Como uma pessoa recebe uma cantada é um ato pessoal: pode achar um galanteio, pode ser indiferente a ela, pode considerar um aborrecimento menor ou ter uma forte opinião contrária - mesmo a cantadas das mais leves como "e aí, gatinha/o". Não me cabe julgar isso, só respeitar os sentimentos de cada um/a.
Porém, chamou-me a atenção um trecho do texto publicado no Blogueiras Feministas:
"Ao contrário do que muitos homens gostam de dizer por aí, a maioria de nós, mulheres, não se sente prestigiada ou enaltecida ao ser assediada na rua por um sujeito que ela não conhece e, tampouco, tem a intenção de conhecer."
Claro, depende um pouco do significado de assédio - no texto, a autora discute casos grotescos de tocar nas partes íntimas sem permissão, mas também diz que: "um dos medos constante na mente de qualquer mulher é o abuso sexual, que pode começar com uma aparentemente inofensiva 'cantada'" (grifo meu).
Tocar partes íntimas é considerado ato libidinoso e pode ser tipificado como estupro se envolver ameaça (art. 213 do Código Penal) ou violência sexual mediante fraude se envolver modo que dificulte a livre manifestação da vontade da vítima (art. 215) ou assédio sexual se se valer da condição de superior hierárquico (art. 216-A) ou, pelo menos, como ato obsceno (art. 233). Há que se avançar na legislação: por exemplo, não prevê casos que não envolvam ameaça (incluindo demissão) ou fraude realizados em locais não públicos - como no recesso do lar.
Mas, voltemos às cantadas inofensivas. Mesmo estas, se a pessoa não gosta, não devem ser proferidas. Não é este, no entanto, o ponto que discuto. É a afirmação de que a maioria das mulheres não recebem a cantada como elogio. Tecnicamente é verdade, mas não quer dizer que a maioria se sinta ofendida. Pesquisa realizada a pedido da Fundação Perseu Abramo* (do PT) em 2001, mostra que, se 32% das mulheres consideram as cantadas como desrespeitosas, 27% as recebem como elogio; 8% dizem que depende da cantada, 6% são indiferentes e 27% declaram que nunca foram cantadas.
Vendo unicamente pelo lado da reação das receptoras, a questão é um pouco mais matizada. O argumento não é exatamente: "não cante as mulheres porque elas consideram grosseiro", mas, sim: "Assumindo que a sensação de desrespeito tenha o mesmo peso da sensação de elogio e assumindo a probabilidade de que uma cantada tenha 50% de chances de ser do tipo grosseira; tomando-se uma mulher ao acaso da população, há uma chance de (32%+4%)/(100%-27%) = 49,31% de ser desagradável, uma chance de (27%+4%)/(100%-27%) = 42,46% de ser agradável e 8,22% de ser recebido com indiferença; portanto a expectativa de ganho é negativa, ainda que por pouco (-49,31% + 42,46% + 0 x 8,22% = -0,0685); então, a menos que você seja um galanteador muito bom, quando a expectativa de ganho é positiva (+0,0411 se 100% das suas cantadas forem positivas), o melhor é ficar quieto."
Esse raciocínio, no entanto, não vai funcionar bem se levarmos em conta o ganho por parte de quem faz a cantada. Se para o sujeito, ele ganha sempre que cantar alguma mulher, independente da resposta que provocar (um sorriso ou xingamento), a cantada vai ocorrer sempre. Porém, o argumento acima é para sensibilizar parte dos homens susceptível a esse tipo de argumento.
A coisa se complica mais se levarmos em conta o chamado sexismo benevolente. Provavelmente boa parte das cantadas e galanteios poderão ser vistas como reforço da imagem socialmente construída da mulher, qual seja, a de um ser incompletamente independente (é delicada, precisa ser protegida, ser tutelada). Mesmo para um homem mais esclarecido na questão (não é bem o meu caso, tenho que confessar), é um problema que vai entrar em sutilezas ainda maiores. Estudos mostram que as mulheres precisam ser treinadas para detectar casos de sexismo benevolente e nós, homens, mesmo quando enxergamos tais situações, recusamo-nos a ver como algo negativo.
Digamos que se trate de um homem razoavelmente esclarecido diante de uma mulher não treinada (a situação é improvável somente pela parte do homem razoavelmente esclarecido - no entanto, faz sentido somente nesse caso), como ele deve se portar? Respeitar a decisão da mulher como um agente independente ou tutelá-la treinando-a?
Bom esclarecer que ao expor tal situação, não estou tentando caricaturizar o feminismo; considero, porém, a questão bem posta: o que fazer?
Como disse no começo, meu posicionamento é de respeitar a decisão da pessoa. Se ela recebe uma cantada como ofensa pessoal, não passarei uma cantada; se ela recebe bem, não vejo problema algum (mesmo sob o mencionado risco do sexismo). Mas como saber se a garota recebe bem ou mal um galanteio? Se se trata de uma completa desconhecida, pra mim, vale o quadro discutido para uma cantada no meio da rua: de modo geral, é bom evitar (até porque, infelizmente, não me encaixo na categoria dos que dão cantadas certeiras). No entanto, se se conhece a pessoa, pode haver informação suficiente para que a expectativa de ganho seja positiva (para a mulher).
Mas e o fator do sexismo benevolente? A solução que vejo é deixar isso a cargo das mulheres. Que haja conversa e debate entre elas, feministas ou não, e elas decidam por si o que vale e o que não vale. Não no sentido de que um grupo dite para os homens como eles devem agir com todas as mulheres, mas que cada mulher, devidamente informada pelo debate, tenha clareza sobre o modo como deseja ser tratada e os homens respeitem as decisões individuais.
As feministas têm uma outra frente de trabalho também: fazer as próprias mulheres compreenderem o feminismo. Também segundo a pesquisa encomendada pela FPA, somente 45% das mulheres identificam o feminismo com a luta pela igualdade de diretos, 22% acham que se trata da superioridade feminina ou ser briguenta, 16% que é ser feminina (ser vaidosa, cuidar da casa), 23% nunca ouviram falar ou não sabem (a soma final é maior do que 100% - suponho que mais de uma opção poderia ser mencionada).
Disclêimer: O aviso de praxe - sou machista, mas não me orgulho disso.
*Upideite(11/set/2013): O link está quebrado. O atual é este.
*Upideite(8/mai/2014): Um estudo científico sobre o tema. (via @carlosom71)
Mostrando postagens com marcador diretos da mulher. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador diretos da mulher. Mostrar todas as postagens
domingo, 15 de abril de 2012
sábado, 14 de abril de 2012
Um pouco mais sobre anencefalia
A Folha Online publicou o comentário de uma leitora - médica geneticista que terminou o mestrado em 2008 no Instituto Fernandes Figueira - contrária à decisão do STF (ainda que de modo tácito apenas).
Basicamente podemos resumir em dois pontos: a) suplementação da dieta da gestante com ácido fólico (vitamina B9) e b) abertura de precedente para a permissão de interrupção de gravidez em outros casos.
A suplementação com ácido fólico, como a própria autora do comentário diz, reduz o risco de ocorrência de malformação congênita do feto em caso de gestantes com tendências genéticas de 25% para 3% - índice para a população em geral. Bem, se há um risco de 25% para certos grupos, porque na população em geral o risco é de somente 3%? Resposta: porque o tamanho desses grupos com alto risco é pequeno.Ou seja a observação da médica: "Vê-se aí que o mais importante sobre a anencefalia não está sendo comentado, ficando toda a discussão sobre a questão do aborto." não tem sentido estatístico - 3% da população em geral é muito, mas muito, mas muito maior do que os 25% dos casos específicos - não tem então como ser "o mais importante".
De todo modo, mesmo com a suplementação o risco não desaparece. E nem é tão baixo: 3% das gravidezes com algum tipo de malformação (nem todos de anencefalia). No Brasil, são 3 milhões de partos por ano, mais ou menos. Isso corresponde a 90 mil casos de má-formação congênita por ano - com ou sem suplementação de ácido fólico. (Atenção: bom dizer que uma campanha de esclarecimento e de fornecimento de suplementos é importante e tem seu valor, mas nem de longe irá acabar com o drama de gestação de fetos anencéfalos.)
O segundo ponto: "Além disso, a descriminalização de aborto dos anencéfalos abre precedente para o aborto de outras malformações fetais letais, podendo estender-se para aquelas condições com letalidade aumentada (como a síndrome de Edwards e a síndrome de Patau). É uma postura delicada que beira a eugenia." Esse tipo de raciocínio tortuoso é tão comum que tem até um nome especial: "falácia do declive escorregadio". Fácil ver que se isso valesse, valeria o inverso: "Impede-se a mulher de interromper a gestação de feto inviável e se abre um precedente para impedir o aborto em qualquer circunstância - mesmo sob o risco da mulher morrer."
Basicamente podemos resumir em dois pontos: a) suplementação da dieta da gestante com ácido fólico (vitamina B9) e b) abertura de precedente para a permissão de interrupção de gravidez em outros casos.
A suplementação com ácido fólico, como a própria autora do comentário diz, reduz o risco de ocorrência de malformação congênita do feto em caso de gestantes com tendências genéticas de 25% para 3% - índice para a população em geral. Bem, se há um risco de 25% para certos grupos, porque na população em geral o risco é de somente 3%? Resposta: porque o tamanho desses grupos com alto risco é pequeno.Ou seja a observação da médica: "Vê-se aí que o mais importante sobre a anencefalia não está sendo comentado, ficando toda a discussão sobre a questão do aborto." não tem sentido estatístico - 3% da população em geral é muito, mas muito, mas muito maior do que os 25% dos casos específicos - não tem então como ser "o mais importante".
De todo modo, mesmo com a suplementação o risco não desaparece. E nem é tão baixo: 3% das gravidezes com algum tipo de malformação (nem todos de anencefalia). No Brasil, são 3 milhões de partos por ano, mais ou menos. Isso corresponde a 90 mil casos de má-formação congênita por ano - com ou sem suplementação de ácido fólico. (Atenção: bom dizer que uma campanha de esclarecimento e de fornecimento de suplementos é importante e tem seu valor, mas nem de longe irá acabar com o drama de gestação de fetos anencéfalos.)
O segundo ponto: "Além disso, a descriminalização de aborto dos anencéfalos abre precedente para o aborto de outras malformações fetais letais, podendo estender-se para aquelas condições com letalidade aumentada (como a síndrome de Edwards e a síndrome de Patau). É uma postura delicada que beira a eugenia." Esse tipo de raciocínio tortuoso é tão comum que tem até um nome especial: "falácia do declive escorregadio". Fácil ver que se isso valesse, valeria o inverso: "Impede-se a mulher de interromper a gestação de feto inviável e se abre um precedente para impedir o aborto em qualquer circunstância - mesmo sob o risco da mulher morrer."
Assinar:
Postagens (Atom)