terça-feira, 29 de outubro de 2013

Ofensas e processos

A indignação da vez é pelo processo que uma técnica de enfermagem pernambucana pretende abrir contra o humorista da Rede Bandeirantes, Danilo Gentili, por danos morais.**

Pelo que se sabe, houve uso sem autorização da imagem da pleiteante, e ela se sente lesada pelas consequências das piadas feitas no programa "Agora É Tarde" em relação ao fato dela ser uma importante doadora de leite materno.

Quem decide se a demanda é embasada ou não é o sistema judicial brasileiro. Com todos os seus defeitos e eventuais méritos.

Mas há um tribunal paralelo nas mídias sociais, um tribunal moral. Alguns condenam qualquer "ameaça" de processo como uma tentativa de tolher a liberdade de expressão de humoristas - se alguém não gostou de uma piada, teria direito apenas de xingar, reclamar, ou responder com outra piada.

O ponto da liberdade de expressão tem um apelo bastante forte, sobretudo pelo seu vínculo com a questão democrática. O problema de se elevar a liberdade de expressão a um valor absoluto é que ele se baseia fortemente em um mundo totalmente idealizado. Como se todo mundo tivesse a mesma liberdade de expressão, o mesmo grau de acesso aos meios de comunicação (e a internet cria uma certa ilusão de que um simples blogue independente tem o mesmo poder do que um canal de TV aberto), o mesmo poder econômico, a mesma habilidade retórica... e que todas as pessoas são perfeitamente racionais e capazes de fazer um julgamento equilibrado. O mundo real é muito longe disso. Os meios de comunicação em massa são oligopolizados, o acesso aos recursos de comunicação não é nem próximo de uma distribuição homogênea e, se as pessoas fossem todas racionais e equilibradas, bem, pra começo de conversa não haveria questões relativas à liberdade de expressão - todos tenderiam a concordar em quase tudo.

Como tal mundo ideal está muito além do nosso horizonte visível, nosso ordenamento jurídico reconhece uma série de restrições à liberdade de expressão - por exemplo, não se pode fazer uso dela no anonimato (eu meio que discordo desse aspecto, mas, enfim, é a lei, é a constituição), a liberdade de expressão não cobre o direito àa expressões de preconceitos de raça, idade, origem, gênero; não cobre o direito à ofensa... o caso em questão.

No meu tribunal moral, tendo a adotar uma visão consequencialista no julgamento de uma ofensa. Bem simplificadamente, ela comporta três eixos (figura 1):

Figura 1. Eixos de julgamento moral de uma ofensa.

Ofensa aqui pode ser entendido em um sentido mais amplo - não apenas um xingamento ou ofensa moral, mas inclusive ofensas físicas, patrimoniais e outras.

Quanto maior o poder do agressor, mais grave considero a consequência da ofensa. Se um moleque de rua me chama de "fdp", pra mim, tem menos potencial ofensivo do que se um político me xinga da mesma coisa.

Quanto *menor* o poder do agredido, mais grave considero a consequência da ofensa. Xingar um garotinho na rua é pior do que xingar um político.

E, claro, há ofensas e ofensas. Chamar de "bocó" é menos grave do que dizer que alguém é um "ladrão safado corrupto"; atirar em alguém é mais grave do que dar um pescotapa. Chamar de "bocó" em uma mesa de bar é uma coisa, pior é chamar de "bocó" em uma rede social aberta.

Claro que o gráfico da figura 1 é mais metafórico - não é possível uma valoração numérica precisa e sem nenhuma ambiguidade. No entanto, como metáfora ilustra bem, ainda que de modo bem simplificado, meu processo subjetivo e não plenamente consciente de julgamento moral em relação a uma ofensa.

É por isso que me sensibilizo pelo pleito da técnica de enfermagem. Há ofensa - no sentido amplo - tanto no uso não autorizado da imagem, como nas piadas proferidas - embora eu considere o potencial ofensivo de grau médio (mais graves são barbaridades que ela sofre nas ruas de Quipapá); e isso é potencializado pela diferença no grau de poder político, midiático e socioeconômico entre a ofendida e o ofensor.

Em uma pseudomatematização, seria:

Seja X o poder do ofensor; Y, o poder do ofendido e Z, a gravidade da ofensa; a consequência da ofensa D poderia ser dada por D=[X2+(1/Y)2+Z2](1/2).*

Aí D poderia ter seu valor cotejado contra outros valores como a diferença entre a liberdade de expressão do ofensor e do ofendido.

*Upideite(30/out/2013): Mas talvez fosse melhor a pseudofórmula D=(X.1/Y.Z)(1/3). Na fórmula de distância trigonométrica, haveria potencial de consequência da ofensa mesmo quando a gravidade fosse zero (por exemplo, um elogio - embora um elogio possa mesmo causar danos).

**Upideite(30/out/2013): Em primeira instância, a juíza da 2ª Vara Cível de Olinda, Cíntia Daniela Albuquerque deu ganho de causa à técnica de enfermagem.

Upideite(04/fev/2014): Até o momento dois recursos do humorista e da emissora foram negados. A mulher acabou mudando de cidade pelas piadas constantes.

5 comentários:

  1. Quando o terceiro eixo é colocado para trás eu sempre penso na figura como plana e o terceiro eixo a 45°. Quando o terceiro eixo é colocado para frente aí eu imagino a figura como 3D. Sou só eu?

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  2. Salve, André,

    Provavelmente mais gente também. Mas como de qualquer forma é uma figura que não é autoexplicativa, parece-me melhor a forma compacta - deixar o terceiro eixo pra "frente" ocuparia mais espaço.

    []s,

    Roberto Takata

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  3. Embora seja dificílimo de mensurar, quando a ofensa gera algum dividendo para o ofensor eu penso que a indenização ao ofendido deveria ser estritamente maior que esse dividendo.

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  4. Acho que eu plotaria Y com seu valor decrescente a partir do zero e calcularia a distância a partir da origem usando o valor negativo de Y (que, claro, elevado ao quadrado, daria na mesma que Y). Ficaria um veto saindo "para baixo" a partir da origem e crescente nosoutros dois eixos e a "ofensa" seria calculada por uma distância euclidiana simples.

    Quanto ao processo, mesmo considerando que a piada do Gentili foi de péssimo gosto, acho que esta coisa está virando um industria do malno Brasil. Na prática, chama-semuito mais atenção à piada que se preferia que não tivesse sido veiculada. mas, claro, há o pleito por uma vultosa quantia em dinheiro e daí, o interesse "moral" torna-se secundário.

    Ah... um bom motivo para se usar o valor negativo de Y pode ser o fato de que,quando osdois (ofensor e ofendido) são poderosos, os "danos" também crescem muito na mídia. Vide o processo dae Wanessa Camargo contra o Rafael Bastos por um comentário que teria passado batido ou sido rapidamente esquecido, não fosse a "valorização" do episõdio, pela mídia, devido ao processo.

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  5. André, JRLima,

    Valeu pela visita e comentários.

    @André,

    Sim, na questão da reparação de dano seria algo a se considerar. Aqui é mais um julgamento moral do que propriamente civil/criminal.

    @JRLima,

    Não vejo como uma indústria. Acho saudável que as pessoas vão à Justiça buscar reparação. A Justiça é que deve ser equilibrada e verificar a procedência da demanda. Se detectar má fé pode punir o litigante.

    Aqui é mais uma questão moral. É moralmente mais condenável quanto maior a disparidade de poder entre o ofensor e o ofendido - quando o ofensor tem mais poder do que o ofendido.

    []s,

    Roberto Takata

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