domingo, 30 de setembro de 2012

Zero tom de verde - capítulo 2

Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.

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"Senhor Campos..."

"Já disse para me chamar de George, Flora."

"Senhor George..."

"George, Flora, só George."

"Bem, precisamos repassar o texto da entrevista dirigida a respeito do incidente em Concórdia." Flora sentiu-se violentada ao dizer 'entrevista dirigida' e 'incidente'.

O 'incidente' era o vídeo de celular que fora parar no YouTube. Funcionários de uma granja abatiam as aves arremessando-as contra a parede. As que sobreviviam tinham o crânio esmagado sob a sola das galochas. 'Incidente' era eufemismo para uma prática sistemática. Verdade que em desacordo com as normas internas de abate - até porque isso provocava perdas no produto: as cabeças esmagadas não poderiam ser vendidas, ainda que não fossem desperdiçadas, com um subterfúgio, era possível incluí-las no processamento de CMS (carnes mecanicamente separadas). O 'incidente' já havia sido denunciado e uma sindicância acionada. O relatório da auditoria garantia que se tratava de um "boato infundado e calunioso às boas práticas de criação e abate humanitário das aves".

"Florita, fique calma. Seu script está ótimo como sempre."

A equipe da afiliada local da grande rede de TV estava a postos. Entraria um link ao vivo no programa matinal da rede e à noite seria retransmitida no principal noticioso do grupo. O dono da emissora local, deputado federal, era velho conhecido de GC. As facilidades eram generosamente recompensadas com doações igualmente generosas às campanhas eleitorais dos aliados. (Línguas maldosas interpretavam a sigla como Generoso Corruptor.)

Um calor de raiva subiu à cabeça de Flora ao ver GC dando um tapa nos quartos da repórter (que apenas soltou um gritinho de falsa indignação). Ia dizer algo, mas acabaram de começar a entrevista. Por um instante passou-lhe pela cabeça denunciar o abuso ao vivo em rede nacional. A própria vítima, no entanto, estava tão à vontade com a situação que se demoveu do impulso. (Línguas femininas interpretavam a sigla como Grande Calhorda.)

"Veja bem, Ana, isso é um caso isolado. Já tomamos as devidas providências para garantir que esse incidente não se repita mais. É a imagem da empresa que está em jogo e com isso não brincamos. Os funcionários foram demitidos exemplarmente."

"E é isso, Alexandre. A GC Foods garante então que esse tipo de incidente não vai mais se repetir. Aqui é Ana Graça para o Boa Manhã."

Microfone desligado, ponto retirado, cabelo ajeitado, beijos no rosto trocados, equipamentos guardados, motor ligado e lá foram eles, sumindo ao horizonte, cada vez menores, enquanto a nuvem de poeira crescia.

"Viu, Florita, nada com que se preocupar. Segui todo seu script. Exatamente como você escreveu."

"Sim."

Sim, seguira exatamente o que Flora havia escrito. Exceto pela troca de "casos que ocorreram pelo menos algumas vezes" por "caso isolado", omissão de "que repudiamos" depois de "incidente", troca de "São os valores" por "É a imagem", omissão de "Criaremos um grupo de trabalho para a conscientização de todos os funcionários sobre bem estar animal e boas práticas de acordo com o que consta em nossa política de criação e manejo." e troca de "encaminhados para um curso de reciclagem e serão acompanhados e devidamente orientados" por "demitidos exemplarmente".

Sentiu como se a pesada mão de GC pousasse profundamente em suas nádegas, acompanhada de uma buzina feito com a boca.

Amanhã entregaria sua carta de demissão.
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