A Justiça italiana conseguiu transformar a tragédia do terremoto de Áquila, em 2009, com cerca de 300 mortos em uma piada internacional.
Piada de mau gosto. Sete membros da Comissão Nacional para Previsão e Prevenção de Riscos Maiores, dos quais seis são cientistas (Enzo Boschi, então presidente do Instituto Nacional de Geofísica e Vulcanologia; Franco Barberi, da Universidade de Roma 3; Mauro Dolce, chefe do esceritório de risco sísmico do Departamento de Defesa Civil em Roma; Claudio Eva, da Universida de Gênova; Giulio Selvagg, diretor do Centro Nacional de Terremotos do INGV e Gian Michele Calvi, do Centro Europeu de Treinamento e Pesquisa em Engenharia de Terremoto em Pavia) e um, membro do governo (Bernardo De Bernardinis, então vice-presidente do Departamento de Defesa Civil), foram presos acusados de homicídio culposo por minimizarem os riscos de terremoto na região após uma série de abalos menores e um pouco antes do sismo mais intenso que causou mortes e destruição.
Carlos Orsi comenta sobre a decisão. E uma longa reportagem da Nature no ano passado dá detalhes da acusação.
Só o fato de se instaurar um processo nesses termos já era uma piada. A acusação alega que o processo não é motivado por falhar em prever terremotos, mas por fornecerem "informações incompletas, imprecisas e contraditórias". Então temos que prender *todos* os cientistas. A ciência é, em boa parte, motivada pelo contraditório - é isso que leva a se tentar testar hipóteses concorrentes; por natureza é incompleta, em qualquer momento é impossível se ter conhecimento de todos os aspectos possíveis e, por isso, ela é imprecisa (mesmos as medidas mais precisas comportam uma margem de erro, que é expressa numericamente em muitos relatos científicos).
Podemos ser mais caridosos quanto à acusação: seriam mais incompletas, mais imprecisas e mais contraditórias do que seria o aceitável pelos padrões dos conhecimentos científicos atuais. Ainda assim há um grande problema: essencialmente os terremotos são imprevisíveis - é possível se estimar uma probabilidade dentro de um prazo para uma dada região; mas essa probabilidade comporta necessariamente um grande grau de incerteza (somente para prazos suficientemente longos e áreas suficientemente grandes é possível se trabalhar com médias).
Ocorre que a preocupação era com uma área muito restrita: a cidade de Áquila, em um tempo igualmente restrito: um prazo de menos de um ano. Ocorre que desde 1315, na cidade, temos 10 casos de abalos de intensidade razoável (cerca de magnitude 5 ou mais na escala Richter). Considere a situação de 2009: 10 abalos grandes em 694 anos de história. Uma probabilidade de 0,144%
O que as autoridades italianas queriam que fosse dito? Que era caso de preocupação diante de uma chance de menos 1%? Vamos admitir que, sim, foram negligentes. Então, *todas* as autoridades italianas estão sendo negligentes em permitir que os habitantes de Áquila continuem morando naquela região, já que a probabilidade geral continua sendo de 0,144%/ano.
Eu sugiro que os sismólogos italianos peçam asilo no Brasil, só por garantia de não conseguirem reverter essa condenação sem sentido em seus recursos de apelação.
sexta-feira, 26 de outubro de 2012
quinta-feira, 25 de outubro de 2012
Juíza processa blog do Sakamoto por publicar e criticar liminar da magistrada
Leonardo Sakamoto está sendo processado pela juíza Marli Lopes da Costa de Goes Nogueira por haver reproduzido e criticado no blog do próprio jornalista teor da liminar da magistrada que suspendia uma ação do Ministério Público de liberação de trabalhadores em condições análogas à escravidão.
A juíza quer que o texto e os comentários sejam removidos sob pena de multa diária de R$ 10 mil, além de um valor a ser determinado por danos morais.
Sakamoto não irá remover até a decisão final.
A juíza quer que o texto e os comentários sejam removidos sob pena de multa diária de R$ 10 mil, além de um valor a ser determinado por danos morais.
Sakamoto não irá remover até a decisão final.
terça-feira, 23 de outubro de 2012
Kátia Abreu, rural ≠ ruralista. Grato.
A Senadora Kátia Abreu, na Folha de São Paulo, escreveu:
"Ruralistas são os que vivem no meio rural --e é de lá que vem o alimento indispensável ao ser humano. Combatê-los por esse 'mal' de origem é levar o preconceito a um grau irracional."
Ou seja, ela, arbitrariamente, *redefiniu* o termo ruralista com o propósito de dizer que é preconceito de origem criticar os ruralistas.
Peguemos as definições do Aulete Digital:
"a2g.
1. Ref. ou inerente ao, ou próprio do ruralismo
2. Diz-se de quem é dono de uma propriedade rural ou defende seus interesses (empresário ruralista; entidade ruralista).
3. Pol. Diz-se de que ou quem segue o ruralismo como orientação política (bancada ruralista).
4. Art.pl. Diz-se do artista que prioriza temas rurais em suas obras (pintor ruralista; poeta ruralista); bucólico s2g.
5. Dono de propriedade rural.
6. Aquele que defende os interesses rurais; aquele que se preocupa com os problemas rurais.
7. Pol. Aquele que segue o ruralismo como orientação política."
O Michaelis:
"adj e s m+f
1 Diz-se do, ou o artista que nos seus trabalhos dá preferência à representação de cenas rurais.
2 Diz-se da, ou a pessoa que se interessa pelos problemas ou coisas agrários."
O uso que a senadora condenada é mais do que abonado pelos dicionários: ruralista é "aquele que defende os interesses dos proprietários rurais". Quem vive no meio rural é um "morador da zona rural, ou, simplesmente rural", como o que vive na cidade é "morador da zona urbana, ou, simplesmente urbano".
Um ruralista pode ser um morador da zona urbana.
A senadora tem todo o direito de inventar um novo significado para a palavra para seu uso. Só não pode pegar essa nova acepção para reinterpretar marotamente o que os outros dizem.
Alguém poderia perfeitamente dizer que "corrupção" é o ato ou efeito de se estudar o crustáceo Callichirus major. Mas, com isso, não pode sair por aí dizendo que os que bradam contra a corrupção estão querendo investir contra a ciência. São dois significados distintos.
"Ruralistas são os que vivem no meio rural --e é de lá que vem o alimento indispensável ao ser humano. Combatê-los por esse 'mal' de origem é levar o preconceito a um grau irracional."
Ou seja, ela, arbitrariamente, *redefiniu* o termo ruralista com o propósito de dizer que é preconceito de origem criticar os ruralistas.
Peguemos as definições do Aulete Digital:
"a2g.
1. Ref. ou inerente ao, ou próprio do ruralismo
2. Diz-se de quem é dono de uma propriedade rural ou defende seus interesses (empresário ruralista; entidade ruralista).
3. Pol. Diz-se de que ou quem segue o ruralismo como orientação política (bancada ruralista).
4. Art.pl. Diz-se do artista que prioriza temas rurais em suas obras (pintor ruralista; poeta ruralista); bucólico s2g.
5. Dono de propriedade rural.
6. Aquele que defende os interesses rurais; aquele que se preocupa com os problemas rurais.
7. Pol. Aquele que segue o ruralismo como orientação política."
O Michaelis:
"adj e s m+f
1 Diz-se do, ou o artista que nos seus trabalhos dá preferência à representação de cenas rurais.
2 Diz-se da, ou a pessoa que se interessa pelos problemas ou coisas agrários."
O uso que a senadora condenada é mais do que abonado pelos dicionários: ruralista é "aquele que defende os interesses dos proprietários rurais". Quem vive no meio rural é um "morador da zona rural, ou, simplesmente rural", como o que vive na cidade é "morador da zona urbana, ou, simplesmente urbano".
Um ruralista pode ser um morador da zona urbana.
A senadora tem todo o direito de inventar um novo significado para a palavra para seu uso. Só não pode pegar essa nova acepção para reinterpretar marotamente o que os outros dizem.
Alguém poderia perfeitamente dizer que "corrupção" é o ato ou efeito de se estudar o crustáceo Callichirus major. Mas, com isso, não pode sair por aí dizendo que os que bradam contra a corrupção estão querendo investir contra a ciência. São dois significados distintos.
segunda-feira, 22 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 15
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 14 aqui.)
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"Uh! Bad boys watcha gon,watcha gon, watcha gonna do?"
Com um pulverizador manual, álcool era borrifado sobre a palha acumulada naquele ponto do canavial. Um fósforo aceso e o resto era com a química da óxido-redução.
O processo em si era altamente complexo: o calor inicial degradava a celulose em gás carbônico, vapor d'água, óxidos nítrico e nitroso, óxidos de enxofre, amônia, monóxido de carbono, hidrogênio, hidrocarbonetos (entre metanos, HPAs, benzo-a-pireno, etc.) e compostos orgânicos voláteis diversos, açúcares desidratados, alcatrão, carvão... Monóxido de carbono, hidrogênio, hidrocarbonetos, açúcares, alcatrão e carvão, a alta temperatura, reagiam com o oxigênio do ar decompondo-se em gás carbônico, vapor d'água e óxidos de nitrogênio e de enxofre; liberando calor e luz, isto é, fogo, que degradava mais celulose e realimentava a intrincada reação.
O ar aquecido erguia-se arrastando consigo o vapor d'água, gases e partículas sólidas finas e ultrafinas (PM10). O calor decompunha também matéria orgânica e outros compostos presentes na camada mais superficial do solo. Nutrientes preciosos como sais de nitrogênio, potássio, fósforo, magnésio e cálcio eram perdidos com as cinzas que esvoaçavam no meio da fumaça. Bactérias, fungos, minhocas, nematoides, sementes, plântulas e toda sorte de micro-organismos e pequenos animais e plantas também eram eliminados.
Aceiros garantiam que o fogo ficasse circunscrito à área designada dentro da propriedade. Mas os efeitos não respeitavam essas barreiras.
A coluna alcançava altitudes quilométricas, onde, sob ação de ventos de maiores velocidades espalhava-se por centenas de quilômetros quadrados. Cidades próximas eram mais afetadas, com aumento de até quarenta porcento no movimento em postos de saúde. Pessoas de todas as idades, principalmente crianças e idosos, acometidas de asmas, tosse, irritação nos olhos e na garganta. Partículas de não mais do que 10 micrômetros penetravam fundo no sistema respiratório, até os alvéolos, provocando edemas e consequente dificuldade em respirar. Moléculas de monóxido de carbono atracavam-se firmemente com as hemoglobinas, dificultando a obtenção de oxigênio. Óxidos de nitrogênio, de enxofre e ozônio (formado na baixa atmosfera pela reação de óxidos de nitrogênio, monóxido de carbono e compostos orgânicos voláteis sob a luz solar) complicavam ainda mais o quadro. HPAs e benzo-a-pirenos penetravam na corrente sanguínea, atingiam as células e danificavam as moléculas de ADN, em efeito cumulativo que progressivamente aumentava as chances de se desenvolver cânceres diversos, especialmente no pulmão.
"When they sudedongdong come for you?"
Era a última safra – salvo decisões judiciais contrárias – em que a queimada seria aplicada por força de acordo com o governo estadual – adiantando a data prevista inicialmente no decreto que regulava a matéria. Flora queria que já naquela vez não se usasse do fogo, mas uma comissão representando cerca de mil cortadores preferia a queima, com medo de cobras e outros animais peçonhentos em meio à plantação, além da facilitação do trabalho de colheita sem as folhas mortas da cana.
"When you were eight and you had bad dreams you go to school"
O coração de Flora falou mais alto e ela nem pensou nos efeitos mais graves que haveria de provocar em mais de 10 mil habitantes de cidades no entorno, expondo outros milhão e meio a, no mínimo, sérios incômodos. Sentia que um cálculo frio sobre riscos de mortes de trabalhadores mais diretamente ligados a suas decisões versus de cidadãos que jamais conheceria era por demais insensível.
Esse tipo de cálculo insensível a teria também afastado da associação de produtores que se articulavam contra a mecanização forçada prevista no decreto. Quando grupos de trabalhadores manifestaram apoio ao protesto, temerosos da perda do emprego, ela achou que sua aproximação com o sindicato patronal era a escolha correta.
Rejeitar o cálculo insensível, no entanto, não significava não fazer cálculo algum. O cálculo sensível era bastante simples: a mecanização tiraria uma fonte de renda temporária de dezenas de milhares de trabalhadores – muitos vindo de regiões distantes, sem oportunidades de emprego. O fato de tal cálculo não passar por nada parecido com: a mecanização tornaria os custos de plantio e colheita muito menores ou a colheita mecânica traria problemas na fermentação do caldo na medida em que terra não esterilizada pelo fogo trazia predadores, parasitas e competidores às cepas de leveduras, soava à Flora como sinal de preocupação socialmente saudável.
Ela entendia o argumento de que, por outro lado, a continuidade da exploração da mão-de-obra miserável era uma forma de predatismo social. Mas achava que o argumento de que se opor à substituição por máquinas era o equivalente a se opor à abolição da escravatura estaria fundamentalmente errado. O trabalho era ruim, degradante mesmo com os maiores cuidados possíveis que se tivesse, mas cuidava com toda a sinceridade que milhares de desempregados era pior.
Enquanto via do avião o carbono da cana disperso na fumaça, alisava o carbono compacto de George.
"And you chuck it down me!"
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(Capítulo 16.)
sábado, 20 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 14
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 13 aqui.)
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Pop. Pop. Pop.
Os motores de 180 cv propeliam os tratores para diante. Desregulados, a cada premida do acelerador, cuspiam em baforadas uma espessa nuvem preta de fuligem do diesel apenas parcialmente queimado. Os veículos conectavam-se entre si por uma pesada, e algo enferrujada, corrente de aço carbono de grau 8. As altas garras dos pneus cravavam-se no solo macio garantindo toda a tração necessária, evitando a patinagem.
Crac. Crac. Crac.
As árvores estalavam e cediam. Tombavam uma a uma, como soldados em formação sob cerrado fogo inimigo. A mesma arma que lhes derrubava, varria-as, fazendo acumularem-se em um monte de lenha que alimentariam carvoarias próximas. Crianças, ainda longes da adolescência, e suas mães abraçavam em feixes os galhos quebrados e levavam até um caminhão.
Correndo paralelamente mata adentro, os tratores abriam um rasgo acastanhado naquele mundo verde cada vez menor.
Vrum. Vrum. Vrum.
Exemplares mais robustos resistiam ao correntão, como haviam resistido às chuvas, aos ventos, insetos e micro-organismos. Pouco, porém, podiam fazer diante das motosserras. Em meros minutos encerravam-se histórias seculares. Cada dente de metal arrancava um naco do lenho em sucessão incessante; a fenda se aprofundava em uma terrível ferida, até surgir do outro lado atravessando cada anel que testemunhara silenciosamente a passagem do tempo desde a independência do Brasil. Senhoras centenárias agora jaziam ao chão. Seus espessos troncos fariam a alegria das madeireiras sem registro.
Toc, toc, toc.
Mas lenha e madeira eram apenas subprodutos daquela atividade frenética. O bem que buscavam era exatamente a área limpa em corte raso. A terra nua.
A golpes de afiados machados, homens, escaldados sob um sol inclemente, removiam os tocos que restavam e que poderiam quebrar as lâminas dos arados motorizados que preparariam o terreno para a plantação.
Cau. Cau. Cau.
As aves perturbadas saíam em revoada, abandonando, contrariadas, seus ovos e filhotes. Arara-piranga, anacã, maitaca-de-cabeça-azul, saíra-beija-flor, alma-de-gato, falcão-de-coleira, saci...
Muitos macaquinhos não eram velozes o suficiente para fugirem do tsunami mecânico a sumir com suas moradias. Vários zogue-zogues acabaram presos no emaranhado de galhos e troncos ao chão. Não poucos esmagados sob o peso do material.
Rãs, lagartos, roedores, insetos, milhões de insetos, aranhas, lacraias e outros artrópodos também tinham, subitamente, suas vidas completamente mudadas ou terminadas. Nem mesmo os microsseres escapavam incólumes.
Em pouco mais de três meses, o vermelho 2,5YR Munsell do latossolo férrico haveria de ceder lugar ao dourado palha do campo maduro de soja.
"Para, para, para!"
O operador de um dos tratores nada ouvia, apenas o som do motor abafado pelo protetor de ouvido. Só percebeu Regino quando este pulou à frente da máquina. Enfiou o pé fundo no pedal do freio. Mas o outro veículo continuou. O trator parado começou a girar puxado pela corrente retesada.
"M..., m..., m..."
O tratorista descontava sua raiva na pobre barra de direção.
Regino estava ali para interromper o desmate seguindo ordens dadas por Flora pelo telefone. Não pôde passar seu recado, mas o intento seria atingido por outro meio.
A tensão nos elos acabou por arrebentar um deles. O chicote de metal acertou o capataz em cheio.
"Deus, deus, deus."
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(Capítulo 15.)
quinta-feira, 18 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 13
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 12 aqui.)
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Solange Carvalho é uma mulher pragmática. Há oito anos formada em psicologia e especializada, por acaso, em gestão de recursos humanos; há seis trabalhava no setor de pessoal da empresa admitindo e demitindo funcionários. Aquela situação era-lhe, assim, completamente constrangedora. Precisava da grana para cobrir as despesas do cartão de crédito. Sem os extras pelos serviços especiais desde o passamento de GC, seu salário atual não comportava seu estilo de vida. Dizia para si mesma que se sairia bem daquilo. Anos de estudo em psicologia e de prática em entrevistas a tornara especialista na detecção de mudanças sutis de humor, sinais de contradição e de mentiras. Poderia explorar isso. Sua alma... que se danasse a alma.
"Srta. Solange!"
Ela entrou na ampla sala da presidência. Sentou-se na cadeira de visitas. À sua frente, uma menina recém-saída formalmente da adolescência, do tipo que parecia empolgada em, pela primeira vez, ter domínio sobre as regras do jogo.
"Fale sobre GC...", comandou Flora, distraída com os pêndulos de Newton, sem olhar para a RH.
"É uma empresa sólida, bem posicionada no mercado..."
"Não a GC Foods. George Campos, o homem."
"Foi um ótimo patrão. Não tenho do que reclamar..."
"Não o patrão. O homem."
"Como?"
"Como alguém mais... íntimo."
Solange entendeu. Estava perdida. Flora sabia. Só lhe restava o protocolo Nixon de denegação implausível.
"O quê?"
"Sem joguinhos, Sô. Posso te chamar de Sô?", ainda brincando com as esferas de aço.
"Eu não... Sra. Campos, não sei do que está falando."
"Silva."
"Como?"
"Silva. Não mudei meu nome. Mas pode me chamar de Flora."
"Certo, Sra. Flora. Não sei do que esteja falando..."
Flora se levantou. Olhando para o teto e batucando uma caneta na palma de sua mão esquerda caminhou para trás de Solange. Curvou-se sobre a RH, sussurrando em seu ouvido.
"Tem certeza?"
"Tenho."
"Sô, por que faz isso?"
"O quê?"
"Sô, você não me deixa alternativas..."
Uma tela desceu rente à parede dos fundos. Cenas comprometedoras eram projetadas.
"E então?"
"Então o quê, Sra. Flora?"
"Não estou certa, mas acho que algumas manobras aí são consideradas ilegais em muitos países. Talvez até mesmo no Brasil..."
"Suponho que sim."
"Continua a negar?"
"Não tenho e não tive nenhum relacionamento..."
"Ok. Vejo que não pretende mesmo falar. Pegue este envelope e passe no RH, acho que você sabe onde fica...", a voz lasciva de até há pouco foi substituída por um tom seco.
Solange mal conseguiu disfarçar o tremor de suas mãos suadas. Como, como podia ter sido traída dessa maneira? Esses vídeos nunca, nunca deveriam ter chegado até Flora. Estava confiante,confiante de que conseguiria o aumento. Assustou-se um pouco quando o diretor de recursos humanos, seu superior imediato, disse que o assunto seria tratado diretamente pela presidente, pela presidente. Ainda assim... não, não esperava que as coisas fossem acabar daquela maneira. Jamais, jamais poderia imaginar isso.
Resmungava entre os dentes.
"Menininha mimada. Conseguiu o que queria. Minha cabeça em uma bandeja de prata. Quer me f...? Que me f... Eu me viro. Sempre me virei."
Tentava se acostumar com a ideia da demissão. Lembrou-se, então, das dívidas no cartão. O desespero sobreveio.
Por um momento parou em seu caminho até a seção de RH. E se... e se voltasse e pedisse desculpas à Flora? Se confessasse tudo, tudo – não que houvesse muitas coisas mais a confessar com aqueles vídeos... Não, não se entregaria. Havia sido traída, porém não pagaria na mesma moeda. Amava George, amava-o com todas as forças. Suportaria tudo por ele. Tudo.
Entregou o envelope para a secretária da seção.
"Que cara é essa, Solange?"
"E com que cara eu deveria estar, Mariana?"
"Até parece que recebeu notícia ruim..."
"Está nas suas mãos."
"Notícia ruim?"
Mariana entregou o conteúdo do envelope.
Anos de estudo em psicologia e de prática em entrevistas a tornara especialista na detecção de mudanças sutis de humor, sinais de contradição e de mentiras. Puro nervosismo gerado por algum outro fator tornava-se indicador de mentira; um intervalo maior para a elaboração da resposta era interpretado como criação de história; olhos para cima à direita indicariam recordação de uma história; para cima à esquerda, imaginação de uma história; para baixo, vergonha... Tudo baseado em teorias terrivelmente falsas. Quantos excelentes funcionários não deixaram de ser contratados ou foram simplesmente demitidos? Quantos funcionários medíocres, mas razoáveis atores não foram promovidos? Não podia calcular. Só conseguia pensar no que agora via em suas mãos.
Seu salário acabara de sofrer um aumento de trezentos porcentos.
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(Capítulo 14.)
sábado, 13 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 12
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 11 aqui.)
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Sangue.
A memória de Simba não alcançava seus anos iniciais em um circo itinerante já algo decadente. A trupe era tocada por uma família de origem romena, provavelmente com raízes ciganas. Na economia de equipamentos, o pai leão e a mãe tigreza de Simba dividiam a mesma jaula. As condições não eram das melhores, tanto que, logo após seu nascimento, ambos vieram a morrer. O filhote foi criado a leite de vaca. Cresceu em meio a um público minguante. Os dias eram cada vez mais difíceis. Já não havia tantos terrenos baldios em que o circo se instalar em suas temporadas nas cidades do circuito. As exigências de segurança, higiene e condições de trabalho eram maiores ano a ano. Os donos desfizeram-se dos cavalos, demitiram o pessoal. Conseguiram lotar o elefante em um zoológico particular. Restava Simba.
Sangue.
A memória de Flora não alcança seus anos iniciais. Nascida em uma cidadezinha do interior paulista na região de Presidente Prudente, não chegou a conhecer o pai, morto em um conflito agrário. A mãe mudou-se para a cidade junto com os filhos, criou-os com a renda da venda de quitutes e com a ajuda de um anônimo benfeitor, que custeou os estudos da filha caçula. A mãe ficou feliz que Flora haveria de se mudar para longe, não por algum sentimento desnaturado, mas temia pela segurança da pequena encrenqueira.
Sangue.
Simba representava uma despesa diária em carne que significava arroz a menos na panela da família Nicolita. Quando o Conselho Tutelar local ameaçou reter as crianças, o patriarca Stefan decidiu que se livrariam de Simba.
Sangue.
Flora vivia metida com um grupo ambientalista. Um grande empreendimento instalaria uma nova fábrica próxima a uma área de manancial. O protesto em algum momento fugiu ao controle. Tiros cuja origem jamais foi esclarecida: se de jagunços armados, de policiais da tropa de choque, de algum manifestante ou membro da massa popular que se aglomerava. Um acertou em cheio o peito do namorado de Flora. Uma garota chorando, coberta de sangue do namorado, protestando por justiça na TV em cadeia nacional foi o suficiente para que o empreendimento fosse engavetado. Quando ela passou no vestibular de uma faculdade na capital, a mãe ficou mais do que aliviada. Preocupada quanto às despesas, e, então, aliviada quando o benfeitor avisou por intermediários que custearia também os estudos e a moradia, depois preocupada quando Flora recusou-se a receber qualquer valor da mãe, ela mesma iria se sustentar, novamente aliviada quando a filha conseguiu um bom emprego.
Sangue.
Stefan Nicolita estava resoluto. Daria cabo ao leão – pra todos os efeitos consideravam Simba um leão. Na manhã seguinte, no entanto, a jaula estava aberta e Simba não estava ali.
Sangue.
Kátia foi uma amizade instantânea. Logo no primeiro dia da faculdade. Convidou Flora, que morava em uma pensão, a ir morar em seu apartamento, bem mais perto. Foi Kátia também quem indicou a vaga para a GC Foods. Mais do que indicou, quase que a obrigou.
Sangue.
A novilha havia morrido com a picada de uma cobra. Simba não sabia. Sabia apenas que era uma refeição fácil. Não comia há mais de uma semana – não que soubesse contar os dias, apenas sentia o tamanho da fome. Aparentemente não sabia também direito o que realmente era uma refeição fácil: enquanto tirava um naco da carne foi avistado pelos peões da fazenda. Assustado refugiou-se no bosque.
Sangue.
Três semanas de intenso treinamento em tiro de precisão. Deveria ser fácil: carregar, mirar, atirar. Nada menos verdadeiro. Verificar as travas, o estado da munição, conferir os mecanismos, a carga de propelente, abrir a câmara de munição, compensar os desvios do vento e a queda pela gravidade, sincronizar a respiração e os batimentos, meditação. Aluna dedicada – até mais do que às aulas de jornalismo – melhorava a olhos vistos a cada dia. Não estava ainda totalmente preparada, mas o acerto de contas era inadiável.
Sangue.
A água era refrescante. Então, uma pontada. Simba se assustou, voltou para dentro da mata. A agitação apenas ajudava ao cloridrato de xilazina atingir os vasos sanguíneos e se espalhar pelo corpo, alcançando seu sistema nervoso. Competindo pelos receptores de alfa-2-adrenérgicos, a depressão do sistema nervoso central sobreveio. Uma leve bradicardia, imagem embaçada e finalmente o mundo sumiu. Quando reapareceu, havia homens vindos de não se sabe onde, fortemente armados, um carro com uma jaula, um extenso campo aberto e árvores.
Sangue.
As pupilas estavam dilatadas. O coração, disparado. A pele, lívida. As narinas, expandidas. A ponta dos dedos, fortemente umedecida com o suor. A criatura vinha em sua direção. Os pelos da juba espalhavam-se aumentando ainda mais seu tamanho aparente. Flora largou o rifle a gás descarregado. Levou a mão direita para trás. Encontrou o que procurava. Doze tiros. Dois certeiros.
Sangue.
Simba caía pela segunda vez. Duas pontadas. Mas agora a dor aumentava insuportavelmente. Até perder novamente a consciência. Para nunca mais recuperá-la. Sangue, sangue se esvaía de Simba pelos dois rombos em sua cabeça.
Sangue.
Flora tremelicava. Seus braços ainda se estendiam para a frente com a arma apontada para o leão, ligre ou o que quer que fosse aquela criatura. Mas se, como temia, ela se levantasse, Flora não conseguiria disparar mais nenhuma bala. O pente estava vazio. Sangue, sangue banhava seu cérebro.
Sangue.
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(Capítulo 13.)
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 11 aqui.)
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Sangue.
A memória de Simba não alcançava seus anos iniciais em um circo itinerante já algo decadente. A trupe era tocada por uma família de origem romena, provavelmente com raízes ciganas. Na economia de equipamentos, o pai leão e a mãe tigreza de Simba dividiam a mesma jaula. As condições não eram das melhores, tanto que, logo após seu nascimento, ambos vieram a morrer. O filhote foi criado a leite de vaca. Cresceu em meio a um público minguante. Os dias eram cada vez mais difíceis. Já não havia tantos terrenos baldios em que o circo se instalar em suas temporadas nas cidades do circuito. As exigências de segurança, higiene e condições de trabalho eram maiores ano a ano. Os donos desfizeram-se dos cavalos, demitiram o pessoal. Conseguiram lotar o elefante em um zoológico particular. Restava Simba.
Sangue.
A memória de Flora não alcança seus anos iniciais. Nascida em uma cidadezinha do interior paulista na região de Presidente Prudente, não chegou a conhecer o pai, morto em um conflito agrário. A mãe mudou-se para a cidade junto com os filhos, criou-os com a renda da venda de quitutes e com a ajuda de um anônimo benfeitor, que custeou os estudos da filha caçula. A mãe ficou feliz que Flora haveria de se mudar para longe, não por algum sentimento desnaturado, mas temia pela segurança da pequena encrenqueira.
Sangue.
Simba representava uma despesa diária em carne que significava arroz a menos na panela da família Nicolita. Quando o Conselho Tutelar local ameaçou reter as crianças, o patriarca Stefan decidiu que se livrariam de Simba.
Sangue.
Flora vivia metida com um grupo ambientalista. Um grande empreendimento instalaria uma nova fábrica próxima a uma área de manancial. O protesto em algum momento fugiu ao controle. Tiros cuja origem jamais foi esclarecida: se de jagunços armados, de policiais da tropa de choque, de algum manifestante ou membro da massa popular que se aglomerava. Um acertou em cheio o peito do namorado de Flora. Uma garota chorando, coberta de sangue do namorado, protestando por justiça na TV em cadeia nacional foi o suficiente para que o empreendimento fosse engavetado. Quando ela passou no vestibular de uma faculdade na capital, a mãe ficou mais do que aliviada. Preocupada quanto às despesas, e, então, aliviada quando o benfeitor avisou por intermediários que custearia também os estudos e a moradia, depois preocupada quando Flora recusou-se a receber qualquer valor da mãe, ela mesma iria se sustentar, novamente aliviada quando a filha conseguiu um bom emprego.
Sangue.
Stefan Nicolita estava resoluto. Daria cabo ao leão – pra todos os efeitos consideravam Simba um leão. Na manhã seguinte, no entanto, a jaula estava aberta e Simba não estava ali.
Sangue.
Kátia foi uma amizade instantânea. Logo no primeiro dia da faculdade. Convidou Flora, que morava em uma pensão, a ir morar em seu apartamento, bem mais perto. Foi Kátia também quem indicou a vaga para a GC Foods. Mais do que indicou, quase que a obrigou.
Sangue.
A novilha havia morrido com a picada de uma cobra. Simba não sabia. Sabia apenas que era uma refeição fácil. Não comia há mais de uma semana – não que soubesse contar os dias, apenas sentia o tamanho da fome. Aparentemente não sabia também direito o que realmente era uma refeição fácil: enquanto tirava um naco da carne foi avistado pelos peões da fazenda. Assustado refugiou-se no bosque.
Sangue.
Três semanas de intenso treinamento em tiro de precisão. Deveria ser fácil: carregar, mirar, atirar. Nada menos verdadeiro. Verificar as travas, o estado da munição, conferir os mecanismos, a carga de propelente, abrir a câmara de munição, compensar os desvios do vento e a queda pela gravidade, sincronizar a respiração e os batimentos, meditação. Aluna dedicada – até mais do que às aulas de jornalismo – melhorava a olhos vistos a cada dia. Não estava ainda totalmente preparada, mas o acerto de contas era inadiável.
Sangue.
A água era refrescante. Então, uma pontada. Simba se assustou, voltou para dentro da mata. A agitação apenas ajudava ao cloridrato de xilazina atingir os vasos sanguíneos e se espalhar pelo corpo, alcançando seu sistema nervoso. Competindo pelos receptores de alfa-2-adrenérgicos, a depressão do sistema nervoso central sobreveio. Uma leve bradicardia, imagem embaçada e finalmente o mundo sumiu. Quando reapareceu, havia homens vindos de não se sabe onde, fortemente armados, um carro com uma jaula, um extenso campo aberto e árvores.
Sangue.
As pupilas estavam dilatadas. O coração, disparado. A pele, lívida. As narinas, expandidas. A ponta dos dedos, fortemente umedecida com o suor. A criatura vinha em sua direção. Os pelos da juba espalhavam-se aumentando ainda mais seu tamanho aparente. Flora largou o rifle a gás descarregado. Levou a mão direita para trás. Encontrou o que procurava. Doze tiros. Dois certeiros.
Sangue.
Simba caía pela segunda vez. Duas pontadas. Mas agora a dor aumentava insuportavelmente. Até perder novamente a consciência. Para nunca mais recuperá-la. Sangue, sangue se esvaía de Simba pelos dois rombos em sua cabeça.
Sangue.
Flora tremelicava. Seus braços ainda se estendiam para a frente com a arma apontada para o leão, ligre ou o que quer que fosse aquela criatura. Mas se, como temia, ela se levantasse, Flora não conseguiria disparar mais nenhuma bala. O pente estava vazio. Sangue, sangue banhava seu cérebro.
Sangue.
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(Capítulo 13.)
sexta-feira, 12 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 11
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 10 aqui.)
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Seu nome era Simba. Mas estava alheio a isso. Era de um tipo raro, raríssimo, Porém estava igualmente alheio a isso. Concentrava-se somente em beber. Agachado próximo às lépidas águas do riacho. 630 microgramas de glifosato estavam presente a cada litro. 26% acima do limite máximo para potabilidade. Isso era outra coisa a que estava alheio. Esticava a língua, formando uma concha com a ponta dobrada para baixo e para trás, que, uma vez repleta do refrescante líquido – juntamente com as moléculas de glifosato – era recolhida para a boca em uma operação monotonamente repetida.
Estava alheio também à presença do outro lado da margem à sotavento.
Sua respiração era tranquila. Ritmada com as batidas do coração. E as batidas eram lentas, um ciclo de sístole e diástole por segundo. Não mais do que isso.
Treinara semanas para a tarefa. (Em sua mente era uma tarefa a cumprir.) Não sentia mais a coceira na polpa do indicador, gentilmente posicionado sobre o gatilho.
No centro da retícula a região interocular do leão.
Simba, na verdade, era um ligre. Mas um detalhe desimportante para Flora naquele momento. Salvo pelo fato de que isso significava que era um animal de porte avantajado: respeitáveis 397 kg, que facilmente tornavam Padre Amaro um peso pena. Ainda assim a compleição de Simba era esbelta com seus mais de 3 metros de comprimento. Ela deveria ter atentado para isso.
Quando disparou, o centro do retículo mirava não a região entre os olhos ou qualquer parte da cabeça, mas uma parte da área lombar.
O gatilho liberou a válvula. O gás carbônico pressurizado quase que imediatamente expandiu-se para a câmara de munição, propelindo o dardo pelo cano a uma velocidade de 288 km/h. O dardo, basicamente uma seringa hipodérmica, tinha sua trajetória estabilizada pelas aletas em sua extremidade traseira. O vento lateral deslocou levemente a curva descrita – desvio parcialmente compensado por Flora mirando um pouco à esquerda do ponto que pretendia atingir (ela compensou também a leve queda causada pela gravidade). A ponta afiada da agulha abriu caminho por entre os pelos, rasgou a pele, atingindo a camada muscular superficial. Uma pequena carga explosiva empurrou o êmbolo injetando 25 ml de cloridrato de xilazina a 10% – o suficiente para derrubar um leão dos realmente grandes. Nada mal para alguém que, a meros 52 dias jamais tocara em uma arma.
Simba fugiu mata adentro, mas meia hora depois foi encontrado caído, sem reação.
"Morreu, dona Flora?"
"Não, Zenão. Veja, está respirando. Só está apagado." – adiantou-se o veterinário da equipe.
Flora olhava fixamente para o leão, ligre ou o que quer que fosse aquilo.
Os peões improvisaram uma padiola com a lona da picape. Seis homens arrastaram o bicho com bastante dificuldade até o carro à borda do bosque. Deram graças que a floresta original tivesse sido reduzida tão drasticamente em sua área. Não fora isso levariam horas no caminho de volta.
Flora ficou para trás enquanto observava o local em que há quase dois meses GC tombara sob o ataque da fera. A natureza já havia apagado qualquer marca de sangue. De repente, gritos.
A dosagem havia sido calculada para um leão grande, um muito grande. Mas Simba não era um leão muito grande. Era um ligre, maior ainda do que um leão muito grande. Era enorme. O efeito do tranquilizante passara meia hora antes do que o previsto.
Simba fugia mata adentro. Em direção à Flora.
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(Capítulo 12.)
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 10 aqui.)
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Seu nome era Simba. Mas estava alheio a isso. Era de um tipo raro, raríssimo, Porém estava igualmente alheio a isso. Concentrava-se somente em beber. Agachado próximo às lépidas águas do riacho. 630 microgramas de glifosato estavam presente a cada litro. 26% acima do limite máximo para potabilidade. Isso era outra coisa a que estava alheio. Esticava a língua, formando uma concha com a ponta dobrada para baixo e para trás, que, uma vez repleta do refrescante líquido – juntamente com as moléculas de glifosato – era recolhida para a boca em uma operação monotonamente repetida.
Estava alheio também à presença do outro lado da margem à sotavento.
Sua respiração era tranquila. Ritmada com as batidas do coração. E as batidas eram lentas, um ciclo de sístole e diástole por segundo. Não mais do que isso.
Treinara semanas para a tarefa. (Em sua mente era uma tarefa a cumprir.) Não sentia mais a coceira na polpa do indicador, gentilmente posicionado sobre o gatilho.
No centro da retícula a região interocular do leão.
Simba, na verdade, era um ligre. Mas um detalhe desimportante para Flora naquele momento. Salvo pelo fato de que isso significava que era um animal de porte avantajado: respeitáveis 397 kg, que facilmente tornavam Padre Amaro um peso pena. Ainda assim a compleição de Simba era esbelta com seus mais de 3 metros de comprimento. Ela deveria ter atentado para isso.
Quando disparou, o centro do retículo mirava não a região entre os olhos ou qualquer parte da cabeça, mas uma parte da área lombar.
O gatilho liberou a válvula. O gás carbônico pressurizado quase que imediatamente expandiu-se para a câmara de munição, propelindo o dardo pelo cano a uma velocidade de 288 km/h. O dardo, basicamente uma seringa hipodérmica, tinha sua trajetória estabilizada pelas aletas em sua extremidade traseira. O vento lateral deslocou levemente a curva descrita – desvio parcialmente compensado por Flora mirando um pouco à esquerda do ponto que pretendia atingir (ela compensou também a leve queda causada pela gravidade). A ponta afiada da agulha abriu caminho por entre os pelos, rasgou a pele, atingindo a camada muscular superficial. Uma pequena carga explosiva empurrou o êmbolo injetando 25 ml de cloridrato de xilazina a 10% – o suficiente para derrubar um leão dos realmente grandes. Nada mal para alguém que, a meros 52 dias jamais tocara em uma arma.
Simba fugiu mata adentro, mas meia hora depois foi encontrado caído, sem reação.
"Morreu, dona Flora?"
"Não, Zenão. Veja, está respirando. Só está apagado." – adiantou-se o veterinário da equipe.
Flora olhava fixamente para o leão, ligre ou o que quer que fosse aquilo.
Os peões improvisaram uma padiola com a lona da picape. Seis homens arrastaram o bicho com bastante dificuldade até o carro à borda do bosque. Deram graças que a floresta original tivesse sido reduzida tão drasticamente em sua área. Não fora isso levariam horas no caminho de volta.
Flora ficou para trás enquanto observava o local em que há quase dois meses GC tombara sob o ataque da fera. A natureza já havia apagado qualquer marca de sangue. De repente, gritos.
A dosagem havia sido calculada para um leão grande, um muito grande. Mas Simba não era um leão muito grande. Era um ligre, maior ainda do que um leão muito grande. Era enorme. O efeito do tranquilizante passara meia hora antes do que o previsto.
Simba fugia mata adentro. Em direção à Flora.
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(Capítulo 12.)
quarta-feira, 10 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 10
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 9 aqui.)
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Flora respirava com dificuldade. As feras a cercavam e com seus olhares testavam seu controle. Um vacilo, uma nesga de hesitação era o que esperavam para avançar sobre ela e arrancar-lhe as vísceras, refastelando-se em festim bestial.
Ela girava, algo nervosa, o anel em seu dedo.
"Sei que ninguém aqui me conhece."
Não começara bem. Os olhares de desconfiança reprobatória dos acionistas na assembleia não eram disfarçados. Cada pergunta feita por eles eram flechas direcionadas em seu coração – derrubariam-na de um modo ou de outro. Não aceitariam um forasteira arrivista vinda do nada. Não importava que fosse a acionista majoritária.
"Por que deveríamos confiar a direção da empresa a você? Por que deveríamos confiar em você?"
(Olhou discretamente para o anel. Inspirou fundo.) Não deveriam. Ela conquistaria a confiança através do trabalho. (Tentaria.)
Sim, era a única mulher entre eles. (Que observação perspicaz. Aliás, e daí? Era isso que a tornaria menos apta?)
Sim, era jovem, muito jovem. Tinha metade da idade deles. (Na verdade, tinha um terço.) Mas várias grandes empresas haviam sido desenvolvidas por jovens.
"De fato, mocinha, muitas empresas são criadas por jovens. Mas uma vez que crescem, elas precisam também de uma direção madura. Empresas pequenas podem fazer apostas arriscadas. Uma com 70 anos de tradição e valor de mercado de 17 bilhões de dólares não pode se dar a esse luxo. É preciso uma administração segura. Alguém que conheça a fundo os detalhes das operações. Preferimos contratar um executivo experiente."
Se precisavam de alguém que conhecesse a empresa a fundo, de que adiantaria buscar uma pessoa de fora? Quem mais além dela sabia dos detalhes das operações de cada unidade. Quem ali havia estado nas fazendas do Pará, Rondônia, Mato Grosso? Nas granjas das cooperativas em Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul? Nas propriedades ao longo do São Francisco? Nos centros de processamento de carnes e derivados. Nos laticínios, nas fábricas de embutidos. E até em alguns centros de mineração de fosfato. Em oito meses, Flora tivera contato direto com cada detalhe [ela percebeu a malícia correndo na mente dos homens, mas mostraria a eles que não era apenas uma ninfetinha, um briquedinho de GC] que nenhum dos acionistas nem sonharia que existisse por trás da lucratividade que lhes garantia a valorização das cotas. (Na verdade, nem Flora sonhara que viria a conhecer isso enquanto tremelicava diante da RH. Vários detalhes chocantes, aliás, mas aquela não era a ocasião de tocar no tema.)
Sim, ela pretendia introduzir mudanças no estado de coisas. Isso deixava os acionistas particularmente inquietos. Passara o último mês e meio mergulhada na contabilidade da empresa. Não era capaz de destrinchar os detalhes financeiros da muita coisa, mas a mensagem geral lhe pareceu clara: sucessivas multas ambientais e trabalhistas carcomiam pelo menos 30% da lucratividade potencial das organizações GC. De relance, pareceu-lhe que os olhos dos acionistas brilharam com a perspectiva de ganho de tal ordem. Mas, se foi isso, foi um momento fugaz.
As coisas estavam funcionando do modo como eram. O conservadorismo confundia-se entre a prudência e a covardia. Repetiram, a empresa era grande demais para se meter em aventuras.
Flora queria bater o pé, mas as normas estatutárias da eleição do conselho e da presidência não lhe garantiam – mesmo na condição de sócia majoritária – sustentação para se bater contra o desejo consensual do restante daquela assembleia. O soft power apenas excitava o frêmito feral deles. Bateria o pau na mesa.
"Há duas alternativas, senhores. Ou me elegem agora como a presidenta da GC Foods e partilham comigo deste ideal de modernização organizacional [evitava a todo custo a expressão 'responsabilidade socioambiental'] ou serão obrigados a me vender suas cotas – não se preocupem, serei generosa, haverá recompensa de 50% sobre o preço médio negociado na bolsa nas últimas duas semanas."
Não se convenceram da ameaça. Era um blefe certamente. Pagariam para ver. Pagaram (e viram).
Dois golpes rápidos de aquisição agressiva bastaram. A operação foi bastante bem planejada pela banca regiamente paga dos advogados e especialistas mobiliários. Limpa. Tanto que a CVM, incitada a proceder a uma investigação, deu de ombros (não era um fechamento de capital, tampouco uma Evil Tag Along, era uma OPA – oferta pública de aquisição – por aumento de participação corriqueira; hostil, mas corriqueira). Bem planejada, porém não sem riscos. A ideia básica era bem simples. Puro efeito dominó. Bastaria convencer um único cotista a abrir mão de sua parte – com o devido sobrepreço. Suficiente para implantar um sinal de alta. Os demais saberiam que a guerra estava perdida. Se não vendessem naquela janela, logo em seguida, os preços desabariam e eles arcariam com o prejuízo. Teriam que vender agora, e com ótimo lucro, senão amargariam um papel micado por longo tempo. A cada papel vendido, a pressão por nova venda aumentava mais e mais. A primeira peça não foi tão fácil de cair, mas caiu. O risco seria algum aventureiro desavisado tentar embarcar na onda. De fato, surgiu um que passou a adquirir os papéis na esperança de que a alta se mantivesse. A operação teve que ser interrompida (foi preciso só um boato a respeito do vazamento de informação privilegiada), dando um tombo no intrometido. Três semanas de espera para a completa tomada de Constantinopla. Ao menos da parte necessária de Constantinopla.
Flora seguira à risca as instruções do anexo testamentário de George. Inclusive quanto ao anel que portava. Não a aliança do casamento, mas um anel com um pequeno diamante artificial. As cinzas compactadas dos restos mortais de seu marido, a bem da verdade, a maior parte do carbono era mesmo do pesado caixão de carvalho. Urna lacrada, nem pudera ver pela última vez o rosto do amado, mas o teria para sempre consigo.
Conquistada a corja de abutres. Restava uma fera.
O leão continuava à solta. O acerto de contas era inadiável.
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(Capítulo 11.)
Novelas: entre tapas e beijos
Causou buchinchobochincho a postagem de Sakamoto a respeito da violência contra a mulher sancionada em um capítulo da novela Avenida Brasil, quando um dos personagens principais - Jorge (Tufão) Araújo - esbofeteia sua esposa - Carmen Lúcia (Carminha) Moreira de Araújo - ao descobrir sua traição com Maxwell (Max) Oliveira - cunhado de Tufão e comparsa de Carminha nas armações para tomar dinheiro do ex-jogador de futebol.
A reação do Sakamoto foi previsível, eu mesmo tuitei na hora: "Maria da Penha no Tufão!", meio na brincadeira, mas que, sim, se fosse na vida real, haveria de ser aplicada a lei que pune violência contra a mulher**.
Traição e roubo não justificam o uso de violência física contra alguém mais fraco. (Claro que Carminha deveria também ser devidamente processada pelas falcatruas: falsidade ideológica, desvio de verbas - e crimes mais graves: abandono de incapaz - não sei se já prescreveu -, tentativa de homicídio contra Max - mas isso, acho, é direito privado e dependeria de representação do Max contra Carminha.)
A contrarreação à proposta de Sakamoto também foi previsível. Muita gente boa levou a brincadeira do jornalista a sério - passando um tanto ao largo do cerne da questão que é a violência contra a mulher e as sanções a isso pelos diversos mecanismos da sociedade, inclusive culturais - e se pôs a criticá-lo. Por exemplo, aqui, aqui, aqui - em uma rápida contagem usando o search do twitter pelas palavras "Sakamoto maria da penha", contei: contrários ao Sakamoto - 18 homens, 2 mulheres; favoráveis - 1 homem, 3 mulheres; neutros - 0 homem, 1 mulher. E um tweet que não consegui classificar se era a favor, contra ou neutro.
Um argumento mais elaborado contra a sugestão do Sakamoto foi feita por uma blogueira feminista.
A questão não é, como alguns disseram, de censura à novela (Sakamoto não pediu que a novela fosse tirada do ar, mas sim que o personagem fosse punido pelo seu ato). Nem à pasteurização dramática (ao contrário, ganharia em tonalidades ao mostrar que não é porque é mocinho que todas as atitudes são boas). (Alguns compararam a cena com outras violências - inclusive contra as mulheres - passadas na ficção que não causaram essa comoção da "patrulha do politicamente correto", há que se atentar para o fato de haver uma diferença fundamental - os outros casos são cenas em que a violência é retratada sob o ponto de vista *negativo*, é coisa de vilão, de mau caráter, de machista... no caso em discussão, pega exatamente por ser um dos mocinhos, conferindo à violência um caráter *positivo* de punição, a sensação é de que "Carminha mereceu apanhar", oras esse é exatamente o discurso machista: a mulher sempre merece apanhar.) Mas uma coisa é preciso ter claro. Há dados muito sólidos que indicam que novelas influenciam atitudes e comportamentos dos telespectadores.
Phillips 1982, sobre o efeito de suicídio em uma novela americana em 1977:
"In 1977, suicides, motor vehicles deaths, and nonfatal accidents all rose immediately following soap opera suicide stories. [...] These increases apparently occur because soap opera suicide stories trigger imitative suicides and suicide attempts, some of which are disguised as single-vehicle accidents."
Rogers et al. 1999, sobre o efeito de uma novela na Tanzania em 1993:
"The soap opera had strong behavioral effects on family planning adoption; it increased listeners' self-efficacy regarding family planning adoption and influenced listeners to talk with their spouses and peers about contraception."
Vaughman et al. 2000, sobre efeito da telenovela Apwe Piezi em Santa Lúcia entre 1996 e 1998.
"Apwe Piezi influenced listeners to increase their awareness of contraceptives, improve important attitudes about fidelity and family relations, and adopt family planning methods."
*Ward, 2002, em um estudo controlado de exposição televisiva de cenas de estereótipos sexuais:
"More frequent and more involved viewing were repeatedly associated with students' support of the sexual stereotypes surveyed. Similarly, women exposed to clips representing a particular sexual stereotype were more likely to endorse that notion than were women exposed to nonsexual content. Finally, both experimental exposure and aspects of regular viewing significantly predicted students' sexual attitudes and assumptions, even with demographics and previous sexual experiences controlled."
Não é nem perto de uma lista exaustiva, claro, mas é uma amostra de estudos sobre o efeito - positivo e negativo - em populações de diversas regiões, com diferentes condições de vida e em diferentes épocas da exposição às telenovelas.
Os dados são bastante claros sobre os efeitos. Não podemos usar o princípio Ricupero e pegar apenas o que favorece nossos pontos de vista. Novelas influenciam para o bem e para o mal. E isso traz responsabilidades para todos os envolvidos.
(Coincidentemente, abordei esse duplipensar televisivo no capítulo 8 de "Zero tom de verde".)
Disclêimer: O aviso de praxe - sou machista, mas não me orgulho disso.
*Upideite(10/out/2012): adido a esta data.
**Upideite(10/out/2012): Há uma discussão a respeito de se o tapa naquela situação seria caracterizado como motivado "por gênero", no entanto.
A reação do Sakamoto foi previsível, eu mesmo tuitei na hora: "Maria da Penha no Tufão!", meio na brincadeira, mas que, sim, se fosse na vida real, haveria de ser aplicada a lei que pune violência contra a mulher**.
Traição e roubo não justificam o uso de violência física contra alguém mais fraco. (Claro que Carminha deveria também ser devidamente processada pelas falcatruas: falsidade ideológica, desvio de verbas - e crimes mais graves: abandono de incapaz - não sei se já prescreveu -, tentativa de homicídio contra Max - mas isso, acho, é direito privado e dependeria de representação do Max contra Carminha.)
A contrarreação à proposta de Sakamoto também foi previsível. Muita gente boa levou a brincadeira do jornalista a sério - passando um tanto ao largo do cerne da questão que é a violência contra a mulher e as sanções a isso pelos diversos mecanismos da sociedade, inclusive culturais - e se pôs a criticá-lo. Por exemplo, aqui, aqui, aqui - em uma rápida contagem usando o search do twitter pelas palavras "Sakamoto maria da penha", contei: contrários ao Sakamoto - 18 homens, 2 mulheres; favoráveis - 1 homem, 3 mulheres; neutros - 0 homem, 1 mulher. E um tweet que não consegui classificar se era a favor, contra ou neutro.
Um argumento mais elaborado contra a sugestão do Sakamoto foi feita por uma blogueira feminista.
A questão não é, como alguns disseram, de censura à novela (Sakamoto não pediu que a novela fosse tirada do ar, mas sim que o personagem fosse punido pelo seu ato). Nem à pasteurização dramática (ao contrário, ganharia em tonalidades ao mostrar que não é porque é mocinho que todas as atitudes são boas). (Alguns compararam a cena com outras violências - inclusive contra as mulheres - passadas na ficção que não causaram essa comoção da "patrulha do politicamente correto", há que se atentar para o fato de haver uma diferença fundamental - os outros casos são cenas em que a violência é retratada sob o ponto de vista *negativo*, é coisa de vilão, de mau caráter, de machista... no caso em discussão, pega exatamente por ser um dos mocinhos, conferindo à violência um caráter *positivo* de punição, a sensação é de que "Carminha mereceu apanhar", oras esse é exatamente o discurso machista: a mulher sempre merece apanhar.) Mas uma coisa é preciso ter claro. Há dados muito sólidos que indicam que novelas influenciam atitudes e comportamentos dos telespectadores.
Phillips 1982, sobre o efeito de suicídio em uma novela americana em 1977:
"In 1977, suicides, motor vehicles deaths, and nonfatal accidents all rose immediately following soap opera suicide stories. [...] These increases apparently occur because soap opera suicide stories trigger imitative suicides and suicide attempts, some of which are disguised as single-vehicle accidents."
Rogers et al. 1999, sobre o efeito de uma novela na Tanzania em 1993:
"The soap opera had strong behavioral effects on family planning adoption; it increased listeners' self-efficacy regarding family planning adoption and influenced listeners to talk with their spouses and peers about contraception."
Vaughman et al. 2000, sobre efeito da telenovela Apwe Piezi em Santa Lúcia entre 1996 e 1998.
"Apwe Piezi influenced listeners to increase their awareness of contraceptives, improve important attitudes about fidelity and family relations, and adopt family planning methods."
*Ward, 2002, em um estudo controlado de exposição televisiva de cenas de estereótipos sexuais:
"More frequent and more involved viewing were repeatedly associated with students' support of the sexual stereotypes surveyed. Similarly, women exposed to clips representing a particular sexual stereotype were more likely to endorse that notion than were women exposed to nonsexual content. Finally, both experimental exposure and aspects of regular viewing significantly predicted students' sexual attitudes and assumptions, even with demographics and previous sexual experiences controlled."
Não é nem perto de uma lista exaustiva, claro, mas é uma amostra de estudos sobre o efeito - positivo e negativo - em populações de diversas regiões, com diferentes condições de vida e em diferentes épocas da exposição às telenovelas.
Os dados são bastante claros sobre os efeitos. Não podemos usar o princípio Ricupero e pegar apenas o que favorece nossos pontos de vista. Novelas influenciam para o bem e para o mal. E isso traz responsabilidades para todos os envolvidos.
(Coincidentemente, abordei esse duplipensar televisivo no capítulo 8 de "Zero tom de verde".)
Disclêimer: O aviso de praxe - sou machista, mas não me orgulho disso.
*Upideite(10/out/2012): adido a esta data.
**Upideite(10/out/2012): Há uma discussão a respeito de se o tapa naquela situação seria caracterizado como motivado "por gênero", no entanto.
segunda-feira, 8 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 9
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 8 aqui.)
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"Georgegeorgeaimeudeusvocêtábem?", Flora agarrava-se desesperadamente a George.
"Calma, Florita. Estou bem."
"Estou bem." Mesmo que ele não estivesse com o corpo todo e metade do rosto enfaixados, apenas pelo tom de voz se notaria o mau ator que era.
"Não devia ter deixado você sozinho na fazenda."
"Você tem suas aulas, Flora. E além disso era perigoso."
"E eu não sei? Você nesse estado. Tinha que ter deixado com a guarda florestal."
"Eram meus animais. Aquele monstro... Flora, você precisava ver. A fera vindo em minha direção. A arma emperrada. Os dentes rasgando minha carne..."
"Não, por favor, pare. Meu deus, quando Cássio me falou do que aconteceu, eu fiquei com tanto medo de..."
"Do quê, Flora?"
"De... de te perder."
A voz de George era agora de uma ternura real.
"Mas que bobagem. Você nunca vai me perder."
Ela sabia que era mentira.
"Flora, queria te pedir um favor. Você realizaria o desejo de um condenado?"
"Condenado? Não diga isso, por favor."
"Canta pra mim aquela música."
"Qual?"
"Você sabe. Aquela."
Um pequeno silêncio. E uma voz embargada, porém ainda afinada.
"God, I feel like hell tonight Tears of rage I cannot fight..."
George levantou levemente o canto esquerdo da boca. E, provavelmente, o direito também.
"...I'd be the last to help you understand Are you strong enough to be my man?"
Flora fechou os olhos em angústia.
"Nothing's true and nothing's right So let me be alone tonight..."
George sorria.
"...Cause you can't change the way I am Are you strong enough to be my man?"
Flora chorava.
"Lie to me I promise I'll believe Lie to me But please don't leave, don't leave"
O semblante (ao menos a parte que se fazia visível por entre as gazes e esparadrapo) de George não passava nada do sofrimento que alguém naquelas condições haveria de sentir. Ao contrário, até. Uma felicidade, melhor, um júbilo algo indecente resplandecia.
"When I've shown you that I just don't care When I'm throwing punches in the air When I'm broken down and I can't stand Would you be man enough to be my man?"
Nesse momento, Flora não conseguia mais prosseguir. O esgotamento emocional a tomava. Se alguém realmente sentia dor naquele quarto de hospital era ela.
George segurou a mão de Flora. Olho contra olho.
"Eu menti, Flora."
"O quê?
"Eu menti. Esse não é meu último desejo. Meu último desejo é... Case-se comigo, Flora."
"O quê?"
"Case-se comigo, Flora. Por favor, eu preciso de você. Eu preciso."
Há pouco mais de seis meses Flora tomaria aquele pedido não apenas como absurdo, mas até como ofensivo: aquilo para Flora meio ano mais nova seria machista por definição. Ele teria todo o tempo do mundo para pensar e planejar; ela, apenas minutos para decidir algo que afetaria profundamente sua vida. Uma situação assimétrica por gênero. Um despoderamento feminino, a mulher carregada a reboque dos desejos do homem.
As coisas, no entanto, mudaram nesse meio tempo.
"Aceito. Claro que aceito.", disse a Flora meio ano mais velha.
"Opa, então chego em boa hora.", disse, à porta, um senhor que parecia haver trocado cada fio de cabelo por quilos a mais na cintura e cuja ocupação era denunciada pela batina.
"Em hora boníssima, Padre Amaro."
Cássio chegou trazendo as alianças. Ele e duas auxiliares de enfermagem serviram de padrinhos e testemunhas das bênçãos do padre ao casal.
O médico chegou e pediu para todos, à exceção das auxiliares, aguardarem do lado de fora. Flora quis ficar, mas George achou melhor obedecer às ordens médicas.
"Flora, você sabe que na verdade eu havia vindo aqui para outro sacramento. Fui chamado para administrar a unção dos enfermos."
"Mas, padre, ele me parece bem agora."
"Não se deixe enganar pelas aparências."
Por um tempo, Flora tomaria essas palavras do Padre Amaro como um terrível vaticínio.
Barulhos vinham do quarto de George. O médico orientava com comandos ríspidos às auxiliares os procedimentos de reanimação. Cássio e o Padre Amaro contiveram Flora, que se desesperava.
O óbito foi declarado exatamente às 21h47. Cinquenta e dois minutos entre o 'sim' e a viuvez. Noventa horas e trinta e sete minutos entre o 'sim' e trinta e dois bilhões, quatrocentos e noventa e cinco milhões, seiscentos e sessenta e três mil, novecentos e dois reais e trinta e quatro centavos na conta bancária. Ou trinta e dois bilhões, quatrocentos e noventa e cinco milhões, quatrocentos e vinte e oito mil, seiscentos e noventa e cinco reais e vinte centavos, descontadas as despesas médicas. Ou vinte e cinco bilhões, novecentos e noventa e seis milhões, trezentos e trinta e quatro mil, novecentos e cinquenta e seis reais e dezesseis centavos, descontados os honorários advocatícios. Ou vinte e quatro bilhões, novecentos e cinquenta e seis milhões, quatrocentos e oitenta e nove mil, duzentos e trinta e sete reais e noventa e um centavos, descontada a alíquota incidente do Imposto de Transmissão Causa Mortis do Estado. E mais a parte do leão.
"Hush my darling, don't fear my darling The lion sleeps tonight..."
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(Capítulo 10.)
Aviso: Contém kibe.
sábado, 6 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 8
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 7 aqui.)
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Dali da sala de direção a vista da redação era de tirar o fôlego. Parecia que o aquário era o lado de lá, não o lado de cá. Uma dúzia de peixinhos frenéticos nadando para um lado e para o outro: meio Marlin, buscando desesperandamente alguma coisa, meio Dory, esquecendo-se no meio do caminho o que era mesmo de que estava atrás.
Subitamente o vidro passou de transparente para translúcido. Uma persiana teria bastado, mas uma janela eletrocrômica sem dúvida causava uma maior impressão de "jornalismo na era digital".
"Obrigado por nos receber aqui, mas não acha que o jornalismo que vocês praticam muito superficial?", perguntou um dos jovens reunidos na sala.
"Sim", respondeu com toda a sinceridade o editor-chefe.
Os alunos do professor Real ficaram surpresos, inclusive Flora.
"É preciso ser assim", continuou. "De outra forma, nossos telespectadores não entenderiam. O brasileiro médio não consegue acompanhar temas muito complexos, então mastigamos tudinho."
"E não é tendencioso?", tornou o mesmo jovem que fizera a pergunta inicial.
Desta vez, um esperado "não".
"Mas e a edição do debate eleitoral?"
"Era nossa primeira experiência. Erros acontecem. É possível que tenhamos errado. Na verdade o erro nem foi nosso, foi de um funcionário. Um funcionário com ótimos serviços prestados a esta casa, mas que, como todo ser humano, é falível. Porém não houve distorção. Um candidato de fato se saiu melhor do que o outro e foi isso que nós mostramos. É como se, fazendo o compacto de uma partida em que o time A ganhasse do time B, colocássemos poucos lances de perigo do time B, mas o placar final não foi alterado, mostramos todos os gols."
"E o episódio da bolinha de papel?"
"Bolinha de papel?"
"Que jogaram no candidato..."
O editor rapidamente interrompeu, perdendo levemente, só levemente, o tom absolutamente cordato de até então.
"Não foi bolinha de papel. Nós demonstramos que atiraram uma pedra e ele de fato se feriu."
"Mas ele ficou um tempão sem qualquer reação depois de ser atingido. Só foi levar a mão à cabeça vários segundos depois."
"A opinião do perito que contratamos para analisar as imagens é bastante clara de que se trata de uma pedra."
"Mas o site de um professor de física mostra que a dinâmica do objeto na imagem é completamente diferente..."
"Qualquer pessoa pode escrever qualquer coisa na internet. Nós confiamos na análise de um perito, professor de renomada universidade. Por quê? Porque nós [disse enfatizando o 'nós'] não somos peritos. O que achamos ou deixamos de achar será apenas a opinião de um leigo, alguém que, ao contrário do perito, não conhece profundamente a área."
"A emissora de vocês não mostra muita violência?"
"Nós mostramos a realidade em nossos telejornais. A realidade é violenta. Não gostamos tanto quanto vocês de mortes, sequestros, estupros, roubos, espancamentos, ameaças, mutilações, terrorismos. Mas são coisas que, infelizmente, acontecem. Não podemos tapar o sol com a peneira e fingir que nada disso ocorreu. Claro, o clima fica pesado. E até por isso também fazemos reportagens especiais sobre coisas mais amenas: gente que está há bastante tempo casada com a mesma pessoa e continua apaixonada, projetos sociais que deram certo... 'O Brasil Tem Jeito' brinca com o famigerado 'jeitinho brasileiro', voltado para o bem.'"
"Mas digo da violência nos filmes e nas novelas. Ela não influencia as pessoas? Teve o atirador que se fantasiou de vigilante e saiu matando pessoas como no filme do herói que enloquece e..."
"Olha, esse não é meu departamento. De todo modo, as pessoas não vão se influenciar pelo que veem na TV. Elas são capazes de pensarem por si. Não vão sair matando pessoas só porque viram um filme. São pessoas desequilibradas que fazem isso."
"Mesmo assim..."
"E fazemos muita coisa boa. Além da série de reportagens que citei antes, temos o Especial de Solidariedade que arrecada milhões para programas de educação e cultura de crianças e jovens. E mesmo novelas exercem influência positiva. Basta ver como a minissérie 'Os Indignados' motivou os jovens a protestarem contra os corruptos e até derrubar o presidente."
"Que vocês elegeram..."
Flora pensou brevemente se não havia contradição entre se eximir de culpa da violência alegando que não influenciavam as pessoas, que eram entidades autônomas quanto a suas decisões, e se atribuir a mobilização dos estudantes no impichamento do presidente por meio de seus produtos audiovisuais. Não tinha mais, no entanto, oportunidade para isso.
"Muito bem, muito obrigado pela visita. A TeleUniverso está sempre aberta para receber os futuros jornalistas. Na saída vocês receberão um brinde e material informativo com os detalhes de nossas organizações." A esta altura a voz do editor-chefe era, claro, abertamente hostil.
Os alunos e o professor Real dirigiram-se para a van da faculdade. Flora os acompanhava quando foi parada por um chofer:
"Cássio?"
"Perdão senhorita. Preciso levá-la."
"Para o escritório? O que aconteceu?"
"Não. Para o hospital. É o senhor GC."
"Ai, meu deus, o que aconteceu?"
"Ele... o patrão... um leão."
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Zero tom de verde - capítulo 7
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 6 aqui.)
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"Porra, sensacional! Sensacional!", vibrou o governador.
"E não é?"
"Tem razão. Dá pra povoar esse cerrado. Transformar em um Serengueti. E sem aquele povo escurinho."
"Oh, governador, aí é racismo."
"Ah, eu tô falando no bom sentido."
"Mas é isso, e ainda ajuda a salvar os animais de lá da extinção."
"E declarar reserva de caça. Criar resorts para safári."
"Mas será que sai autorização pra caça?"
"Fauna exótica, filho. E mesmo que não saia, faz que nem lá, safári fotográfico."
"Tinha só uma preocupação com a população de animais sair do controle."
"Pensa, Felisberto, pensa. Os bichos lá na África vivem tudo em harmonia. Ah, a natureza é sábia. O leão não caça mais do que pode. E as zebras, elefantes, hipopótamos não pastam mais do que podem. Nenhum se reproduz mais do que pode. Só o homem que é um bicho que sai destruindo tudo à sua volta."
"Então submetemos o projeto hoje?"
"Hoje? É pra ontem, Felisberto. E bota o pedido de verba pro Fundo Nacional do Meio Ambiente. Acho que uns R$ 300 milhões bastam pra fase inicial. E pede pro Salinas escrever um projetinho pro BID. Vai logo."
O secretário de gabinete saiu. O governador pôs-se a mirar a paisagem pela janela. Via longe. Lá longe, no cerrado, os animais como havia visto em sua viagem de lua de mel à África do Sul.
Flora ouvira tudo, confusa. George, que estivera ao celular durante toda a reunião, de repente ficou sério.
"Cancela tudo, governador."
"O quê?"
"O projeto Pé na África."
"Está louco?"
"Estou. Estou louco da vida. Um maldito leão de circo escapou e pegou algumas novilhas minhas."
"Filha da p..."
George e Flora saíram para a fazenda. O secretário de gabinete retornou.
"Governador..."
"Que foi, Felisberto?"
"Uma comissão de horticultores está aí pra reunião com o Secretário da Agricultura e Vossa Excelência. Sobre o programa para erradicação do caramujo Achatina fulica."
"Ah, sim."
E rumou para a sala de reuniões. Resmungando e praguejando contra os idiotas que introduziram um organismo exótico que agora virara praga.
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(Capítulo 8.)
Continua sendo uma obra de ficção. Mas pode ser vagamente inspirada na realidade.
quinta-feira, 4 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 6
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 5 aqui.)
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Quase nenhum pêssego viria naquela safra. Um ou outro, mirrados, em um ou outro pé. Fruto da polinização ineficiente pelo vento, mosca ou borboleta. A 60 metros do pomar, caixas vazias do apiário. No chão, próximo às colmeias, corpos ressecados de centenas de milhares de operárias formavam uma tenebrosa serapilheira. Seu João não tinha como saber que a causa estava a cerca de 800 metros dali. Sabia apenas que teria sérios problemas para pagar a dívida contraída com o banco.
Poucos dias antes, um avião monomotor dava rasantes sobre a plantação de algodão safrinha. Microgotículas pulverizadas a partir do sistema de atomização da formulação caíam como fina névoa. 30 a cada 100 das bilhões de esferas líquidas microscópicas repousavam sobre os algodoeiros; 50 a cada 100 caíam sobre o solo (dali, parte seria absorvida pelas raízes das plantas), e o restante flutuava ao sabor da brisa e se espalhava para além da área de plantio. Isso quando o equipamento estava perfeitamente calibrado, o dia estava bom, com baixa ventosidade e na temperatura ideal. Não era, nem de longe, as condições de então e raramente o era nas demais ocasiões. Os dias eram quentes nesse inverno, seco, e ali ventava quase sem parar. A população de ácaro rajado havia aumentado ligeiramente, levando a uma intensificação da aplicação à base de neonicotinoide – mesmo sob proibição pelo Ibama da aplicação aérea do composto.
40 a cada 100 gotas viajaram para além do algodoal da Fazenda Alba Baumwolle. 1 a cada 100 foram parar a mais 1 km de distância do local.
Da varanda da sede, Flora, enquanto sugava pelo canudinho o suco da caixinha, tinha à vista os volteios da aeronave. Não podia ver o exército de microgotas desgarradas. Via apenas a névoa das gotas maiores caindo exatamente sobre os pés de algodão. Ademais, garantiu-lhe o agrônomo, o produto era pouco tóxico para animais – isto é, para vertebrados, que são os únicos seres que valem a pena ser preservados (pelo menos na cartilha ambientalista classe média em que ela havia se alfabetizado; sim, havia as abelhas também, úteis, ao contrário das daninhas formigas e outras pragas rastejantes, mas estavam tãããão longe que não eram motivo para preocupação).
Estava absorta em outros pensamentos: a instalação da antena de celular naquelas bandas. Era, sem dúvida, um progresso trazido à cidade, graças à contribuição significativa da GC Foods. Mas a incidência de 30 casos de leucemia e de mielomas múltiplos naquele fim de mundo de 13 mil habitantes era, para Flora, a prova concreta do perigo da radiação de micro-ondas emitida pela torre.
"Quer um gole?", ofereceu a George.
"Eca. Odeio pêssego."
"Nossa, é meu sabor predileto."
Dali a dois meses, Flora reclamaria do súbito aumento do preço do suco de caixinha.
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(Capítulo 7.)
Recorde mundial de tiro olímpico no próprio pé
O Comitê Olímpico Brasileiro, que já não anda com boa imagem por causa dos eventos relacionados ao roubo de dados do Locog (mesmo com os panos quentes jogados) e também à invasão da sede da Confederação Brasileira de Desportos no Gelo*, resolveu se queimar de vez em pira olímpica.
Está acionando extrajudicialmente - com promessas de ir para as barras dos tribunais se não atendido - os organizadores das chamadas "olimpíadas acadêmicas": como a Olimpíada Brasileira de Matemática, de Física, de História.... Por um raciocínio torto, o COB alega que tais usos do termo "olimpíada" lhe causam prejuízos.
Não são eventos comerciais, não são nem mesmo de natureza esportiva (como as paraolimpíadas) que pudesse levar a algum tipo de competição de marca.
Algumas dessas competições acadêmicas, de fato, usam logomarcas baseadas nos anéis olímpicos e isso poderia ser alterado. O Ato Olímpico, de 2009, protege os símbolos relacionados aos jogos olímpicos e paraolímpicos (ou paralímpicos como querem o COI e o COB). O COB quis que entre os termos protegidos fosse incluído até "olímpico" e "olimpíada", mas sem sucesso: estão protegidas, no entanto, as expressões "Jogos Olímpicos" e "Jogos Paraolímpicos".
O termo "olimpíadas" é privativo do COB pela lei 9.615 de 1998 (art. 15, parág. 2o). Porém, é dito explicitamente "permitida a utilização destas últimas quando se tratar de eventos vinculados ao desporto educacional e de participação" (na redação dada pela lei 9.981 de 2000)*
Em20092010, o COB tentou tirar do ar uma propagandapublicidade de supermercado que falava em "olimpíadas", mas a Justiça rejeitou a demanda.
Os organizadores das "olimpíadas acadêmicas" poderiam levar o caso aos tribunais com boas chances de vitória. Mas isso custa dinheiro, coisa que eles, no geral, não têm. Porém, como o MEC organiza alguns, há espaço paraa essa sanha insana do COB ser podada.
Ou um acordo que eu acharia justo: ok, o COB fica com a exclusividade do temo "olimpíada", porém deixa de receber as verbas públicas (o seu, o meu e o nosso dinheirinho suado) que o sustenta.
*Upideite(04/out/2012): adido a esta data.
Está acionando extrajudicialmente - com promessas de ir para as barras dos tribunais se não atendido - os organizadores das chamadas "olimpíadas acadêmicas": como a Olimpíada Brasileira de Matemática, de Física, de História.... Por um raciocínio torto, o COB alega que tais usos do termo "olimpíada" lhe causam prejuízos.
Não são eventos comerciais, não são nem mesmo de natureza esportiva (como as paraolimpíadas) que pudesse levar a algum tipo de competição de marca.
Algumas dessas competições acadêmicas, de fato, usam logomarcas baseadas nos anéis olímpicos e isso poderia ser alterado. O Ato Olímpico, de 2009, protege os símbolos relacionados aos jogos olímpicos e paraolímpicos (ou paralímpicos como querem o COI e o COB). O COB quis que entre os termos protegidos fosse incluído até "olímpico" e "olimpíada", mas sem sucesso: estão protegidas, no entanto, as expressões "Jogos Olímpicos" e "Jogos Paraolímpicos".
O termo "olimpíadas" é privativo do COB pela lei 9.615 de 1998 (art. 15, parág. 2o). Porém, é dito explicitamente "permitida a utilização destas últimas quando se tratar de eventos vinculados ao desporto educacional e de participação" (na redação dada pela lei 9.981 de 2000)*
Em
Os organizadores das "olimpíadas acadêmicas" poderiam levar o caso aos tribunais com boas chances de vitória. Mas isso custa dinheiro, coisa que eles, no geral, não têm. Porém, como o MEC organiza alguns, há espaço para
Ou um acordo que eu acharia justo: ok, o COB fica com a exclusividade do temo "olimpíada", porém deixa de receber as verbas públicas (o seu, o meu e o nosso dinheirinho suado) que o sustenta.
*Upideite(04/out/2012): adido a esta data.
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 5
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 4 aqui.)
"'Fessô,
fessô', era assim que ele me chamava. 'Fessô, mas como que pode,
como é que pode o efeito estufa não existir?' Eu: 'Não é que o
efeito estufa não exista. Ele existe. Mas na estufa. Agora a Terra.'
Alguém aí na plateia já viu se no céu tem paineis de vidro? Não
tem. A Terra é aberta. Então não é uma estufa. Quem já viu uma
estufa aberta? Pelo jeito só os aquecimentistas alarmistas. E tem
mais. Olha esta foto. O que é?"
Todos os presentes em uníssono: "Uma estufa."
"Cês tão colando, hein?"
Risos.
Mais
risos.
"Aqui,
aqui.", frisava com a luz do laser, "Aqui é um gráfico de
temperatura. É a temperatura desta estufa. Vejam, a curva sobe e
desce. De dia, quando a luz do Sol bate, a temperatura da estufa
aumenta. À medida em que o Sol vai subindo, subindo, a temperatura
sobe junto. Aí o Sol vai baixando e a temperatura vai caindo. Chega
à noite e a temperatura continua caindo. E vai voltar a aumentar.
Ela, a temperatura, sobe e desce, na verdade fica oscilando e não
sai do lugar. A temperatura média dessa estufa é de cerca de 30oC.
Isso no verão. Ao longo do ano varia um pouco. O que a estufa está
fazendo. Comparem com a temperatura de fora da estufa ao longo do
dia. O que a estufa está fazendo é que a temperatura dentro oscila
menos. Desculpe-me pelos detalhes aborrecidos, mas o que quero é que
vejam como a temperatura se comporta em uma estufa."
E começou uma coreografia ondulando sua mão esquerda na horizontal, depois a mão direta.
O público ria.
"Agora veja isto aqui." Era o famoso gráfico de taco de hóquei.
"Nada a ver com aquele outro, né? Esse gráfico aqui é o que os alarmistas dizem que representa a temperatura da Terra. Se for um gráfico verdadeiro, é de um forno, não de uma estufa. Os aquecimentistas devem botar a plantinha que eles têm na casa deles, um vasinho de petúnias, botar no forno e aí coçam a cabeça: ué, minha flor morreu queimada. Eles não sabem a diferença entre um forno e uma estufa."
Gargalhadas e aplausos.
"Mas além de tentarem assar um frango na estufa, os alarmistas mentem. Vejam isto." O gráfico anterior do taco de hóquei se expandia temporalmente, apresentando a oscilação registrada da temperatura até cerca de 30 mil anos atrás.
"É o real gráfico da temperatura da Terra desde o último máximo glacial. Vejam como a variação da temperatura é muito maior do que nesta pontinha aqui onde estamos. Ou seja, não tem aquecimento nenhum."
"O que foi, meu bem? Não está gostando da palestra do professor Ricardo Rizzo?"
Flora
tentava absorver aquilo. Estava em franco constraste com o que lhe
ensinara o professor de biologia no colégio. Mas claro que um
professor doutor da USP saberia muito mais. Sobretudo tendo feito
pesquisa no Ártico. Ao menos era o que se informava o minicurrículo
apresentado no material impresso daquele evento: "Orgulhosamente
patrocinado pela GC Foods, que acredita no futuro do país e investe
na pesquisa nacional."
Sentiu um calafrio. Era o ar-condicionado a toda. O salão parecia uma geladeira, deixando a todos os presentes confortavelmente protegidos do inferno lá fora: um veranico que durava já toda a primeira metade do inverno, 40oC a sombra.
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(Capítulo 6.)
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 4 aqui.)
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O
professor da USP arrancava gargalhadas da plateia.
Todos os presentes em uníssono: "Uma estufa."
"Cês tão colando, hein?"
Risos.
"Muito
bem, é uma estufa. Vocês estão afiados. Podem ser alunos da USP.
Depois desta palestra podem passar lá na secretaria de graduação
do instituto pedir o diploma."
E começou uma coreografia ondulando sua mão esquerda na horizontal, depois a mão direta.
O público ria.
"Agora veja isto aqui." Era o famoso gráfico de taco de hóquei.
"Nada a ver com aquele outro, né? Esse gráfico aqui é o que os alarmistas dizem que representa a temperatura da Terra. Se for um gráfico verdadeiro, é de um forno, não de uma estufa. Os aquecimentistas devem botar a plantinha que eles têm na casa deles, um vasinho de petúnias, botar no forno e aí coçam a cabeça: ué, minha flor morreu queimada. Eles não sabem a diferença entre um forno e uma estufa."
Gargalhadas e aplausos.
"Mas além de tentarem assar um frango na estufa, os alarmistas mentem. Vejam isto." O gráfico anterior do taco de hóquei se expandia temporalmente, apresentando a oscilação registrada da temperatura até cerca de 30 mil anos atrás.
"É o real gráfico da temperatura da Terra desde o último máximo glacial. Vejam como a variação da temperatura é muito maior do que nesta pontinha aqui onde estamos. Ou seja, não tem aquecimento nenhum."
"O que foi, meu bem? Não está gostando da palestra do professor Ricardo Rizzo?"
"Não,
não é isso, George. Estou só pensando a respeito das coisas."
Sentiu um calafrio. Era o ar-condicionado a toda. O salão parecia uma geladeira, deixando a todos os presentes confortavelmente protegidos do inferno lá fora: um veranico que durava já toda a primeira metade do inverno, 40oC a sombra.
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(Capítulo 6.)
Jornalistas sabem estatística? Uma outra leitura sobre estatística de leitura.
Manchete da Folha: "Maioria dos brasileiros não lê para as crianças, revela Datafolha" a respeito dos resultados da pesquisa realizada pelo Datafolha a pedido da Fundação Itaú Social sobre Leitura Infantil.
De fato, entre os 2.074 entrevistados, 63% disseram "não" para a primeira parte da pergunta: "Atualmente você costuma ler livros ou histórias para alguma criança? O que você é da criança?". Aí a reportagem da Folha contrasta o resultado com o fato de 96% dos entrevistados declararem ser importante o incentivo da leitura em crianças.
O brasileiro é mesmo um fanfarrão, não? Faça o que eu digo, não o que eu faço. Hã, mas alto lá. Segundo o Censo 2010, as crianças com menos de 9 anos correspondiam a 13,5% da população. Então, menos de 30% da população são pais de crianças com menos de 9 anos no Brasil.
37% que dizem que costumam ler livros para crianças é significativamente *acima* da proporção de pessoas *diretamente* ligadas a crianças pequenas (teste qui-quadrado p < 1,9.10^-24).
Eu destacaria em manchete: "Brasileiros leem para crianças mais do que o esperado".
Tios e tias (8%) leem tanto quanto os pais (7%) (ainda que menos do que as mães 13%). Avós (5%) também dão sua contribuição.
Upideite(03/out/2012): Dose de cautela na interpretação de resultado de pesquisa de *opinião* é sempre necessária. Pode haver variação no que as pessoas entendem por "atualmente" (foi hoje, ontem, mês passado, ano passado), "costuma" (uma vez na vida, todos os dias, pelo menos uma vez por semana) e criança (12 anos, em idade pré-escolar, pré-alfabetização). E, claro, pessoas que mentem descaradamente.
De fato, entre os 2.074 entrevistados, 63% disseram "não" para a primeira parte da pergunta: "Atualmente você costuma ler livros ou histórias para alguma criança? O que você é da criança?". Aí a reportagem da Folha contrasta o resultado com o fato de 96% dos entrevistados declararem ser importante o incentivo da leitura em crianças.
O brasileiro é mesmo um fanfarrão, não? Faça o que eu digo, não o que eu faço. Hã, mas alto lá. Segundo o Censo 2010, as crianças com menos de 9 anos correspondiam a 13,5% da população. Então, menos de 30% da população são pais de crianças com menos de 9 anos no Brasil.
37% que dizem que costumam ler livros para crianças é significativamente *acima* da proporção de pessoas *diretamente* ligadas a crianças pequenas (teste qui-quadrado p < 1,9.10^-24).
Eu destacaria em manchete: "Brasileiros leem para crianças mais do que o esperado".
Tios e tias (8%) leem tanto quanto os pais (7%) (ainda que menos do que as mães 13%). Avós (5%) também dão sua contribuição.
Upideite(03/out/2012): Dose de cautela na interpretação de resultado de pesquisa de *opinião* é sempre necessária. Pode haver variação no que as pessoas entendem por "atualmente" (foi hoje, ontem, mês passado, ano passado), "costuma" (uma vez na vida, todos os dias, pelo menos uma vez por semana) e criança (12 anos, em idade pré-escolar, pré-alfabetização). E, claro, pessoas que mentem descaradamente.
terça-feira, 2 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 4
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 3 aqui.)
Pelo
celular, George seguiu acertando com o capataz as ordens do mês para
a Fazenda Rebelo, ao norte de Mato Grosso, na fronteira com Rondônia.
Dali a pouco estaria in loco para acompanhar o término das obras da
pista de pouso. A emenda parlamentar fornecera a verba necessária
para a construção do aeroporto municipal. Sim, dentro da Fazenda Comuna Rebelo. Tecnicamente a área havia sido doada para a prefeitura, mas
um obscuro mecanismo havia conferido o uso preferencial pelo antigo
dono – o dono de fato. De todo modo, em uma cidade com menos de
três mil habitantes, o único a efetivamente usar o aeródromo seria
ele mesmo e seus funcionários. E, eventualmente, alguma autoridade.
A
obra havia sido brindada com autorização para a derrubada da
floresta – com um EIA-RIMA produzido a toque de caixa e sob medida
– incluindo uma faixa no entorno. Faixa que foi alargada e parte
substancial seria ocupada para cultivo da soja. "Seria um pecado
deixar um pedaço de terra tão bom sem uso."
A
área avançaria sobre a porcentagem da reserva legal. Era com isso
que o capataz estava apreensivo. Alguém havia buzinado em seu ouvido
de que daria encrenca. Ouvir as palavras de George o deixava mais
tranquilo. Afinal, a propriedade estava em nome do capataz. Se
encrenca houvesse, sobraria só para ele.
Do
chuveiro uma voz entoava uma canção.
"...And
they can't turn on the rain machine. And they tell me there is no
more space. Won't you turn around..."
"Cuz
I hate when I cannot see your face..."
Ela
abraçou-se a George, recostando sua cabeça no ombro do amado – na
verdade no braço, dada a diferença de altura entre eles. George
baixou sua mão correndo as costas da menina terminando o percurso
com uma apalpada.
Flora
soltou um gritinho de falsa indignação.
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(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 3 aqui.)
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"Regino,
não há nada a temer. Nossa maioria é folgada. Anistia ampla, geral
e irrestrita está garantida. Pode tratorar, passa a corrente,
precisamos ampliar a área de produção já que estamos produzindo
menos por hectare."
Da
janela do quarto, George via o morro. Tão belo era em sua memória das
incontáveis vezes em que se hospedara ali. Uma linda floresta a
cobri-lo da base ao topo. Mas agora. Agora horrendas casas subiam sua
encosta, substituindo as árvores que tanto lhe alegravam os olhos.
Não se ouviam mais o canto dos pássaros de antes. Não chegou a
formular completamente uma maldição sobre aquele aglomerado urbano
subnormal.
"That
the river burns like the gasoline..."
A
água cessou, mas os versos continuaram a ser entoados:
Saindo
de roupão e enxugando a cabeça, aproximou-se de George que, calado,
mirava o morro.
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segunda-feira, 1 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 3
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.
(Capítulo 1 aqui; capítulo 2 aqui.)
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(Capítulo 1 aqui; capítulo 2 aqui.)
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"Não."
"Mas senhor..."
"George. Senhor está no céu."
"...eu estou me demitindo."
"Já disse que não aceito."
"Não tenho condições de continuar."
"Eu aumento seu salário."
"Não é o caso. Não é o dinheiro."
Não que o salário não viesse a fazer falta. As despesas em casa aumentaram com a mudança de Kátia para o apartamento do namorado. A mensalidade havia sofrido um reajuste também. E havia as matérias de dependência - Flora era excelente aluna, mas as repetidas faltas por causa das viagens do trabalho levaram à depê. Talvez tivesse que desistir de seu sonho e voltar ao interior. Ainda assim a perspectiva de trabalhar como atendente em uma lojinha de uma pequena cidade lhe parecia melhor do que seguir violando seus princípios.
Havia adiado a decisão o quanto podia.
Entre machismo, mentiras e crimes ambientais, a gota d'água fora o caso de exploração de mão de obra em condições análogas à escravidão. Outra vez havia denúncia antiga, sindicância interna e relatório da auditoria garantindo ser inverídica a história. Mas uma mudança no Ministério Público Estadual teve consequências indesejadas para o esquema vigente. O procurador anterior, envolvido até a medula, havia sido flagrado em escutas telefônicas mais do que comprometedoras revelando suas relações com conhecido contraventor. Ésquines Montes foi compulsoriamente aposentado. "Caiu pra cima" um promotor encrenqueiro - entenda-se alguém que leva o serviço a sério - da capital. Não o queriam em lugar nenhum. No jogo do empurra, virou procurador de justiça daquela comarca. Alguém bateu com a língua nos dentes para o procurador, que acionou a Procuradoria Regional do Trabalho, que, a contragosto, efetuou o flagrante.
"Não posso ficar. Não concordo com como as coisas são conduzidas aqui."
"Eu sei. Por isso preciso de você aqui."
"Como???"
"Flora, você é uma jovem com ideias nobres. Foi por isso que te contratei. Há coisas aqui que precisam ser mudadas. E é seu idealismo que irá mudar. A empresa precisa de você. Eu. Eu preciso de você." George segurou Flora pelos dois braços, mirando-a nos olhos.
Ela não gostou nem um pouco de ser agarrada daquele modo possessivo. Mas aquele olhar. Meu deus, aquele olhar.
A voz de George passou de um tom de exasperação desesperada para um terno.
"Preciso. Preciso mesmo de você. Quero mudar, Flora. Quero mudar. Só você pode me ajudar. Você me ajuda?"
Era uma exposição inadequada de fragilidade para um homem daquela idade e posição. Ou assim pensariam as pessoas comuns. Flora se sentiu tocada. Era a chance que queria. E não poderia negar auxílio a alguém necessitado. Mesmo ao Generoso Corruptor, ao Grande Calhorda, ao Galã Canastrão, ao Grosso Correntão. Quem sabe não nascia ali o Gentil Conservacionista?
Flora não estava convencida disso. Mas aquele olhar, meu deus.
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(Capítulo 4 aqui.)
(Capítulo 4 aqui.)