quarta-feira, 23 de junho de 2010

Manifesto pela correção política

Ok, não é um manifesto. Mas ouvindo o excelente podcast Dispersando do Scienceblogs Brasil sobre Humor, flagrei-me um tanto incomodado com críticas que considero injustas ao politicamente correto.

Hoje todo mundo critica o politicamente correto que nem sei bem onde recai o patrulhamento denunciado quando se diz, orgulhoso, que se é politicamente incorreto. O patrulhamento é tão baixo que a maioria das pessoas se sentem seguras em dizer isso.

Esse estado de coisas ganhou força lá na década de 1990, mas, ao contrário do que a maioria pensa, não pelo aumento da proeminência do politicamente correto, e sim pelo aumento da reação do que chamarei aqui de politicamente incorreto - a contrarreação conservadora à correção política. (Mais ou menos nos mesmos moldes da contrarreação conservadora à implantação das políticas de ações afirmativas no Brasil atualmente.)

Infelizmente a imagem de um bando de carolas censurando nomes feios pegou. Não levantarei o dedo em riste contra ninguém - eu mesmo embarquei de primeira onda contra o politicamente correto.

A correção política não se restringe a simplesmente uma tentativa de renomear as coisas. Há esse aspecto e há exageros. Não se jogue, porém, o bebê junto com a água da bacia.

Sim, nomes importam
Disso se sabe há muito. Não por acaso, monarcas dão-se títulos grandiloquentes: Alexandre, o Grande; Guilherme I, o Conquistador - nenhum deles irá se autodenominar: Sarrus, o Néscio; Luzer, o Perdedor. Isso se dá nas marcas das empresas e produtos. Ao contrário do que poetizava Shakespeare em Romeu e Julieta, uma rosa com outro nome pode não exalar o mesmo doce olor. Ninguém se diz abortista, chama-se pró-escolha - e isso é deliberado, quem seria contra a liberdade de escolha? - os anti-aborto chamam-se, pró-vida, quem seria contra a vida? Negacionistas climáticos chamam-se "céticos".

Ao se usarem nomes já carregados de estigmas: aidético, leproso, tísico... essa carga é, sim, transferida. Nomes não são neutros, palavras não são neutras: eu sou perseverante, tu és obstinado, ele é casmurro... um mesmo ato pode ser visto positiva ou negativamente, e palavras carregam esses conceitos valorativos. Palavras machucam. Podem incitar violência. Podem influenciar as atitudes e pontos de vista. Word is sword, a palavra é mais forte do que a espada - não chega a tanto, mas tem poder. (Não chegam a curar câncer ou coisas do tipo, infelizmente.)

Quando o termo "negro" nos EUA - ou "preto" aqui - está contaminado de carga negativa, pode-se optar por se tentar resgatar ou cooptar o termo: a torcida palmeirense internalizou o antes ofensivo "porco", neutralizando-o; ou buscar um termo mais neutro - ou até positivo: não se espera que a torcida são-paulina aceite o "bambi". O movimento negro nos EUA, preferiu o termo "black", e, no Brasil, o termo "negro" (interessante a simetria quiasmática). Há alguns que carregam uma conotação ainda mais neutra e "acadêmica'" como "afro-americanos" ou "afro-descendentes". Quando se está fora do grupo pode soar como algo cosmético, mas quando se é vítima, isso pode fazer diferença substancial na autoimagem.

Eventualmente o termo pode se desgastar e readquirir uma conotação negativa e será preciso procurar outro.

Não, não são apenas os nomes
Renomear coisas é um dos aspectos menores da correção política. Campanhas de esclarecimento à população contra a discriminação invisível e inconsciente: quem anda normalmente não sente a diferença que fazem as rampas de acesso na mobilidade (pode até achá-las um tanto incômodas). Mudar a legislação para impedir atos discriminatórios: não pode usar o elevador social só porque está com roupa de doméstica?

A correção política se traduz em outro nome: justiça social. Quem será contra? A correção política busca a inclusão social de grupos minoritários, sua integração efetiva à sociedade. Acesso à educação, aos bens de consumo, aos serviços sociais, proteção à sua integridade física e moral. Ao pleno exercício de umas coisinhas chamadas: direitos humanos e garantias constitucionais.

A correção política também pode ser traduzida por outro nome: cidadania. Cidadania de quem é politicamente correto - o respeito à alteridade, a proteção aos necessitados -, e a cidadania dos próprios sujeitos dos grupos minoritários - o resgate de sua identidade e do pertencimento à sociedade.

Passa por pequenas coisas como não jogar lixo na rua, valorizar o comércio de bairro, usar transporte coletivo e segue até grandes questões de direitos humanos, discriminação social, meio ambiente... Claro que, criada pela Nova Esquerda (nova à época, já que surgiu na década de 1970), a questão da correção passa em muito pelo ponto de vista progressista (o Brasil é um lugar estranho, temos um Partido Progressista que é uma das coisas mais reacionárias, um Democratas que acolhe os que se locupletaram na ditadura, um PTB que de trabalhista não tem nem sombra e um PSDB cada vez menos social-democrata), mas, de novo, quem há de ser contra os direitos das mulheres, dos negros e das demais minorias sociais? Quem há de ser contra a preservação dos recursos naturais?

Sim, sempre tem uns - novamente sem eufemismos - babacas que não entendem, como estes e este, que não enxergam a diferença entre ser minoria e ser maioria. Ou, nas palavras de Renan Picoreti (do n-Dimensional): "Tem coisa mais ridícula que membro de maioria social se fazer de perseguido?"

Correção política não é chatice. Não mais do que respeitar os outros é chatice.

Ser politicamente incorreto é achar que homem que é homem bate em mulher (pode até não saber porque está batendo, mas ela saberá porque está apanhando), que lugar de preto é na cozinha e só pode tomar laranjada quando sai briga na feira, que os animais podem ser torturados à vontade, que veado tem mais é que apanhar pra aprender a ser gente, que os pobres que se explodam, que véios, doentes mentais, aleijados e outros incômodos têm mais é que ficar escondidos em casa e não enfeiando as ruas e pedindo acesso e mobilidade para locais públicos; é defender o "estupra, mas não mata" ou "se o estupro é inevitável, relaxa e goza", afinal se a mulher é estuprada, foi porque provocou... Se você discorda de todas essas barbaridades, parabéns, você é politicamente *correto* - apenas discorda do nome, pois caiu no trote dos conservadores, WASPs e ranhetas (nessa ordem), da década de 90 do século passado: os pápis dos atuais neocons (incluindo a direita religiosa americana).

6 comentários:

  1. Ótimo comentário, Takata. Concordo 100%.

    Mas acho que o tópico da discussão era se o politicamente correto implica na morte do humor.

    Dado que não se pode fazer piada de portugues, loira, negro, japonês, nordestino, corno, viado etc, o que sobra? Piada de papagaio? Piada de politico?

    Talvez. Ou seja, o politicamente correto propoe que o humor deve ser usado apenas para criticar os poderosos da sociedade: politicos, homens brancos ricos etc. É uma tese defensável. Acho que pidada de madame não pode, por ser antifeminista. Ah sim, e não pode usar palavrão em piada também...

    Em todo caso, a raiz do humor é a transgressão, o transgredir do que é socialmente aceitavel. De modo que o politicamente correto, embora profundamente defensável, implica em sua negação dialética: ao proibir certos atos, aumenta o campo do que é possível transgredir. Estamos longe da época do "É proibido proibir..."

    Não vejo solução para o caso. A utopia nunca se realizará, porque no dia em que uma geração implantar a Utopia na terra, seus filhos adolescentes começarão a destruí-la. No inicio, usando o humor. Apenas pelo desejo da transgressão. Essa é a sina de todo puritanismo, infelizmente... Não que eu concorde com isso, mas fazer o que?

    PS: acho que nossos amigos do podcast não iriam gostar de piadas sobre cientistas e ateus, não é mesmo? Tem uma ótima aqui:

    http://comciencias.blogspot.com/2010/06/o-problema-do-ateismo-sao-as-mulheres.html

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  2. Salve, Kino,

    Não é q não se possa fazer piada com grupos minoritários. O que não se deve é criar um clima de opressão a esses grupos - incluindo piadas ofensivas, que de piada só tem para os q não pertencem a esses grupos.

    Mas veja que não há transgressão nenhuma em se bater em cachorro morto. A grande *piada* da *in*correção política é fazer de conta que a correção política *é* uma realidade, sendo q na verdade o politicamente incorreto é a ordem vigente. Dá ares de transgressão a algo absurdamente conservador.

    Como comentei lá no Dispersando, Os Simpsons, p.e., *não* são exemplo de humor politicamente *in*correto - mas de humor politicamente correto. (Veja como se pode ser engraçado, inteligente e policamente correto - ao mesmo tempo.)

    Discordo que isso chegue a ser um puritanismo. Não se está a dizer que seja um código de conduta moralmente superior - é perfeitamente possível defender a correção política com bases exclusivamente egoístas ou monetárias, p.e.

    Tem piadas sobre cientistas q são engraçadas. Eu mm gosto da maioria das piadas sobre japoneses (90% sobre pênis, 10% sobre fala enrolada): mas até aí japoneses e descendentes não são minoria social, então não me sinto particularmente oprimido.

    []s,

    Roberto Takata

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  3. Como descendente de japones, acredito que somos uma minoria sim, e nossos pais e avós sofriam com as piadas. O que compensou é que os descendentes ascenderam à classe media, e foram retratados como esforçados e estudiosos (um esteriótipo que já não descreve meus atuais alunos (quasi-) japoneses.

    O que eu quis dizer é que a melhor maneira de se avançar na justiça social é evitar a reação, de forma inteligente. Ou seja, os exageros, o discurso idiosincrático (como pode ser visto no texto sobre surdos, http://redalyc.uaemex.mx/pdf/275/27512149012.pdf ) etc despertam reações e anulam os esforços. Já uma abordagem mais inteligente, mais adiabatica talvez, poderia apresentar mais efeito, ou pelo menos evitar retrocessos. O pendulo precisa ser critico, em vez de oscilar para o outro lado.

    Como explicar a força do Politicamente Correto (PC) nos EUA, que derruba reitores de Harvard, acaba com o James Watson etc, e sua menor presença na Europa?

    Minha explicação é que, culturalmente, os EUA herdaram teses puritanas dos evangélicos. Ou seja, mesmo os liberais e esquerdistas não conseguem escapar do quadro puritano onde foram criados, e usam uma politica puritana para alcançar seus fins.
    Para o sentido de puritanismo, ver wikipedia.

    Um exemplo de exagero que foi muito discutido na midia é o casal de surdos que optou por um aborto ao descobrir que o feto não era surdo.
    Esse tipo de marcação de posição não ajuda a causa dos surdos.

    Eu concordo que os surdos devem lutar contra a discriminação. Mas imagine um gedanken experiment: uma pilula magica que cura a surdez, a cegueira ou o nanismo. Será que eles não deveriam tomar a pilula porque isso seria uma traição 'a sua classe?

    Eu uso óculos, mas não me considero um traidor da etnia dos miopes... Mas sei de gente que não usa óculos e acha que exigir óculos para a carteira de motorista é uma opressão dos normais.

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  4. A geração dos issei constituiu-se em uma minoria. Hoje não é mais, não há restrição de acesso aos bens sociais para os japoneses (nesse quesito estamos bem acima da média).

    Como disse, há exageros. É perfeitamente possível criticá-los sem com isso ter que negar a validade da correção política em seu alvo central.

    Não creio que os casos do reitor Summers ou da aposentadoria de Watson sejam demonstrações da vitalidade política do PC nos EUA. Há todo um contexto por trás: Summers já havia criado indisposição entre os professores, foi apenas a gota d'água. Watson era um estorvo - e já estava mesmo pra se aposentar. Além disso, a questão do racismo nesse grau já foi bem internalizado como negativo na cultura ocidental. E eventualmente haverá vitórias isoladas aqui e ali.

    Se está pensando no puritanismo em seu sentido mais literal, aí é que o PC não se encaixa. O puritanismo é veementemente contrário à homossexualidade, por exemplo. O papel da mulher é bem demarcado e restrito. Que tem que lidar com isso é claro: é a cultura instalada lá. Mas isso não quer dizer nem que emule nem que se alicerce no puritanismo. (Embora sempre surjam variantes mistas.)

    []s,

    Roberto Takata

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  5. Por puritanismo entendo a imposição de um código moral (e não apenas de um código legal) via intensa pressão social. Não importa as particularidades do codigo, se originario da direita ou da esquerda.

    Isso é bem conhecido nos EUA. Mesmo entre os liberais, eles reconhecem que existe uma ala do partido puritana, que eles chamam de teodemos. O que acontece é que o discurso PC é defendido principalmente pelos teodemos, ou fundamentalistas liberais.

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  6. Kino,

    Não se trata de imposição. Tem patrulha e isso é criticável. Mas a questão é de convencimento.

    Não diria que os mórmons republicanos sejam os principais defensores do PC. Talvez eles defendam o discurso PC, mas a correção política é muito mais do que discurso. (Q aliás, entre eles é coisa de mudar French fries por Freedom fries.)

    Só pensar na correção política como justiça social e termos correlatos. A única diferença é que os conversadores conseguiram criar um espantalho do PC.

    []s,

    Roberto Takata

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