sábado, 20 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 14
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 13 aqui.)
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Pop. Pop. Pop.
Os motores de 180 cv propeliam os tratores para diante. Desregulados, a cada premida do acelerador, cuspiam em baforadas uma espessa nuvem preta de fuligem do diesel apenas parcialmente queimado. Os veículos conectavam-se entre si por uma pesada, e algo enferrujada, corrente de aço carbono de grau 8. As altas garras dos pneus cravavam-se no solo macio garantindo toda a tração necessária, evitando a patinagem.
Crac. Crac. Crac.
As árvores estalavam e cediam. Tombavam uma a uma, como soldados em formação sob cerrado fogo inimigo. A mesma arma que lhes derrubava, varria-as, fazendo acumularem-se em um monte de lenha que alimentariam carvoarias próximas. Crianças, ainda longes da adolescência, e suas mães abraçavam em feixes os galhos quebrados e levavam até um caminhão.
Correndo paralelamente mata adentro, os tratores abriam um rasgo acastanhado naquele mundo verde cada vez menor.
Vrum. Vrum. Vrum.
Exemplares mais robustos resistiam ao correntão, como haviam resistido às chuvas, aos ventos, insetos e micro-organismos. Pouco, porém, podiam fazer diante das motosserras. Em meros minutos encerravam-se histórias seculares. Cada dente de metal arrancava um naco do lenho em sucessão incessante; a fenda se aprofundava em uma terrível ferida, até surgir do outro lado atravessando cada anel que testemunhara silenciosamente a passagem do tempo desde a independência do Brasil. Senhoras centenárias agora jaziam ao chão. Seus espessos troncos fariam a alegria das madeireiras sem registro.
Toc, toc, toc.
Mas lenha e madeira eram apenas subprodutos daquela atividade frenética. O bem que buscavam era exatamente a área limpa em corte raso. A terra nua.
A golpes de afiados machados, homens, escaldados sob um sol inclemente, removiam os tocos que restavam e que poderiam quebrar as lâminas dos arados motorizados que preparariam o terreno para a plantação.
Cau. Cau. Cau.
As aves perturbadas saíam em revoada, abandonando, contrariadas, seus ovos e filhotes. Arara-piranga, anacã, maitaca-de-cabeça-azul, saíra-beija-flor, alma-de-gato, falcão-de-coleira, saci...
Muitos macaquinhos não eram velozes o suficiente para fugirem do tsunami mecânico a sumir com suas moradias. Vários zogue-zogues acabaram presos no emaranhado de galhos e troncos ao chão. Não poucos esmagados sob o peso do material.
Rãs, lagartos, roedores, insetos, milhões de insetos, aranhas, lacraias e outros artrópodos também tinham, subitamente, suas vidas completamente mudadas ou terminadas. Nem mesmo os microsseres escapavam incólumes.
Em pouco mais de três meses, o vermelho 2,5YR Munsell do latossolo férrico haveria de ceder lugar ao dourado palha do campo maduro de soja.
"Para, para, para!"
O operador de um dos tratores nada ouvia, apenas o som do motor abafado pelo protetor de ouvido. Só percebeu Regino quando este pulou à frente da máquina. Enfiou o pé fundo no pedal do freio. Mas o outro veículo continuou. O trator parado começou a girar puxado pela corrente retesada.
"M..., m..., m..."
O tratorista descontava sua raiva na pobre barra de direção.
Regino estava ali para interromper o desmate seguindo ordens dadas por Flora pelo telefone. Não pôde passar seu recado, mas o intento seria atingido por outro meio.
A tensão nos elos acabou por arrebentar um deles. O chicote de metal acertou o capataz em cheio.
"Deus, deus, deus."
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(Capítulo 15.)
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