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A brisa da madrugada lhe regelava os ossos. A fogueira Dakota estava quase extinta, mas àquela hora não convinha se aventurar nos arredores em busca de mais lenha. Encolheu-se em posição fetal sob a coberta - uma fétida pele semiapodrecida de carneiro. Há dois sóis não ingeria nada além de água suja fervida.
A Dra. Lamarino já viveu dias melhores. Fungou em um raro instante de divertimento com uma piada pessoal: pensou que também já vivera dias piores em seus, agora distantes, anos de pós-graduação.
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"Sra. Atalia, tem um rasgo no seu macacão."
"M..."
Não havia de ser nada. Só uma aborrecida quarentena de uma semana. A pressurização do traje certamente evitara a entrada de qualquer patógeno que estivera no ambiente, se é que haveria algum fora dos frascos, placas e tubos selados naquele laboratório NB-4.
170 horas depois, sem sinal de qualquer sintoma, e com todos os exames serológicos resultando em negativo, Lamarino foi promovida para o estado de observação e liberada do isolamento.
Quatro meses depois, uma leve febre. Não, não haveria de ser... haveria? Novos exames indicaram uma gripe comum. A tempo de participar de um congresso de virologia no México.
Duas semanas, já em casa, um email cancelando a visita do Dr. Romero agendada durante o congresso, por motivos de força maior. Lucio Romero, aclamado neurovirologista (e alquimista amador - suas experiências em busca da lapis philosophorum eram conhecidas, mas recobertas com um constrangido silêncio acadêmico ou atribuída à sua notória excentricidade), fora acometido por uma estranha doença de rápida evolução. Tornara-se progressivamente ansioso, irritadiço, insone, violento, e alucinado e delirante. Chegara a morder a enfermeira em um de seus acessos. Tudo isso, claro, foi mantido no mais absoluto sigilo. Ou tanto quanto foi possível se manter.
Fatos estranhos começaram a se acumular e a escalar. A enfermeira mordida também veio a se tornar agressiva e a atacar outras pessoas. "Quero meu emprego de volta!", rosnava enquanto acertava o diretor do hospital com uma cadeira. Ao fim do ano um forte sentimento de pânico havia se instalado. O protocolo Smith? fora acionado. Atire antes, pergunte depois. Casos similares começaram a pipocar ao redor do globo: Rússia, Japão, Austrália... Fronteiras foram cerradas. Espaços aéreos, fechados. Deslocamentos internos, restritos. Mas a agitação popular não pôde ser contida. Saques, linchamentos, esquartejamentos, incêndios criminosos, violações de todo tipo. Relatos de cadáveres ressurretos ávidos por carne humana. "Na cabeça, mire na cabeça!"
Artefatos nucleares chegaram a ser detonados, porém com destruição localizada. O grosso da mortandade inicial fora ação de formiguinha: civis pesadamente armados. Corpos putrefatos espalhados por toda parte. Economia, da mais básica, paralisada. Doenças e desnutrição multiplicaram por cem o efeito da carnificina inicial - que continuava, ainda que a um ritmo bem mais lento com o esgotamento das munições: armas de fogo deram lugar a equipamentos de guerra mais básicos, lanças, facas, flechas, porretes e até pedras e mãos desnudas.
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Zumbis... "Zumbis", fungou Lamarino em outro instante de divertimento. A ironia é não havia zumbi algum. Nunca houvera. Mas a mídia e a sociedade não estavam interessadas em um caso de intoxicação por metais pesados - anos de inalação de vapores de mercúrio e ingestão de chumbo, durante os experimentos alquímicos da transmutação de metais em ouro haviam afetado o sistema nervoso de Lucio Romero. Alterações iniciais de comportamento foram tidas por excentricidades de um gênio já esquisito. Apenas próximo ao estado terminal, com o agravamento do quadro, reconheceram o problema. A progressão fora bem mais lenta do que pareceu ao fim.
O ambiente estressante de um hospital nunca foi um bálsamo aos espíritos de seus funcionários. A demissão resultada de uma operação de acobertamento de um pequeno escândalo bem poderia ser o gatilho a acionar um ataque de fúria.
Entre esses dois fatos, várias histórias poderiam ser criadas. Claro que o storytelling mais cativante suplantaria quaisquer das demais alternativas. O zeitgeist funcionaria como catalisador e filtro, não importava a verdade, pouco até a verossimilitude. Afinal, o que era a verdade senão uma construção social? O pós-modernismo era a melhor muleta para o sensacionalismo. Mas o alimento era mesmo a cultura popular pelo bizarro. Zumbis. Sim, zumbis eram melhores do que envenenamento e neurose ocupacionais. A sensação da anomia - contra que governos inconfiáveis a espionarem descaradamente seus cidadãos em nada ajudavam - fazia as teorias da conspiração fermentarem. Virologista. Ah há, claro que era uma cepa a ser utilizada como bioarma. Um vírus zumbificante. Os que eram ridicularizados por anos como teóricos da conspiração estavam certos. "Eu sabia" era a reação de muitos. "Como você não quer ver a verdade, Dra. Atalia? Claro, você é mais uma vendida ao sistema da indústria farmacêutica, do complexo industrial-militar, do capitalismo imperialista."
Fatos sem correlação eram agregados pelos noticiários ávidos em angariar audiência e leitorado. Ataques histéricos que sempre houve em qualquer lugar do mundo, de repente, faziam parte de uma única pandemia.
Caça às bruxas, vendetas pessoais, pura maldade puderam extravazar sob a égide de autodefesa. Mesmo em países de legislações restritivas quanto à posse de arma não era difícil de se obter ilegalmente mesmo em situações normais. À progressão da dissolução da normalidade social tanto menor a capacidade de se fazer cumprir a ordem jurídica. A escalada era irrefreável.
Zumbis... "Zumbis", fungou Lamarino novamente. Sim, de fato havia. Um monstro do reino dos mortos a se alimentar dos vivos; uma criatura morta insensível que se recusa a se ver como tal, a fagocitar as energias vitais das frágeis criaturas viventes. Zumbis. Eles são o sistema. Zumbis. Ele são a sociedade. Zumbis. Eles somos nós. Zumbis. Nós somos eles.
Os primeiros raios de sol afastavam o gélido ar do interior da floresta de araucárias. Atalia Lamarino empacotou seus parcos pertences. Sua barriga roncava, mas aquele local não era seguro. Havia ainda hordas de bandoleiros por ali. Procuraria outro lugar. Um lugar mais afastado do que restava de zumbis sobreviventes. Um lugar onde pudesse finalmente terminar de ler seu exemplar do Manual Compacto dos Escoteiros-Mirim. Poderia aprender a fazer um pão de caçador, o que lhe garantiria um recurso mais estável de comida. Por ora, era caminhar.
Caminhar pra algum destino indefinido. A febre, que jamais lhe abandonara por completo nestes anos caóticos, recomeçara. Mas aquele local não era seguro.
* Barbara, The Night of the Living Dead, 1990
2 comentários:
Pareceu-me pouco crível que o Lamarino estivesse numa floresta de araucária.
Mas *o* Lamarino não esteve numa floresta de araucária. Rere.
[]s,
Roberto Takata
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