segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Zero tom de verde - capítulo 3

Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.

(Capítulo 1 aqui; capítulo 2 aqui.)
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"Não."

"Mas senhor..."

"George. Senhor está no céu."

"...eu estou me demitindo."

"Já disse que não aceito."

"Não tenho condições de continuar."

"Eu aumento seu salário."

"Não é o caso. Não é o dinheiro."

Não que o salário não viesse a fazer falta. As despesas em casa aumentaram com a mudança de Kátia para o apartamento do namorado. A mensalidade havia sofrido um reajuste também. E havia as matérias de dependência - Flora era excelente aluna, mas as repetidas faltas por causa das viagens do trabalho levaram à depê. Talvez tivesse que desistir de seu sonho e voltar ao interior. Ainda assim a perspectiva de trabalhar como atendente em uma lojinha de uma pequena cidade lhe parecia melhor do que seguir violando seus princípios.

Havia adiado a decisão o quanto podia.

Entre machismo, mentiras e crimes ambientais, a gota d'água fora o caso de exploração de mão de obra em condições análogas à escravidão. Outra vez havia denúncia antiga, sindicância interna e relatório da auditoria garantindo ser inverídica a história. Mas uma mudança no Ministério Público Estadual teve consequências indesejadas para o esquema vigente. O procurador anterior, envolvido até a medula, havia sido flagrado em escutas telefônicas mais do que comprometedoras revelando suas relações com conhecido contraventor. Ésquines Montes foi compulsoriamente aposentado. "Caiu pra cima" um promotor encrenqueiro - entenda-se alguém que leva o serviço a sério - da capital. Não o queriam em lugar nenhum. No jogo do empurra, virou procurador de justiça daquela comarca. Alguém bateu com a língua nos dentes para o procurador, que acionou a Procuradoria Regional do Trabalho, que, a contragosto, efetuou o flagrante.

"Não posso ficar. Não concordo com como as coisas são conduzidas aqui."

"Eu sei. Por isso preciso de você aqui."

"Como???"

"Flora, você é uma jovem com ideias nobres. Foi por isso que te contratei. Há coisas aqui que precisam ser mudadas. E é seu idealismo que irá mudar. A empresa precisa de você. Eu. Eu preciso de você." George segurou Flora pelos dois braços, mirando-a nos olhos.

Ela não gostou nem um pouco de ser agarrada daquele modo possessivo. Mas aquele olhar. Meu deus, aquele olhar.

A voz de George passou de um tom de exasperação desesperada para um terno.

"Preciso. Preciso mesmo de você. Quero mudar, Flora. Quero mudar. Só você pode me ajudar. Você me ajuda?"

Era uma exposição inadequada de fragilidade para um homem daquela idade e posição. Ou assim pensariam as pessoas comuns. Flora se sentiu tocada. Era a chance que queria. E não poderia negar auxílio a alguém necessitado. Mesmo ao Generoso Corruptor, ao Grande Calhorda, ao Galã Canastrão, ao Grosso Correntão. Quem sabe não nascia ali o Gentil Conservacionista?

Flora não estava convencida disso. Mas aquele olhar, meu deus.
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(Capítulo 4 aqui.)

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