sexta-feira, 29 de junho de 2012

O que é um golpe de estado?

Um dos raríssimos textos em que eu discordo praticamente de cada parágrafo de Hélio Schwarstman ("Golpe ou impopularidade?") leva-nos a questionar o conceito de golpe de estado.

Abaixo algumas definições encontradas na literatura da área (não pretende, claro, ser exaustiva, mas algo representativa):
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"Thus, by definition, a coup d'etat is a manifestation of a particular interest as opposed to a general one, and, as such, it carries the stigma of illegitimacy." ["Assim, por definição, um golpe de estado é uma manifestação de um interesse particular em oposição a um geral, e, como tal, carrega o estigma da ilegitimidade."] Jens Bartelson 1997

"For Krejei, a coup d'etat is a relatively mild affair involving a sudden attack on a government, but usually restricted in its objectives and in the degree of ensuing change (Krejei, 1994)." ["Para Krejei, um golpe de estado é uma questão relativamente branda envolvendo um ataque súbito a um governo, mas usualmente restrito em seus objetivos e no grau da mudança ocorrida (Krejei, 1994)"] Peter Siani-Davies 1996

"A coup d'état is an illegitimate replacement or renewal of one governing set of personnel by another (eg the replacement of a ruling faction of a political party by another from that party or another party)." ["Um golpe de estado é a substituição ou renovação ilegítimaal de um conjunto de pessoal de governo por outro (e.g. a substituição de uma facção governante de um partido político por outra desse partido ou de outro partido)."] David Lane 2008

"To summarize, our definition of a coup attempt includes illegal and overt attempts by the military or other elites within the state apparatus to unseat the sitting executive." ["Em resumo, nossa definição de tentativa de golpe inclui tentativas ilegais e evidentes por militares ou outras elites dentro do aparato do Estado para destituir o executivo no cargo."] Jonathan M. Powell & Clayton L. Thyne 2011

"A coup d’état is commonly defined as a speedily executed, extralegal takeover of a government by a conspiratorial group, usually consisting of army officers, that uses force or the threat of force to remove the government and assume power for itself." ["Um golpe de estado é comumente definido como uma toma ilegal e rapidamente executada de um governo por um grupo conspirador, usualmente consistindo de oficiais das forças armadas, que usa a força ou ameaça de força para remover o governo e assumir ele mesmo o poder."] Harvey G. Kebschull 1994

"A coup d'état is a violent challenge to the state, analogous to a rebellion." ["Um golpe de estado é um desafio violento ao estado, análogo a uma rebelião."] Paul Collier & Anke Hoeffler 2005

"A coup d'etat is defined here as the explicit or implicit use of force in attempting to oust persons in the capital of a country from positions of national political leadership." ["Um golpe de estado é definido aqui como o uso explícito ou implícito da força na tentativa de remover pessoas na capital do país de posições de liderança política nacional."] David L. Huff & James M. Lutz 1974


"A coup d'etat is a dramatic event, accompanied usually by pledges for significant alterations; armed forces' withdrawal from power, by contrast, may be protracted, hesitant, and partial." ["Um golpe de estado é um evento dramático, acompanhado usualmente por promessas de mudanças significativas; retirada de forças armadas do poder, em contraste, pode ser adiada, hesitante e parcial."] Claude E. Welch, Jr. 1983


"A coup d'etat is a French word which is more or less synonymous to putsch in German and golpe de estado in Spanish America. It refers to the forcible overthrow of a government by a faction in that government. Unlike an insurrection (typically a poor man's project), the coup involves persons already occupying positions of power. An autogolpe or a self-coup [...]: the head of a constitutional government himself discards the constitution and dissolves the representative organs so he can rule bu decree. In Marxist literature this is termed Bonapartism, after Louis Bonaparte, an elected president who crowned himself as Emperor Napoleon III of France." ["Um coup d'etat é uma expressão francesa que é mais ou menos sinônimo de putsch em alemão e golpe de estado na América Hispânica. Ele se refere à derrubada à força de um governo por uma facção neste governo. Diferente de uma insurreição (tipicamente um projeto de pessoas pobres), o golpe involve pessoas que já ocupam posições de poder. Um autogolpe [...]: o próprio chefe de um governo constitutional descarta a constituição e dissolve os órgãos representativos de modo a poder governar por decreto. Na literatura marxista, isso é chamado de bonapartismo, de Louis Bonaparte, um presidente eleito que se coroou como Imperador Napoleão III da França."] Francisco Nemenzo 1987

"In political theory, a revolution is often distinguished from a coup d'état: a revolution cuts deeper into the existing structure of a society and transforms its sociopolitical institutions. [...] A coup d'état, on the other hand, is a limited political maneuver aimed at changing the existing rulers: it is an indoor sport of the ruling elite and 'carries a minimum of unquit to the people at large.'20 A coup d'état is rarely as profound as a revolution, and certainly not what Trotsky called the 'inspired frenzy' of history.21" ["Em teoria política, uma revolução é frequentemente diferenciada de um golpe de estado: uma revolução corta mais fundo na estrutura social existente e transforma suas instituições sociopolíticas. [...] Um golpe de estado, de outro lado, é uma manobra política limitada objetivando mudar os governantes existentes: é um esporte de quadra coberta de uma elite dominante e 'leva a uma inquietação mínima às povo ao redor'. Um golpe de estado raramente é tão profundo como uma revolução e certamente não é o que Trotsky chamava de 'frenesi inspirado' da história."] Ali Khan 1987
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Há um conjunto de definições que podemos dizer se referenciar a um golpe de estado clássico: o uso de força (ou ameaça da força) por grupos militares (ou apoioado por eles) na derrubada de um chefe de estado eleito.

O que alguns chamam de neogolpe - e que não é absolutamente novo - sai desse modelito clássico. As quatro primeiras definições cobrem melhor: os grupos militares se omitem quanto à questão (o que significa uma anuência tácita com o golpe - do contrário sairiam em defesa do chefe deposto). Mas e quanto à ilegalidade? A definição de Bartelson é melhor, pois não depende de uma ilegalidade explícita: o golpe pode se consumar nos estritos rigores da lei corrente no território em questão. Mas é o *espírito* da ilegalidade que se manifesta: os rituais legais e, especialmente, as brechas na lei são usados justamente contra o processo democrático na defesa de um grupo particular. Daí o que muitos cientistas políticos e sociais chamam de "golpe constitucional".

O golpe clássico (com participação militar) e semiclássico (com evidente quebra constitucional)  tem caído desde o ápice em meados dos anos de 1960 (Powell & Thyne 2011) - Figura 1.


Figura 1. Evolução de golpes (clássicos e semiclássicos) e tentativas no mundo. Fonte: Powell & Thyne 2011.

O quanto isso tem sido substituído por golpes constitucionais é uma pergunta que gostaria de ver respondida em estudos similares. Talvez a taxa de impixamento seja um bom proxy.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Rio+20 = ?

Há os que achem que, no saldo final, a Rio+20 foi positiva pela mobilização popular - casos do Luiz Bento no Discutindo Ecologia e Alexandre Inagaki em Pensar Enlouquece.

Essa participação é legal, claro, mas não acho que compense a falta de decisões substanciais na reunião de cúpula. Em grande parte porque essa mobilização parece ser uma pregação aos convertidos - gostaria de uma pesquisa de opinião pública em contrário. Em parte menor porque, a se valer de outros eventos, essa mobilização perde muito de seu ímpeto no decorrer dos dias. (Seria legal se houvesse algum projeto de monitoramento de atividades que se desenvolvam a partir dessas atividades paralelas na Rio+20.)

Um tanto animador que os prefeitos do C40 tenham costurado um acordo para cortes nas emissões de carbono. A se ver. O Protocolo de Quioto, acordado entre países, não foi adiante - os níveis de produção de gases-estufa só aumentaram.

Na reunião de cúpula, sem metas, não há nem mesmo o que bem cobrar dos governantes. O documento final diz "reafirmamos" 59 vezes. Repetir o que já estava acordado em outros documentos não é um avanço propriamente. "Objectives" aparecem 13 vezes, "aim", 17 vezes, "goals", 39. A maioria para reforçar o que já havia sido decidido anteriormente.

Para o ano 2020 reafirma-se o objetivo de se alcançar um manejo consistente ("sound management") de "produtos químicos e lixo". O que seria esse manejo consistente não aparece (parág. 213). Para o mesmo ano, objetiva-se que metade dos países menos desenvolvidos atinjam os critérios mínimos de graduação - isto é, que saiam dessa classificação (o que já estava acordado no Programa de Ações de Istambul na 4a Conferência das Nações Unidas sobre Países Menos Desenvolvidos) (parág. 34). Nada sobre metas de emissões de CO2 - apenas a expressão da preocupação do aumento da produção de gases-estufa (parág. 191). Para o ano 2025, ações para reduzir detritos marinhos (prág. 163).


Encheram a sala de tanto bode que o máximo de avanço que se conseguiu foi não retroceder. Ok, vá lá, o reconhecimento de se fortalecer o Pnuma/UNEP (seção C. Environmental pillar in the context of sustainable development), mas nada de agência. Nada que se compare às três convenções assassinadaassinadas na Rio-92 ou à Agenda 21. Até a Carta da Terra tinha um tom de urgência que o Futuro que Queremos não consegue transmitir.


Desculpe, mas não acho que isso valha meio bilhão de dólares (ou mais de 80 vezes o que Dilma anunciou que o Brasil investiria no fortalecimento do Pnuma e mais de 50 vezes o que investiria na África em desenvolvimento sustentável). Aliás, alguém fez um levantamento de quanto carbono foi emitido em função da Rio+20 (entre deslocamentos e engarrafamentos gerados)? Sim, desconte-se o que Antonio Patriota pagou para neutralizar o carbono emitido em sua viagem. Como disse Claudio Angelo no Entre Colchetes: "A Eco-92 se repetiu como fraude".

Ah, esses anticorintianos...

Ricardo Zanei, são-paulino assumido, corneta a transmissão da Globo do primeiro jogo da final da Libertadores: "Em noite de Romarinho, Globo 'demoniza' Boca e trata Corinthians como 'Brasil na Libertadores'".

Até é correta a observação de que a Globo caracterizou desnecessariamente o grande Boca Juniors como catimbeiro e coisas do gênero. Mas o jornalista se esquece de um detalhe importante: para *toda e qualquer* transmissão envolvendo equipes argentinas masculinas de futebol (times e seleções) contra equipes brasileiras, a Globo faz isso. Sempre vem à tona expressões como "guerra", "inimigo".

Reclama o jornalista: "A frase 'o Corinthians é Brasil na Libertadores' não foi usada, mas ficou no ar." Primeiro, pra *toda e qualquer* equipe X brasileira masculina de futebol jogando contra uma equipe estrangeira em uma competição Y, os narradores da Globo dizem: "X é Brasil em Y". Segundo, não por acaso, justamente em relação ao Corinthians não dizem isso.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

O velho golpe da democracia...

2004. 2000. Eleições presidenciais americanas. Notadamente a contagem e recontagem de votos no Estado da Flórida que acabou decidindo o pleito por cerca de 380.978 537 votos a favor da reeleição de George W. Bush.*

2009. Hugo Chávez, presidente venezuelano, reapresenta proposta de emenda constitucional para reeleição; proposta rejeitada em plebiscito dois anos antes.

2009. Manuel Zelaya é deposto da presidência hondurenha e exilado por apresentar referendo de emenda constitucional para reeleição. A constituição vigente proíbe reeleição e prevê perda de mandato de quem fizer a proposição. Mas não prevê o exílio. E não houve um processo com defesa.

2012. Fernando Lugo é impixado depois de um julgamento relâmpago de menos de um dia no Senado paraguaio.

Legal que a quartelada não está mais em voga, mas os golpes de estado voltam ao hemisfério neste início de século 21. Agora golpes brancos, disfarçados de ações institucionalmente legítimas. No entanto, a vontade popular é impedida de se manifestar. À direita, à esquerda, ao centro, todas as direções ao mesmo tempo. Isso de golpes consumados. O próprio Chávez, em 2002, havia sido vítima de um golpe que o destituiu, mas conseguiu reverter dias depois. Sem contar a mais de dúzia de presidentes que caíram sob revolta popular (Haiti, Equador, Bolívia, Argentina...)

O que não mudou desde o século 20 é que tudo é feito em nome da democracia. Nessa cara de pau. Como em 1964, que O Globo saudou assim em editorial no dia seguinte:
"Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, que obedientes a seus chefes demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições."

Upideite(10/jul/2012): Agora eleições suspeitas no México fazem o PRI voltar ao poder.

Upideite(19/abr/2016): Infelizmente tenho que atualizar a lista com o golpe em curso no Brasil com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

*Upideite(19/abr/2016): Corrigido a esta data.Grato, Danilo Albergaria.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Santos FC is the new SPFW

Quem tem o costume de menosprezar o adversário é o SPFW: quando perde nunca é a superioridade do adversário, é algum fator externo que impediu o desempenho naturalmente impecável de seu elenco.

O presidente do Santos começa a mesma chiadeira vergonhosa. E ainda embarcando na onda do "apito amigo" - no caso, não exatamente da ajuda por meio de favorecimento pela arbitragem, mas pela manobra da CBF: agora, ao não convocar jogadores corintianos para a série de amistosos da seleção brasileira.

"Não faço nenhuma acusação formal, mas o Corinthians foi campeão brasileiro, tem a melhor defesa do Brasil, é semifinalista da Libertadores, tem meio-campistas como Ralf e Paulinho que são fora de série, um zagueiro firme como Castán, um cara que desequilibra com o Sheik, e não houve nenhum convocado do Corinthians." - diz LAOR.

Parece um elogio. Mas não é. Se o Timão tem tantos talentos que deveriam ser convocados para a seleção, então não tem talento suficiente para ter vencido do Santos independentemente da convocação? Não na cabeça do LAOR. O que a frase implica é que o time do Corinthians é limitado e só ganha do Santos com ajuda externa. Vamos agora aos detalhes: a seleção convocada foi *olímpica*. Há uma limitação de idade dos jogadores imposta pela Fifa (para não competir com a Copa): 23 anos. Ralf tem 28 anos; Paulinho tem 23, mas completa 24 em julho; Castán, 25 e Sheik, 33 anos.

É amplamente consensual que o elenco corintiano não tem nenhuma estrela e que a força está no conjunto, com aplicação tática, bom condicionamento físico e sob um comando competente. O que Paulo Vinícius Coelho resumiu no título de sua análise: "A vitória da melhor equipe, e de seu goleiro, sobre o time dos craques".

Há poucos meses, quando o Timão foi eliminado no Paulista pela Ponte Preta, o discurso do LAOR era todo outro, ao reclamar de não televisionarem o jogo do Santos em detrimento da partida do Mosqueteiro: "Tinham que escolher entre o Santos e o time da Zona Leste. Optaram por deixar o Corinthians para semana que vem. Quebraram a cara. Santos é o time que desperta a atenção de todas as torcidas . Eles sempre dão uma zapeada para assistir ao jogo do Santos." Reparem que o que agora é o campeão brasileiro recheado de jogadores de nível de seleção era só o time da Zona Leste.

Vai chorar na cama, que é mais quente, LAOR!