sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Falha sísmica: da prisão dos cientistas italianos

A Justiça italiana conseguiu transformar a tragédia do terremoto de Áquila, em 2009, com cerca de 300 mortos em uma piada internacional.

Piada de mau gosto. Sete membros da Comissão Nacional para Previsão e Prevenção de Riscos Maiores, dos quais seis são cientistas (Enzo Boschi, então presidente do Instituto Nacional de Geofísica e Vulcanologia; Franco Barberi, da Universidade de Roma 3; Mauro Dolce, chefe do esceritório de risco sísmico do Departamento de Defesa Civil em Roma; Claudio Eva, da Universida de Gênova; Giulio Selvagg, diretor do Centro Nacional de Terremotos do INGV e Gian Michele Calvi, do Centro Europeu de Treinamento e Pesquisa em Engenharia de Terremoto em Pavia) e um, membro do governo (Bernardo De Bernardinis, então vice-presidente do Departamento de Defesa Civil), foram presos acusados de homicídio culposo por minimizarem os riscos de terremoto na região após uma série de abalos menores e um pouco antes do sismo mais intenso que causou mortes e destruição.

Carlos Orsi comenta sobre a decisão. E uma longa reportagem da Nature no ano passado dá detalhes da acusação.

Só o fato de se instaurar um processo nesses termos já era uma piada. A acusação alega que o processo não é motivado por falhar em prever terremotos, mas por fornecerem "informações incompletas, imprecisas e contraditórias". Então temos que prender *todos* os cientistas. A ciência é, em boa parte, motivada pelo contraditório - é isso que leva a se tentar testar hipóteses concorrentes; por natureza é incompleta, em qualquer momento é impossível se ter conhecimento de todos os aspectos possíveis e, por isso, ela é imprecisa (mesmos as medidas mais precisas comportam uma margem de erro, que é expressa numericamente em muitos relatos científicos).

Podemos ser mais caridosos quanto à acusação: seriam mais incompletas, mais imprecisas e mais contraditórias do que seria o aceitável pelos padrões dos conhecimentos científicos atuais. Ainda assim há um grande problema: essencialmente os terremotos são imprevisíveis - é possível se estimar uma probabilidade dentro de um prazo para uma dada região; mas essa probabilidade comporta necessariamente um grande grau de incerteza (somente para prazos suficientemente longos e áreas suficientemente grandes é possível se trabalhar com médias).

Ocorre que a preocupação era com uma área muito restrita: a cidade de Áquila, em um tempo igualmente restrito: um prazo de menos de um ano. Ocorre que desde 1315, na cidade, temos 10 casos de abalos de intensidade razoável (cerca de magnitude 5 ou mais na escala Richter). Considere a situação de 2009: 10 abalos grandes em 694 anos de história. Uma probabilidade de 0,144%

O que as autoridades italianas queriam que fosse dito? Que era caso de preocupação diante de uma chance de menos 1%? Vamos admitir que, sim, foram negligentes. Então, *todas* as autoridades italianas estão sendo negligentes em permitir que os habitantes de Áquila continuem morando naquela região, já que a probabilidade geral continua sendo de 0,144%/ano.

Eu sugiro que os sismólogos italianos peçam asilo no Brasil, só por garantia de não conseguirem reverter essa condenação sem sentido em seus recursos de apelação.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Juíza processa blog do Sakamoto por publicar e criticar liminar da magistrada

Leonardo Sakamoto está sendo processado pela juíza Marli Lopes da Costa de Goes Nogueira por haver reproduzido e criticado no blog do próprio jornalista teor da liminar da magistrada que suspendia uma ação do Ministério Público de liberação de trabalhadores em condições análogas à escravidão.

A juíza quer que o texto e os comentários sejam removidos sob pena de multa diária de R$ 10 mil, além de um valor a ser determinado por danos morais.

Sakamoto não irá remover até a decisão final.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Kátia Abreu, rural ≠ ruralista. Grato.

A Senadora Kátia Abreu, na Folha de São Paulo, escreveu:

"Ruralistas são os que vivem no meio rural --e é de lá que vem o alimento indispensável ao ser humano. Combatê-los por esse 'mal' de origem é levar o preconceito a um grau irracional."

Ou seja, ela, arbitrariamente, *redefiniu* o termo ruralista com o propósito de dizer que é preconceito de origem criticar os ruralistas.

Peguemos as definições do Aulete Digital:
"a2g.
1. Ref. ou inerente ao, ou próprio do ruralismo
2. Diz-se de quem é dono de uma propriedade rural ou defende seus interesses (empresário ruralista; entidade ruralista).
3. Pol. Diz-se de que ou quem segue o ruralismo como orientação política (bancada ruralista).
4. Art.pl. Diz-se do artista que prioriza temas rurais em suas obras (pintor ruralista; poeta ruralista); bucólico s2g.
5. Dono de propriedade rural.
6. Aquele que defende os interesses rurais; aquele que se preocupa com os problemas rurais.
7. Pol. Aquele que segue o ruralismo como orientação política."

O Michaelis:
"adj e s m+f 
1 Diz-se do, ou o artista que nos seus trabalhos dá preferência à representação de cenas rurais.
2 Diz-se da, ou a pessoa que se interessa pelos problemas ou coisas agrários."

O uso que a senadora condenada é mais do que abonado pelos dicionários: ruralista é "aquele que defende os interesses dos proprietários rurais". Quem vive no meio rural é um "morador da zona rural, ou, simplesmente rural", como o que vive na cidade é "morador da zona urbana, ou, simplesmente urbano".

Um ruralista pode ser um morador da zona urbana.

A senadora tem todo o direito de inventar um novo significado para a palavra para seu uso. Só não pode pegar essa nova acepção para reinterpretar marotamente o que os outros dizem.

Alguém poderia perfeitamente dizer que "corrupção" é o ato ou efeito de se estudar o crustáceo Callichirus major. Mas, com isso, não pode sair por aí dizendo que os que bradam contra a corrupção estão querendo investir contra a ciência. São dois significados distintos.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Zero tom de verde - capítulo 15


Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.

(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 14 aqui.)
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"Uh! Bad boys watcha gon,watcha gon, watcha gonna do?"

Com um pulverizador manual, álcool era borrifado sobre a palha acumulada naquele ponto do canavial. Um fósforo aceso e o resto era com a química da óxido-redução.

O processo em si era altamente complexo: o calor inicial degradava a celulose em gás carbônico, vapor d'água, óxidos nítrico e nitroso, óxidos de enxofre, amônia, monóxido de carbono, hidrogênio, hidrocarbonetos (entre metanos, HPAs, benzo-a-pireno, etc.) e compostos orgânicos voláteis diversos, açúcares desidratados, alcatrão, carvão... Monóxido de carbono, hidrogênio, hidrocarbonetos, açúcares, alcatrão e carvão, a alta temperatura, reagiam com o oxigênio do ar decompondo-se em gás carbônico, vapor d'água e óxidos de nitrogênio e de enxofre; liberando calor e luz, isto é, fogo, que degradava mais celulose e realimentava a intrincada reação.

O ar aquecido erguia-se arrastando consigo o vapor d'água, gases e partículas sólidas finas e ultrafinas (PM10). O calor decompunha também matéria orgânica e outros compostos presentes na camada mais superficial do solo. Nutrientes preciosos como sais de nitrogênio, potássio, fósforo, magnésio e cálcio eram perdidos com as cinzas que esvoaçavam no meio da fumaça. Bactérias, fungos, minhocas, nematoides, sementes, plântulas e toda sorte de micro-organismos e pequenos animais e plantas também eram eliminados.

Aceiros garantiam que o fogo ficasse circunscrito à área designada dentro da propriedade. Mas os efeitos não respeitavam essas barreiras.

A coluna alcançava altitudes quilométricas, onde, sob ação de ventos de maiores velocidades espalhava-se por centenas de quilômetros quadrados. Cidades próximas eram mais afetadas, com aumento de até quarenta porcento no movimento em postos de saúde. Pessoas de todas as idades, principalmente crianças e idosos, acometidas de asmas, tosse, irritação nos olhos e na garganta. Partículas de não mais do que 10 micrômetros penetravam fundo no sistema respiratório, até os alvéolos, provocando edemas e consequente dificuldade em respirar. Moléculas de monóxido de carbono atracavam-se firmemente com as hemoglobinas, dificultando a obtenção de oxigênio. Óxidos de nitrogênio, de enxofre e ozônio (formado na baixa atmosfera pela reação de óxidos de nitrogênio, monóxido de carbono e compostos orgânicos voláteis sob a luz solar) complicavam ainda mais o quadro. HPAs e benzo-a-pirenos penetravam na corrente sanguínea, atingiam as células e danificavam as moléculas de ADN, em efeito cumulativo que progressivamente aumentava as chances de se desenvolver cânceres diversos, especialmente no pulmão.

"When they sudedongdong come for you?"

Era a última safra – salvo decisões judiciais contrárias – em que a queimada seria aplicada por força de acordo com o governo estadual – adiantando a data prevista inicialmente no decreto que regulava a matéria. Flora queria que já naquela vez não se usasse do fogo, mas uma comissão representando cerca de mil cortadores preferia a queima, com medo de cobras e outros animais peçonhentos em meio à plantação, além da facilitação do trabalho de colheita sem as folhas mortas da cana.

"When you were eight and you had bad dreams you go to school"

O coração de Flora falou mais alto e ela nem pensou nos efeitos mais graves que haveria de provocar em mais de 10 mil habitantes de cidades no entorno, expondo outros milhão e meio a, no mínimo, sérios incômodos. Sentia que um cálculo frio sobre riscos de mortes de trabalhadores mais diretamente ligados a suas decisões versus de cidadãos que jamais conheceria era por demais insensível.

Esse tipo de cálculo insensível a teria também afastado da associação de produtores que se articulavam contra a mecanização forçada prevista no decreto. Quando grupos de trabalhadores manifestaram apoio ao protesto, temerosos da perda do emprego, ela achou que sua aproximação com o sindicato patronal era a escolha correta.

Rejeitar o cálculo insensível, no entanto, não significava não fazer cálculo algum. O cálculo sensível era bastante simples: a mecanização tiraria uma fonte de renda temporária de dezenas de milhares de trabalhadores – muitos vindo de regiões distantes, sem oportunidades de emprego. O fato de tal cálculo não passar por nada parecido com: a mecanização tornaria os custos de plantio e colheita muito menores ou a colheita mecânica traria problemas na fermentação do caldo na medida em que terra não esterilizada pelo fogo trazia predadores, parasitas e competidores às cepas de leveduras, soava à Flora como sinal de preocupação socialmente saudável.

Ela entendia o argumento de que, por outro lado, a continuidade da exploração da mão-de-obra miserável era uma forma de predatismo social. Mas achava que o argumento de que se opor à substituição por máquinas era o equivalente a se opor à abolição da escravatura estaria fundamentalmente errado. O trabalho era ruim, degradante mesmo com os maiores cuidados possíveis que se tivesse, mas cuidava com toda a sinceridade que milhares de desempregados era pior.

Enquanto via do avião o carbono da cana disperso na fumaça, alisava o carbono compacto de George.

"And you chuck it down me!"
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(Capítulo 16.)

sábado, 20 de outubro de 2012

Zero tom de verde - capítulo 14


Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.

(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 13 aqui.)
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Pop. Pop. Pop.

Os motores de 180 cv propeliam os tratores para diante. Desregulados, a cada premida do acelerador, cuspiam em baforadas uma espessa nuvem preta de fuligem do diesel apenas parcialmente queimado. Os veículos conectavam-se entre si por uma pesada, e algo enferrujada, corrente de aço carbono de grau 8. As altas garras dos pneus cravavam-se no solo macio garantindo toda a tração necessária, evitando a patinagem.

Crac. Crac. Crac.

As árvores estalavam e cediam. Tombavam uma a uma, como soldados em formação sob cerrado fogo inimigo. A mesma arma que lhes derrubava, varria-as, fazendo acumularem-se em um monte de lenha que alimentariam carvoarias próximas. Crianças, ainda longes da adolescência, e suas mães abraçavam em feixes os galhos quebrados e levavam até um caminhão.

Correndo paralelamente mata adentro, os tratores abriam um rasgo acastanhado naquele mundo verde cada vez menor.

Vrum. Vrum. Vrum.

Exemplares mais robustos resistiam ao correntão, como haviam resistido às chuvas, aos ventos, insetos e micro-organismos. Pouco, porém, podiam fazer diante das motosserras. Em meros minutos   encerravam-se histórias seculares. Cada dente de metal arrancava um naco do lenho em sucessão  incessante; a fenda se aprofundava em uma terrível ferida, até surgir do outro lado atravessando cada anel que testemunhara silenciosamente a passagem do tempo desde a independência do Brasil. Senhoras centenárias agora jaziam ao chão. Seus espessos troncos fariam a alegria das madeireiras sem registro.

Toc, toc, toc.

Mas lenha e madeira eram apenas subprodutos daquela atividade frenética. O bem que buscavam era exatamente a área limpa em corte raso. A terra nua.

A golpes de afiados machados, homens, escaldados sob um sol inclemente, removiam os tocos que restavam e que poderiam quebrar as lâminas dos arados motorizados que preparariam o terreno para a plantação.

Cau. Cau. Cau.

As aves perturbadas saíam em revoada, abandonando, contrariadas, seus ovos e filhotes. Arara-piranga, anacã, maitaca-de-cabeça-azul, saíra-beija-flor, alma-de-gato, falcão-de-coleira, saci...

Muitos macaquinhos não eram velozes o suficiente para fugirem do tsunami mecânico a sumir com suas moradias. Vários zogue-zogues acabaram presos no emaranhado de galhos e troncos ao chão. Não poucos esmagados sob o peso do material.

Rãs, lagartos, roedores, insetos, milhões de insetos, aranhas, lacraias e outros artrópodos também tinham, subitamente, suas vidas completamente mudadas ou terminadas. Nem mesmo os microsseres escapavam incólumes.

Em pouco mais de três meses, o vermelho 2,5YR Munsell do latossolo férrico haveria de ceder lugar ao dourado palha do campo maduro de soja.

"Para, para, para!"

O operador de um dos tratores nada ouvia, apenas o som do motor abafado pelo protetor de ouvido. Só percebeu Regino quando este pulou à frente da máquina. Enfiou o pé fundo no pedal do freio. Mas o outro veículo continuou. O trator parado começou a girar puxado pela corrente retesada.

"M..., m..., m..."

O tratorista descontava sua raiva na pobre barra de direção.

Regino estava ali para interromper o desmate seguindo ordens dadas por Flora pelo telefone. Não pôde passar seu recado, mas o intento seria atingido por outro meio.

A tensão nos elos acabou por arrebentar um deles. O chicote de metal acertou o capataz em cheio.

"Deus, deus, deus."
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(Capítulo 15.)

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Zero tom de verde - capítulo 13


Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.

(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 12 aqui.)
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Solange Carvalho é uma mulher pragmática. Há oito anos formada em psicologia e especializada, por acaso, em gestão de recursos humanos; há seis trabalhava no setor de pessoal da empresa admitindo e demitindo funcionários. Aquela situação era-lhe, assim, completamente constrangedora. Precisava da grana para cobrir as despesas do cartão de crédito. Sem os extras pelos serviços especiais desde o passamento de GC, seu salário atual não comportava seu estilo de vida. Dizia para si mesma que se sairia bem daquilo. Anos de estudo em psicologia e de prática em entrevistas a tornara especialista na detecção de mudanças sutis de humor, sinais de contradição e de mentiras. Poderia explorar isso. Sua alma... que se danasse a alma.

"Srta. Solange!"

Ela entrou na ampla sala da presidência. Sentou-se na cadeira de visitas. À sua frente, uma menina  recém-saída formalmente da adolescência, do tipo que parecia empolgada em, pela primeira vez, ter domínio sobre as regras do jogo.

"Fale sobre GC...", comandou Flora, distraída com os pêndulos de Newton, sem olhar para a RH.

"É uma empresa sólida, bem posicionada no mercado..."

"Não a GC Foods. George Campos, o homem."

"Foi um ótimo patrão. Não tenho do que reclamar..."

"Não o patrão. O homem."

"Como?"

"Como alguém mais... íntimo."

Solange entendeu. Estava perdida. Flora sabia. Só lhe restava o protocolo Nixon de denegação implausível.

"O quê?"

"Sem joguinhos, Sô. Posso te chamar de Sô?", ainda brincando com as esferas de aço.

"Eu não... Sra. Campos, não sei do que está falando."

"Silva."

"Como?"

"Silva. Não mudei meu nome. Mas pode me chamar de Flora."

"Certo, Sra. Flora. Não sei do que esteja falando..."

Flora se levantou. Olhando para o teto e batucando uma caneta na palma de sua mão esquerda caminhou para trás de Solange. Curvou-se sobre a RH, sussurrando em seu ouvido.

"Tem certeza?"

"Tenho."

"Sô, por que faz isso?"

"O quê?"

"Sô, você não me deixa alternativas..."

Uma tela desceu rente à parede dos fundos. Cenas comprometedoras eram projetadas.

"E então?"

"Então o quê, Sra. Flora?"

"Não estou certa, mas acho que algumas manobras aí são consideradas ilegais em muitos países. Talvez até mesmo no Brasil..."

"Suponho que sim."

"Continua a negar?"

"Não tenho e não tive nenhum relacionamento..."

"Ok. Vejo que não pretende mesmo falar. Pegue este envelope e passe no RH, acho que você sabe onde fica...", a voz lasciva de até há pouco foi substituída por um tom seco.

Solange mal conseguiu disfarçar o tremor de suas mãos suadas. Como, como podia ter sido traída dessa maneira? Esses vídeos nunca, nunca deveriam ter chegado até Flora. Estava confiante,confiante de que conseguiria o aumento. Assustou-se um pouco quando o diretor de recursos humanos, seu superior imediato, disse que o assunto seria tratado diretamente pela presidente, pela presidente. Ainda assim... não, não esperava que as coisas fossem acabar daquela maneira. Jamais, jamais poderia imaginar isso.

Resmungava entre os dentes.

"Menininha mimada. Conseguiu o que queria. Minha cabeça em uma bandeja de prata. Quer me f...? Que me f... Eu me viro. Sempre me virei."

Tentava se acostumar com a ideia da demissão. Lembrou-se, então, das dívidas no cartão. O desespero sobreveio.

Por um momento parou em seu caminho até a seção de RH. E se... e se voltasse e pedisse desculpas à Flora? Se confessasse tudo, tudo – não que houvesse muitas coisas mais a confessar com aqueles vídeos... Não, não se entregaria. Havia sido traída, porém não pagaria na mesma moeda. Amava George, amava-o com todas as forças. Suportaria tudo por ele. Tudo.

Entregou o envelope para a secretária da seção.

"Que cara é essa, Solange?"

"E com que cara eu deveria estar, Mariana?"

"Até parece que recebeu notícia ruim..."

"Está nas suas mãos."

"Notícia ruim?"

Mariana entregou o conteúdo do envelope.

Anos de estudo em psicologia e de prática em entrevistas a tornara especialista na detecção de mudanças sutis de humor, sinais de contradição e de mentiras. Puro nervosismo gerado por algum outro fator tornava-se indicador de mentira; um intervalo maior para a elaboração da resposta era interpretado como criação de história; olhos para cima à direita indicariam recordação de uma história; para cima à esquerda, imaginação de uma história; para baixo, vergonha... Tudo baseado em teorias terrivelmente falsas. Quantos excelentes funcionários não deixaram de ser contratados ou foram simplesmente demitidos? Quantos funcionários medíocres, mas razoáveis atores não foram promovidos? Não podia calcular. Só conseguia pensar no que agora via em suas mãos.

Seu salário acabara de sofrer um aumento de trezentos porcentos.
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(Capítulo 14.)

sábado, 13 de outubro de 2012

Zero tom de verde - capítulo 12

Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança.

(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 11 aqui.)
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Sangue.

A memória de Simba não alcançava seus anos iniciais em um circo itinerante já algo decadente. A trupe era tocada por uma família de origem romena, provavelmente com raízes ciganas. Na economia de equipamentos, o pai leão e a mãe tigreza de Simba dividiam a mesma jaula. As condições não eram das melhores, tanto que, logo após seu nascimento, ambos vieram a morrer. O filhote foi criado a leite de vaca. Cresceu em meio a um público minguante. Os dias eram cada vez mais difíceis. Já não havia tantos terrenos baldios em que o circo se instalar em suas temporadas nas cidades do circuito. As exigências de segurança, higiene e condições de trabalho eram maiores ano a ano. Os donos desfizeram-se dos cavalos, demitiram o pessoal. Conseguiram lotar o elefante em um zoológico particular. Restava Simba.

Sangue.

A memória de Flora não alcança seus anos iniciais. Nascida em uma cidadezinha do interior paulista na região de Presidente Prudente, não chegou a conhecer o pai, morto em um conflito agrário. A mãe mudou-se para a cidade junto com os filhos, criou-os com a renda da venda de quitutes e com a ajuda de um anônimo benfeitor, que custeou os estudos da filha caçula. A mãe ficou feliz que Flora haveria de se mudar para longe, não por algum sentimento desnaturado, mas temia pela segurança da pequena encrenqueira.

Sangue.

Simba representava uma despesa diária em carne que significava arroz a menos na panela da família Nicolita. Quando o Conselho Tutelar local ameaçou reter as crianças, o patriarca Stefan decidiu que se livrariam de Simba.

Sangue.

Flora vivia metida com um grupo ambientalista. Um grande empreendimento instalaria uma nova fábrica próxima a uma área de manancial. O protesto em algum momento fugiu ao controle. Tiros cuja origem jamais foi esclarecida: se de jagunços armados, de policiais da tropa de choque, de algum manifestante ou membro da massa popular que se aglomerava. Um acertou em cheio o peito do namorado de Flora. Uma garota chorando, coberta de sangue do namorado, protestando por justiça na TV em cadeia nacional foi o suficiente para que o empreendimento fosse engavetado. Quando ela passou no vestibular de uma faculdade na capital, a mãe ficou mais do que aliviada. Preocupada quanto às despesas, e, então, aliviada quando o benfeitor avisou por intermediários que custearia também os estudos e a moradia, depois preocupada quando Flora recusou-se a receber qualquer valor da mãe, ela mesma iria se sustentar, novamente aliviada quando a filha conseguiu um bom emprego.

Sangue.

Stefan Nicolita estava resoluto. Daria cabo ao leão – pra todos os efeitos consideravam Simba um leão. Na manhã seguinte, no entanto, a jaula estava aberta e Simba não estava ali.

Sangue.

Kátia foi uma amizade instantânea. Logo no primeiro dia da faculdade. Convidou Flora, que morava em uma pensão, a ir morar em seu apartamento, bem mais perto. Foi Kátia também quem indicou a vaga para a GC Foods. Mais do que indicou, quase que a obrigou.

Sangue.

A novilha havia morrido com a picada de uma cobra. Simba não sabia. Sabia apenas que era uma refeição fácil. Não comia há mais de uma semana – não que soubesse contar os dias, apenas sentia o tamanho da fome. Aparentemente não sabia também direito o que realmente era uma refeição fácil: enquanto tirava um naco da carne foi avistado pelos peões da fazenda. Assustado refugiou-se no bosque.

Sangue.

Três semanas de intenso treinamento em tiro de precisão. Deveria ser fácil: carregar, mirar, atirar. Nada menos verdadeiro. Verificar as travas, o estado da munição, conferir os mecanismos, a carga de propelente, abrir a câmara de munição, compensar os desvios do vento e a queda pela gravidade, sincronizar a respiração e os batimentos, meditação. Aluna dedicada – até mais do que às aulas de jornalismo – melhorava a olhos vistos a cada dia. Não estava ainda totalmente preparada, mas o acerto de contas era inadiável.

Sangue.

A água era refrescante. Então, uma pontada. Simba se assustou, voltou para dentro da mata. A agitação apenas ajudava ao cloridrato de xilazina atingir os vasos sanguíneos e se espalhar pelo corpo, alcançando seu sistema nervoso. Competindo pelos receptores de alfa-2-adrenérgicos, a depressão do sistema nervoso central sobreveio. Uma leve bradicardia, imagem embaçada e finalmente o mundo sumiu. Quando reapareceu, havia homens vindos de não se sabe onde, fortemente armados, um carro com uma jaula, um extenso campo aberto e árvores.

Sangue.

As pupilas estavam dilatadas. O coração, disparado. A pele, lívida. As narinas, expandidas. A ponta dos dedos, fortemente umedecida com o suor. A criatura vinha em sua direção. Os pelos da juba espalhavam-se aumentando ainda mais seu tamanho aparente. Flora largou o rifle a gás descarregado. Levou a mão direita para trás. Encontrou o que procurava. Doze tiros. Dois certeiros.

Sangue.

Simba caía pela segunda vez. Duas pontadas. Mas agora a dor aumentava insuportavelmente. Até perder novamente a consciência. Para nunca mais recuperá-la. Sangue, sangue se esvaía de Simba pelos dois rombos em sua cabeça.

Sangue.

Flora tremelicava. Seus braços ainda se estendiam para a frente com a arma apontada para o leão, ligre ou o que quer que fosse aquela criatura. Mas se, como temia, ela se levantasse, Flora não conseguiria disparar mais nenhuma bala. O pente estava vazio. Sangue, sangue banhava seu cérebro.

Sangue.
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(Capítulo 13.)