Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 11 aqui.)
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Sangue.
A memória de Simba não alcançava seus anos iniciais em um circo itinerante já algo decadente. A trupe era tocada por uma família de origem romena, provavelmente com raízes ciganas. Na economia de equipamentos, o pai leão e a mãe tigreza de Simba dividiam a mesma jaula. As condições não eram das melhores, tanto que, logo após seu nascimento, ambos vieram a morrer. O filhote foi criado a leite de vaca. Cresceu em meio a um público minguante. Os dias eram cada vez mais difíceis. Já não havia tantos terrenos baldios em que o circo se instalar em suas temporadas nas cidades do circuito. As exigências de segurança, higiene e condições de trabalho eram maiores ano a ano. Os donos desfizeram-se dos cavalos, demitiram o pessoal. Conseguiram lotar o elefante em um zoológico particular. Restava Simba.
Sangue.
A memória de Flora não alcança seus anos iniciais. Nascida em uma cidadezinha do interior paulista na região de Presidente Prudente, não chegou a conhecer o pai, morto em um conflito agrário. A mãe mudou-se para a cidade junto com os filhos, criou-os com a renda da venda de quitutes e com a ajuda de um anônimo benfeitor, que custeou os estudos da filha caçula. A mãe ficou feliz que Flora haveria de se mudar para longe, não por algum sentimento desnaturado, mas temia pela segurança da pequena encrenqueira.
Sangue.
Simba representava uma despesa diária em carne que significava arroz a menos na panela da família Nicolita. Quando o Conselho Tutelar local ameaçou reter as crianças, o patriarca Stefan decidiu que se livrariam de Simba.
Sangue.
Flora vivia metida com um grupo ambientalista. Um grande empreendimento instalaria uma nova fábrica próxima a uma área de manancial. O protesto em algum momento fugiu ao controle. Tiros cuja origem jamais foi esclarecida: se de jagunços armados, de policiais da tropa de choque, de algum manifestante ou membro da massa popular que se aglomerava. Um acertou em cheio o peito do namorado de Flora. Uma garota chorando, coberta de sangue do namorado, protestando por justiça na TV em cadeia nacional foi o suficiente para que o empreendimento fosse engavetado. Quando ela passou no vestibular de uma faculdade na capital, a mãe ficou mais do que aliviada. Preocupada quanto às despesas, e, então, aliviada quando o benfeitor avisou por intermediários que custearia também os estudos e a moradia, depois preocupada quando Flora recusou-se a receber qualquer valor da mãe, ela mesma iria se sustentar, novamente aliviada quando a filha conseguiu um bom emprego.
Sangue.
Stefan Nicolita estava resoluto. Daria cabo ao leão – pra todos os efeitos consideravam Simba um leão. Na manhã seguinte, no entanto, a jaula estava aberta e Simba não estava ali.
Sangue.
Kátia foi uma amizade instantânea. Logo no primeiro dia da faculdade. Convidou Flora, que morava em uma pensão, a ir morar em seu apartamento, bem mais perto. Foi Kátia também quem indicou a vaga para a GC Foods. Mais do que indicou, quase que a obrigou.
Sangue.
A novilha havia morrido com a picada de uma cobra. Simba não sabia. Sabia apenas que era uma refeição fácil. Não comia há mais de uma semana – não que soubesse contar os dias, apenas sentia o tamanho da fome. Aparentemente não sabia também direito o que realmente era uma refeição fácil: enquanto tirava um naco da carne foi avistado pelos peões da fazenda. Assustado refugiou-se no bosque.
Sangue.
Três semanas de intenso treinamento em tiro de precisão. Deveria ser fácil: carregar, mirar, atirar. Nada menos verdadeiro. Verificar as travas, o estado da munição, conferir os mecanismos, a carga de propelente, abrir a câmara de munição, compensar os desvios do vento e a queda pela gravidade, sincronizar a respiração e os batimentos, meditação. Aluna dedicada – até mais do que às aulas de jornalismo – melhorava a olhos vistos a cada dia. Não estava ainda totalmente preparada, mas o acerto de contas era inadiável.
Sangue.
A água era refrescante. Então, uma pontada. Simba se assustou, voltou para dentro da mata. A agitação apenas ajudava ao cloridrato de xilazina atingir os vasos sanguíneos e se espalhar pelo corpo, alcançando seu sistema nervoso. Competindo pelos receptores de alfa-2-adrenérgicos, a depressão do sistema nervoso central sobreveio. Uma leve bradicardia, imagem embaçada e finalmente o mundo sumiu. Quando reapareceu, havia homens vindos de não se sabe onde, fortemente armados, um carro com uma jaula, um extenso campo aberto e árvores.
Sangue.
As pupilas estavam dilatadas. O coração, disparado. A pele, lívida. As narinas, expandidas. A ponta dos dedos, fortemente umedecida com o suor. A criatura vinha em sua direção. Os pelos da juba espalhavam-se aumentando ainda mais seu tamanho aparente. Flora largou o rifle a gás descarregado. Levou a mão direita para trás. Encontrou o que procurava. Doze tiros. Dois certeiros.
Sangue.
Simba caía pela segunda vez. Duas pontadas. Mas agora a dor aumentava insuportavelmente. Até perder novamente a consciência. Para nunca mais recuperá-la. Sangue, sangue se esvaía de Simba pelos dois rombos em sua cabeça.
Sangue.
Flora tremelicava. Seus braços ainda se estendiam para a frente com a arma apontada para o leão, ligre ou o que quer que fosse aquela criatura. Mas se, como temia, ela se levantasse, Flora não conseguiria disparar mais nenhuma bala. O pente estava vazio. Sangue, sangue banhava seu cérebro.
Sangue.
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(Capítulo 13.)
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