recuperação dos encarcerados - com índice de reincidência de 70%. Compare-se com a Noruega, em que há apenas 20% de reincidência. Claro, não são apenas as prisões mais humanas, é a *estrutura social* norueguesa como um todo que contribui para tanto a baixa criminalidade em geral - como baixa desigualdade social, um estado de bem estar social eficiente, um sistema educacional adequado, etc.

Upideite(02/mai/2013): Discordo também que o risco de se colocar na cadeia menor não sociopata seria ínfimo. Como aponta Ogloff 2004 (para personalidades antissociais em geral): "As currently construed, the diagnosis of antisocial personality disorder grossly over-identifies people, particularly those with offence histories, as meeting the criteria for the diagnosis." ["Como atualmente concebido, o diagnóstico de desordem de personalidade antissocial identifica pessoas em grande excesso, particularmente entre aquelas com histórias de delitos, como atendendo aos critérios diagnósticos."]

Upideite(02/mai/2013): Outro ponto em que discordo de SHH. Se sociopata não deixa de ser sociopata, prender para *punir* (como ela sugere em outro parágrafo do mesmo texto) não faz sentido. Seria apenas vingança. A justificativa tem que ser - como é legalmente - o afastamento do convívio social pela periculosidade que representa.

Upideite(07/mai/2013): Coluna da SHH sobre prisão de adolescentes sociopatas.

4 comentários:

  1. Para os especialistas o objetivo da pena pode ser ressocializar o preso, mas para a população em geral o objetivo principal parece ser punição e isolamento do criminoso.

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  2. Salve, André,

    Obrigado pela visita e comentários. Sim, a noção popular de punição. Pelo mesmo motivo, as pessoas batem em móveis nos quais deram topadas. E, dizem, na Idade Média, animais eram julgados caso ferissem humanos.

    Claro que, no caso de sociopatas, há uma certa distância em relação a animais não-humanos e objetos inanimados.

    []s,

    Roberto Takata

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  3. Roberto,

    Por curiosidade, na sua opinião, se houvesse um meio de antever com certeza absoluta que o criminoso não voltaria a cometer o crime, ele ainda deveria cumprir pena ou a certeza da recuperação poderia extinguir a pena?

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  4. Salve, André,

    Dependeria de vários fatores como:
    - o criminoso é consciente?
    - há efeito de inibição de crimes em outras pessoas?
    - quais as naturezas do crime e da pena?

    Crimes contra o patrimônio perpetrados por um imputável, por exemplo, não deveria levar à extinção de pena de ressarcimento.

    Crimes contra a pessoa. Digamos, homicídio. Se a prisão do criminoso tem um efeito didático sobre outras pessoas de modo a diminuir sua propensão ao crime, então a pena deve ser aplicada.

    Agora, se a prisão do criminoso não tem qualquer efeito, não haveria nenhum motivo para sua prisão, a não ser a satisfação do sentimento de vingança. Mas esse cenário é puramente ficcional pelo que sabemos.

    []s,

    Roberto Takata

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