terça-feira, 6 de outubro de 2015

O Santo Sudário

Uma análise recém-publicada mostra que não há diferenças nos perfis de espectrometria de massa de carbono-14 em amostras do Sudário de Turim quando se levam em conta contaminantes orgânicos.

"Abstract
This is an editorial regarding a paper published on Thermochimica Acta (R.N. Rogers, Thermochimca Acta, 425 (2005) 189–194). A close-up analysis of the pyrolysis-mass spectra reported in the original paper reveals that the differences found between the samples coming from different parts of the Shroud are just due to the presence of a contaminant with a long aliphatic chain. Except for the presence of the contaminant, the two pyrolysis-mass spectra look alike rather than different. Therefore, the pseudoscientific theory stating that the C14 sample might come from a “medieval invisible mending” remains unsupported by evidences."

["Resumo
Isto é uma mensagem editorial a respeito do artigo publicado em Thermochimica Acta (R.B. Rogers, Thermochimica Acta, 425 (2005) 189-194). Uma análise mais detalhada dos espectros de massa por método pirolítico relatados no artigo original revela que as diferenças encontradas entre as amostras de diferentes partes do sudário devem se apenas à presença de contaminantes de longas cadeias alifáticas. Exceto pela presença de contaminantes, os dois espectros de massa por pirólise são semelhantes e não diferentes. Assim, a teoria pseudocientífica que afirma que a amostra de C14 viria de uma 'emenda medieval invisível' mantém-se sem apoio em indícios."]

(Não chamaria exatamente de pseudocientífica, já que pode ser submetida a testes. Diria que é uma hipótese refutada. Embora possa ser chamada de pseudocientífica na medida em que seja defendida a despeito das refutações empíricas.)

Joe Nickell do CFI (Center for Inquiry) escreve sobre o tema no blog da instituição.*

Abaixo reproduzo texto meu de 2007 no Observatório da Imprensa (atualmente não está mais no ar - há apenas uma cópia no Internet Archive).

-----------------------------------
GALILEU O Santo Sudário

Roberto Takata (*)

Reciclar lixo não é a panacéia que resolverá todos os problemas dos resíduos sólidos produzidos em nosso modo "civilizado" de viver. Pode até mesmo causar mais problemas do que resolver, se não for planejado e aplicado adequadamente: e.g. se se fosse branquear o papel reciclado seria gerada uma quantidade maior de poluentes do que na produção de papel comum. Ainda assim – repiso, se bem planejados –, os programas de reciclagem podem ser um grande aliado na batalha pela melhoria da qualidade de vida da população e na conscientização para o exercício da cidadania.

Alguns vestibulares mais preocupados com a capacidade de raciocínio do que de memorização realizam o que se pode chamar de "reciclagem de informações". Questões são formuladas para que o candidato interprete um trecho de livro ou de artigo retirado do noticiário e reflita sobre o seu significado. Podemos realizar este exercício com um artigo de recente edição de Galileu (outubro de 1999). Antes, porém, um esclarecimento: não cuide, leitora (ou leitor) ser implicância minha com a revista ou com o autor do artigo, posto que não é a primeira vez que me pronuncio desfavoravelmente a um texto ali publicado. Quero apenas tecer algumas críticas, em meu julgamento, construtivas; afinal acredito que apontar erros é um passo para solucioná-los, sendo em última instância uma contribuição na busca do aperfeiçoamento constante do trabalho.

O texto referido é "Mistério e fascínio do Santo Sudário". Começa nos informando encontrarem-se presos à trama do tecido pólens mais antigos do que a idade estimada para o sudário pelos cientistas num teste feito em 1988. Segue afirmando ter sido sensacionalista a divulgação, à época, das conclusões de que o sudário teria sido fabricado na Idade Média (entre os anos 1260 e 1390). Pergunto aqui se não serão dois pesos e duas medidas. Senão, vejamos: "A opinião pública embarcou nessa tese [da falsificação do sudário]"; "essa informação [existência de pólens] foi atropelada pelo rolo compressor do teste do carbono 14"; "Ela [a existência de pólens]devolve ao estudo do Sudário a seriedade que o assunto merece"; "detalhe que os autores da tese de falsificação esqueceram de explicar [como a peça foi produzida]"; "No esforço quase irracional de negar a autenticidade do Sudário, alguns estudiosos lançaram mão de todo tipo de hipóteses para explicar a formação da imagem"; "dando [as manchas d’água] à imagem um aspecto ainda mais hierático e misterioso"; "Parece óbvio que o autor do Código [de Pray] o utilizou [ao Sudário] como modelo"; "Esse experimento [do efeito da fumaça na datação do pano] por si só desqualifica completamente a datação [...]" – grifos meus.

Palavras fortes de apelo ao emocional induzindo a se imaginar que o estudo teria sido conduzido de modo descuidado (desleixado? tendencioso?): a isso não se chama sensacionalismo? Ainda mais que não se tratam de citações, mas de julgamentos do próprio autor? Qual a procedência desse julgamento?

O sudário é um objeto realmente fascinante, e julgo não necessitar destes subterfúgios para despertar o interesse das pessoas. Muitos outros pontos (incluindo diversos listados no artigo) revelam-se provocações instigantes para os céticos – uma falsificação tão detalhada?
Mas a crítica feroz se centra no método da datação por carbono-14, referido sete vezes (alguma conotação cabalística?) – e negando três vezes a validade do teste (Mat. 26:34-75?). Apesar disso, em nenhum momento nas dez páginas dedicadas ao assunto é explicado o que afinal vem a ser o carbono-14 e como é realizada a datação.

Troca de carbono
O carbono-14 é um isótopo (forma de um mesmo elemento químico, mas com peso diferente) do carbono; uma outra forma, bem mais abundante, é o carbono-12. O carbono-14 é instável e se transforma em nitrogênio-14, estável, liberando radiação. Essa quantidade perdida é reposta por um processo inverso que ocorre na alta atmosfera com o bombardeamento de 14N por radiações solares de alta energia, de modo que a quantidade de 14C na atmosfera é praticamente constante. O processo de transformação de uma forma instável para outra mais estável, denominada decaimento radioativo, se dá de maneira estocástica – isto é, não se pode prever quando exatamente um determinado átomo vai emitir radiação e se transformar; mas é possível prever o comportamento de uma certa quantidade: depois de um período, chamado de meia-vida, apenas metade dos átomos iniciais não terão decaído, após outro intervalo de mesma duração apenas a metade da metade (um quarto) restará íntegra e assim por diante. A meia-vida do carbono-14 é de 5.730 anos. Então, se soubermos a quantidade original de 14C de um objeto (obviamente contendo carbono) no momento de sua fabricação, e compararmos com a quantidade atual, poderemos saber a idade do objeto por meio de uma função logarítmica.

Como saber a quantidade inicial? No caso do tecido sabemos que foi confeccionado com fibra vegetal. As plantas fixam o carbono retirado do ar na forma de CO2. Sabemos que a razão entre 14C e 12C nas moléculas de CO2 no ar é de 1 para um trilhão (1012) – que vem a ser a proporção, então, nas plantas, nos animais que delas se alimentam e nos produtos derivados: vegetal ou animal (existem exceções, mas não é o caso do linho no qual foi urdido o sudário). Quando o organismo morre, cessa a troca de carbono com o ambiente e, pelo decaimento, a proporção de 14C para 12C se altera – quanto mais tempo se passa menor a proporção de 14C.

O teste de 1988
Em 1988, cientistas retiraram uma amostra do sudário, mediram com um aparelho a quantidade de 14C presente no CO2 formado na queima total do tecido e compararam com uma amostra equivalente de pano novo de linho (em lugar de utilizarem a proporção teórica original). Nessa medição chegaram à idade de cerca de 660 anos dentro de uma margem de erro.

O que se contesta então? Afirma-se que a amostra estava, como todo o sudário, contaminada com bactérias e pólens recentes, fazendo com que no teste resultasse uma idade menor do que a verdadeira. No artigo é citado um trabalho do cientista russo Dmitri Kuznetsov indicando que a fumaça produzida por um incêndio em 1532 atingindo o sudário poderia ter provocado uma troca entre o carbono do tecido e o da fumaça de até 25% do total (isto é, um quarto de todo o carbono do tecido pode ter sido substituído pelo carbono do ar e do material consumido no incêndio) – o que valeu o comentário do autor da matéria de Galileu de que a datação fora completamente desqualificada.

Um rápido cálculo indica que, corrigindo o eventual efeito máximo da fumaça, o ano da fabricação do pano deveria estar em torno de 1255 (não muito longe do mínimo estimado: 1260). Não parece ser tão desabonadora assim: estamos ainda muito longe do ano 33, no qual teria ocorrido a paixão de Cristo.

[Usando apenas o conteúdo de Química e de Matemática do nível médio é plenamente possível realizar tais cálculos. Se se for pensar de modo mais intuitivo é só verificar que um quarto do 14C do tecido será substituído pelo ar atmosférico, o mesmo ocorrendo com o 12C do tecido. Então, se por um lado se perde o 14C pela substituição de parte deste pelo carbono da fumaça (rico em 12C ), por outro ganha-se14C pela substituição de parte do 12C (em muito maior quantidade na amostra) pelo carbono da fumaça: a maior parte do 12C do tecido será trocado pelo da fumaça, mas uma pequena parte (1 em um trilhão) será trocada pelo 14C. Como na fumaça há comparativamente mais carbono-14 do que no tecido, ao final o ganho será maior do que a perda. Se houvesse o autor notado que a queda na proporção de 14C se relaciona com o tempo decorrido em uma função logarítmica, notaria que se esperaria mesmo uma alteração menor se o ano de fabricação estimado (1325 +/- 65) não fosse muito diferente do possível instante da contaminação (1532): se uma troca de 100% do carbono tivesse ocorrido na época de fabricação do sudário não se notaria efeito algum.]

A creditar-se a diferença restante à sujeira acumulada, bactérias e pólens, deveríamos ter uma quantidade de carbono quase duas vezes maior dessa fonte em relação ao carbono do tecido. Pesando o sudário cerca de 9 kg, isso significaria que teríamos mais de 4 kg de pó: a imagem não deveria ser visível debaixo de uma generosa camada de microorganismos e poeira.

Falso argumento
Se existem alguns empecilhos para a hipótese da falsificação, a da autenticidade encontra problemas ainda mais graves. O autor vê dificuldades incontornáveis numa diferença de 70 anos entre a idade estimada (que tem uma variação de 65 anos – para mais ou para menos) e a que poderia ser a real em caso de influência da fumaça (com uma variação em anos da mesma ordem); mas apresenta como se fosse natural a explicação de que a imagem teria se formado a partir de um brilho equivalente à detonação de um artefato nuclear emanado do próprio corpo envolvido pelo pano. E mais, que nesse instante esse corpo estaria flutuando no ar.

Argumenta ainda o autor que "o Sudário já passou por milhares de testes" e "de todos os experimentos, só o do carbono-14 contestou a autenticidade da peça". Creio que, apesar de usar no texto um termo da epistemologia da ciência, "falsear", não entenda de fato o que define a validade lógica de uma hipótese científica – não importa quantos experimentos apontem para a veracidade de uma idéia: se apenas uma observação negá-la, ela necessariamente é falsa (claro, estou simplificando um pouco as coisas, mas creio aqui que não estarei fugindo muito da verdade).

Ainda mais grave, essa argumentação é falsa também ao se mentir por mais duas razões: em nenhum instante é esclarecido que o teste do carbono-14 foi repetido mais duas vezes por laboratórios independentes com o mesmo resultado; outros tipos de testes indicam que o sudário não deve ser autêntico – e.g. a perícia forense não conseguiu detectar traços de sangue no tecido (as manchas, que são tidas como sangue por muitos, ao contrário deste não são escuraa, apesar da idade, e são quimicamente compatíveis com pigmentos utilizados na Europa medieval).

Pregações doutrinárias
Escrevi isto não com o intuito de fazer um libelo contra a autenticidade do Sudário (sim, sou, como qualquer um pôde perceber, cético quanto a isso), mas porque mais uma vez Galileu falhou no processo de divulgação científica. Este artigo contrasta fortemente com um outro publicado na mesma edição, "Cinco mil anos antes de Cabral", em que apesar de também reportar uma tese polêmica e contrária à visão científica tradicional, ainda que mais terrena (povos europeus e incas teriam se aventurado em terras brasileiras muito antes da descoberta oficial), não toma para si as afirmações dos proponentes da idéia, embora simpatize o autor com elas, e coteja com o depoimento de uma opinião cética.

Afirmações cabais de idéias pouco aceitas pela comunidade científica, negligência investigativa com as proposições, ausência de confrontação com opiniões contrárias, omissão de informação, propalação de meias-verdades e, mais grave, mentir categoricamente vão contra o bom jornalismo científico (e muito disso vai contra qualquer tipo de jornalismo – aproximando-se, perdões, mas a comparação é-me inevitável, de pregações doutrinárias).

Dentro do espírito ecologicamente correto poderíamos reprocessar o artigo e tê-lo assim reciclado como um modelo do que não se deveria fazer em termos de jornalismo (científico ou não).

Em tempo: Conforme é dito no próprio artigo, não é nova a alegação da existência de pólens da Palestina mais antigos que a data aceita para o pano. Mas, ao contrário do que se afirma, isso não foi "atropelado pelo rolo compressor" da datação por carbono-14, e sim posto em xeque pela inconsistência dos dados: amostras independentes revelaram conter o Sudário comparativamente muito menos pólen do que a amostra de Max Frei, um criminologista com a credibilidade já abalada anteriormente por sustentar a autenticidade de uma falsificação crassa – os diários de Hitler. Amostra a partir da qual foi feita a afirmação.

Mais informações (céticas, naturalmente) em: , em inglês, e <www.epub.org.br/correio/ciencia/cp960815.htm>.
-----------------------------------
(Mais tarde pedi desculpas ao autor do texto na Galileu por comparar o texto dele com lixo. Mas, as críticas, eu as mantenho.)

*via @EliVieira tw.

Nenhum comentário:

Postar um comentário