domingo, 31 de agosto de 2014

A operação de readequação sexual no programa da Marina Silva

Um antes e depois do texto do programa de governo da Senadora Marina Silva para as eleições presidenciais de 2014.

Sumiu todo o trecho a respeito da transfobia. Não se fala mais em sociedade sexista, heteronormativa e excludente em relação às diferenças (virou apenas diferenças de visões de mundo e sugere que a questão da sexualidade é simplesmente uma das "escolhas feitas em cada área da vida"). Se um certo pastor pressionar um pouco mais, vão tirar completamente menção à sexualidade (agora restrita somente ao cabeçalho introdutório - ui!).

Entre as propostas, claro, tiraram a menção àao PL 122 de criminalização da homofobia. Casamento civil vira somente união civil - e não há mais compromisso de apoiar propostas sobre a questão. Não se compromete mais a aprovar o PL Identidade de Gênero Brasileira (lei João W. Nery), só a cumpri-la caso se transforme em lei (o que é óbvio, constitucionalmente todo mundo é obrigado a obedecer à lei e fazê-la cumprir). Não se fala mais em eliminar obstáculo à adoção por casais homoafetivos, diz-se em fazer as mesmas exigências a casais homo e heteroafetivos (em princípio é o que deve ser, mas isso pode significar obstáculos diferenciais - digamos, passe a se exigir tanto de casais homo como hetero garantias dos avós). Deixa de se comprometer a produzir materiais didáticos sobre orientação sexual e novas formas de família (afinal, família é só a velha: homem e mulher). Sumiu o compromisso de manter e ampliar os programas atuais. E não vai mais dar efetividade ao Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT, só vai levar em consideração (o que permite analisar e ignorar).
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LGBT
Não podemos mais permitir que os direitos humanos e a dignidade das minorias sexuais continuem sendo violados em nome do preconceito. O direito de vivenciar a sexualidade e o direito às oportunidades devem ser garantidos a todos, indistintamente.
Texto original Texto malafaizado
Ainda que tenhamos dificuldade para admitir, vivemos em uma sociedade sexista, heteronormativa e excludente em relação às diferenças. Os direitos humanos e a dignidade das pessoas são constantemente violados e guiados, sobretudo, pela cultura hegemônica de grupos majoritários (brancos, heterossexuais, homens etc.). Uma sociedade em que somente a maioria – seus valores, tabus e interesses – é atendida pelo poder político, enquanto as minorias sociais e sexuais silenciam, não pode ser considerada democrática. É preciso olhar com respeito às demandas de grupos minoritários e de grupos discriminados. A população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) encontra-se no rol dos que carecem de políticas públicas específicas.

O direito de expressar sentimentos e vivenciar a sexualidade deve ser garantido a todos. As demandas da população LGBT já estão nas agendas internacionais. No Brasil, no entanto, precisamos superar o fundamentalismo incrustrado no Legislativo e nos diversos aparelhos estatais, que condenam o processo de reconhecimento dos direitos LGBT e interferem nele.

A Constituição de 1988 prega a liberdade e a igualdade de todas as brasileiras e todos os brasileiros sem distinção de qualquer natureza. Contudo, dados da Secretária Nacional de Direitos Humanos mostram que, de 2011 a 2012, os crimes homofóbicos cresceram 11% em nosso país. De acordo com o Grupo Gay da Bahia, houve 338 assassinatos com motivação homofóbica e transfóbica só no ano de 2012. Tais crimes maculam nossa democracia e ofendem o princípio da convivência na diversidade.

No seio da própria categoria, travestis e transexuais são o grupo mais vulnerável e invisível socialmente. A grande maioria deixa a escola ainda muito jovem. A discriminação sofrida por causa da identidade de gênero divergente faz com que tenham dificuldades para concluir os estudos. É necessário gerar um ambiente que assegure formação e capacitação profissional aos transgêneros.

Como o preconceito é difuso e muitas vezes mascarado, enfrentá-lo é tarefa intersetorial que envolve não só o governo, mas também as esferas da educação e da cultura, nas quais se constroem valores e se transformam mentalidades.
Ainda que tenhamos dificuldade para admitir, vivemos em uma sociedade que tem muita dificuldade de lidar com as diferenças de visão de mundo, de forma de viver e de escolhas feitas em cada área da vida. Essa dificuldade chega a assumir formas agressivas e sem amparo em qualquer princípio que remeta a relações pacíficas, democráticas e fraternas entre as pessoas. Nossa cultura tem traços que refletem interesses de grupos que acumularam poder enquanto os que são considerados minoria não encontram espaços de expressão de seus interesses. A democracia só avança se superar a forma tradicional de supremacia da maioria sobre a minoria e passar a buscar que todos tenham formas dignas de se expressar e ter atendidos seus interesses. Os grupos LGBT estão entre essas minorias que têm direitos civis que precisam ser respeitados, defendidos e reconhecidos, pois a Constituição Federal diz que todos são iguais perante a lei, independentemente de idade, sexo, raça, classe social. Assim como em relação às mulheres, aos idosos e às crianças, algumas políticas públicas precisam ser desenvolvidas para atender a especificidade das populações LGBT.

A violência que chega ao assassinato, vitima muitos dos membros dos grupos LGBT. Dados oficiais indicam que, entre 2011 e 2012, os crimes contra esse grupo aumentaram em 11% em nosso país. Outros sofrem tanto preconceito que abandonam a escola e abrem mão de toda a oportunidade que a educação pode dar, o que também, de certa forma, corresponde a uma expressão simbólica de morte.

É preciso desenvolver ações que eduquem a população para o convívio respeitoso com a diferença e a capacidade de reconhecer os direitos civis de todos.

PARA ASSEGURAR DIREITOS E COMBATER A DISCRIMINAÇÃO
• Apoiar propostas em defesa do casamento civil igualitário, com vistas à aprovação dos projetos de lei e da emenda constitucional em tramitação, que garantem o direito ao casamento igualitário na Constituição e no Código Civil.
Articular no Legislativo a votação do PLC 122/06, que equipara a discriminação baseada na orientação sexual e na identidade de gênero àquelas já previstas em lei para quem discrimina em razão de cor, etnia, nacionalidade e religião.
Comprometer-se com a aprovação do Projeto de Lei da Identidade de Gênero Brasileira − conhecida como Lei João W. Nery −, que regulamenta o direito ao reconhecimento da identidade de gênero das “pessoas trans”, com base no modo como se sentem e se veem, dispensando a morosa autorização judicial, os laudos médicos e psicológicos, as cirurgias e as hormonioterapias.
Eliminar obstáculos à adoção de crianças por casais homoafetivos.
• Normatizar e especificar o conceito de homofobia no âmbito da administração pública e criar mecanismos para aferir os crimes de natureza homofóbica.
• Incluir o combate ao bullying, à homofobia e ao preconceito no Plano Nacional de Educação, desenvolvendo material didático destinado a conscientizar sobre a diversidade de orientação sexual e às novas formas de família.
• Garantir e ampliar a oferta de tratamentos e serviços de saúde para que atendam às demandas e necessidades especiais da população LGBT no SUS.
Manter e ampliar os serviços já existentes, que hoje atendem com capacidade ínfima e filas de espera enormes.
• Assegurar que os cursos e oportunidades de educação e capacitação formal atendam aos anseios de formação que a população LGBT possui, para garantir ingresso no mercado de trabalho.
Dar efetividade ao Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT.
PARA ASSEGURAR DIREITOS E COMBATER A DISCRIMINAÇÃO
• Garantir os direitos oriundos da união civil entre pessoas do mesmo sexo.
• Aprovado no Congresso Nacional o Projeto de Lei da Identidade de Gênero Brasileira – conhecida como a Lei João W. Nery – que regulamenta o direito ao reconhecimento da identidade de gênero das “pessoas trans”, com base no modo como se sentem e veem, dispensar a morosa autorização judicial, os laudos médicos e psicológicos, as cirurgias e as hormonioterapias.
• Como nos processos de adoção interessa o bem-estar da criança que será adotada, dar tratamento igual aos casais adotantes, com todas as exigências e cuidados iguais para ambas as modalidades de união, homo ou heterossexual.
• Normatizar e especificar o conceito de homofobia no âmbito da administração pública e criar mecanismos para aferir os crimes de natureza homofóbica.
• Incluir o combate ao bullying, à homofobia e ao preconceito no Plano Nacional de Educação.
• Garantir e ampliar a oferta de tratamentos e serviços de saúde para que atendam as necessidades especiais da população LGBT no SUS.
• Assegurar que os cursos e oportunidades de educação e capacitação formal considerem os anseios de formação da população LGBT para garantir ingresso no mercado de trabalho.
• Considerar as proposições do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT na elaboração de políticas públicas específicas para populações LGBT.
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sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Pisa na fulô: O PISA deveria ser extinto? Não, apenas está sendo mal interpretado.

O Carta na Escola traz uma reportagem com questionamentos sobre o exame internacional da OCDE de avaliação dos estudantes,o PISA.

As *recomendações* dos relatórios da própria OCDE a partir dos resultados do PISA podem não ser boas. Por exemplo, há algumas comparações esdrúxulas como % do PIB investido em educação. Oras, é só questão de *não* seguir tais recomendações. Ninguém é obrigado a segui-las. Nem mesmo os países da OCDE ou os que se submetem à avaliação.

Dessa forma é estranho o pedido de que o PISA deixe de ser realizado. O problema com o exame seria se ele não medisse o que pretende medir. Segundo a reportagem um indício do problema com o teste é que a Finlândia caiu de posições na edição mais recente. O argumento é que a orientação pedagógica finlandesa é bem estável, isso não deveria levar à queda no desempenho. Só que o ranking do PISA é *relativo*. A queda na posição não reflete necessariamente a diminuição no desempenho absoluto. (Figura 1.)

Figura 1. Evolução da proporção de alunos de 15 anos da Finlândia de acordo com o nível de proficiência em Ciências medido pelo PISA 2006, 2009, 2012.

Há uma pequena queda geral do desempenho dos alunos. Pequena. Isso pode se dever a fatores como variação amostral. Mas os valores são consistentes de uma edição a outra. Não ocorre o salto sugerido pela simples interpretação da posição no ranking: como entre os países de bom desempenho as diferenças não são tão grandes, uma pequena variação no desempenho absoluto pode fazer a posição no ranking variar muito mais.

E claro que o alcance do PISA é limitado na medição da qualidade dos sistemas educacionais a partir do desempenho dos alunos. Sim, as competências aferidas não cobrem toda a gama de serviços prestados pelo sistema educacional. Mas a função do PISA é funcionar como proxy de certos conjuntos de habilidades tidas como necessárias: dentro da Matemática, ser capaz de relacionar grandezas; dentro das Ciências, ser capaz de interpretar tendências; dentro da Leitura, ser capaz de localizar informações - dentre outras dimensões mensuradas pelo teste nas três áreas. Sim, Geografia, Música, Filosofia e várias outras ficam de fora. O PISA é apenas um dos instrumentos disponíveis. No caso do Brasil, ainda temos o ENEM, o IDEB, além de avaliações regionais como o Saresp. É preciso entender o que os exames estão medindo e qual a limitação da validade.

Não é porque estão usando os índices erradamente que os índices sejam ruins. São indicadores e devem ser interpretados dentro do contexto adequado. O presidente do Inep, entrevistado pela reportagem, mas relegado ao final, tem uma posição equilibrada. O indicador é importante para se ter uma ideia do que está ocorrendo na educação.

domingo, 24 de agosto de 2014

A campanha verde de Marina (de 2010): um jeitinho?

Se for verdadeira a informação que a Folha de São Paulo traz em sua edição online sobre a neutralização do carbono emitido durante a campanha da Senadora Marina Silva à presidência em 2010 - promessa feita de compensação por plantio de árvores nativas do bioma brasileiro -, será uma grande decepção.

Segundo o jornal, a neutralização será feita (quatro anos depois...) pela financiadora da campanha (de então e de agora), herdeira  do Itaú, Neca Setúbal. Ok, a terceirização em si nem seria tão problemática... ok, será problemátca: será que os custos do plantio entrarão como doação de campanha? serão comunicados ao TSE na contabilidade? de qual campanha, na de 2010 ou na de 2014? Mas não o maior problema.

Neca Setúbal afirma que o plantio das árvores seria feito de qualquer maneira. Isso quer dizer que, se for isso mesmo: que árvores que seriam plantadas de qualquer modo serão consideradas pagas de uma promessa de campanha - então teremos uma tentativa tacanha de enganar o eleitor.

Por mais críticas que eu tenha à Marina Silva, em particular seu posicionamento a respeito do casamento homoafetivo, uma coisa que eu jamais poderia imaginar é que ela recorreria a um truque desleal desses. Não concebo que ela haja com tal desonestidade. Até maiores informações considero que houve uma falha na comunicação e que novas árvores serão plantadas para, agora, sim, neutralizar o carbono.

Do contrário, seria mais correto simplesmente admitir que se falhou em cumprir uma promessa: a contabilidade não é uma tarefa trivial, nem os custos da neutralização de carbono emitido em uma campanha presidencial (haja emissões por jatinhos e aviões de carreira!).

Via Fabiana Sousa, tw.

sábado, 23 de agosto de 2014

Lifebuoy rides again: agora diz que previne gripe aviária e suína

O sabonete antibacteriano Lifebuoy já havia aprontado antes sugerindo que prevenia resfriados. Agora vai ainda mais longe e quer sugerir que previne gripes suína e aviária.

Sim, lavar as mãos com água e sabão ajuda a evitar a disseminação de gripe - comum, aviária e suína - por remoção mecânica. Mas até aí sabonetes comuns fazem o mesmo serviço; o antibiótico presente na formulação não tem nenhum efeito contra os vírus.


A Anvisa precisa dar uma enquadrada urgente na Unilever por essa irresponsabilidade.

Cala boca, Dawkins. Da odiosa recriminação a pais de downianos.

Minha primeira reação ao ler os tweets do Dawkins sobre a imoralidade de se ter filhos downianos foi de nojo. Depois que li os esclarecimentos dele minha reação foi de vomitar (ainda que só metaforicamente).

O que me assusta é haver tantos eugenistas por aí- ainda que uns e outros tenham vergonha de dizer o nome (um cunhou o termo "para-eugenista" pra não falar que Dawkins é eugenista). Embora, num segundo pensamento, isso não seja uma surpresa.

Há os que confundem - propositadamente ou não - a discussão e querem crer que a reação de crítica a Dawkins seja por ele ter falado em aborto. O problema não é ele aceitar o abortamento (embora para os grupos pró-vida seja, mas, nem de longe apenas os pró-vida censuram o cientista inglês), o problema é ele considerar imoral quem deseja continuar a gestão e dar à luz um filho com síndrome de Down. É recriminar moralmente quem opta pelo contrário.

A premissa oculta assumida por Dawkins, de que downianos não são capazes de ter uma vida feliz e plena, é desmontada pela Down's Syndrome Association do Reino Unido: "People with Down's syndrome can and do live full and rewarding lives, they also make a valuable contribution to our society" ["Pessoas com síndrome de Down pode viver vidas plenas e recompensadoras e assim o fazem, elas podem ainda trazer valiosas contribuições a nossa sociedade."] Débora Seabra, a primeira professora downiana no Brasil, é um exemplo dessa valiosa contribuição à sociedade.

A síndrome tem um espectro de manifestação: há casos mais severos, com inúmeras complicações cardiorrespiratórias, e casos mais leves. Há os com mais e os com menos retardo mental.

A escolha deve caber exclusivamente aos pais a respeito de se querem ou não levar a gestação a termo. E não há que se recriminá-los se escolherem por abortar ou por terem filhos downianos.*

Baseando-nos no argumento de Dawkins de que se deve abortar um feto que daria origem a uma criança que não seria feliz neste mundo, se o ateísmo fosse ligado a alguma variante genética, fetos com tais variantes deveriam ser abortados - seriam infelizes num mundo dominado pela religião. Mas mesmo que o ateísmo não seja geneticamente influenciado, deveríamos criar as crianças para serem religiosas, já que estariam mais ajustadas em um mundo predominantemente religioso. E assim vai com qualquer outro desajustamento - inclusive os que poderiam ser tratados ou curados: um míope sofre até ter acesso a óculos (e nem todos terão acesso a um bom par de óculos ou lentes ou cirurgias corretivas).

A linha de argumentação de Dawkins, de pragmatismo ético calcado na maximização da felicidade e minimização do sofrimento, é da mesma escola singeriana: que admite o infanticídio no caso de pais que não podem criar os filhos.
 

*Upideite(23/ago/2014): A legislação brasileira não admite aborto nesses casos (só se a gravidez ameaçar a vida da gestante ou for resultante de estupro - independentemente de se ameaça ou não a vida da mãe - e a jurisprudência tem autorizado para os casos em que o concepto é incompatível com a vida - como nos casos de fetos anencefálicos). Embora eu não tenha uma opinião fechada a respeito de se a lei deveria ou não ser ampliada para abarcar mais casos, minha tendência é achar que deva se permitir a interrupção pelo menos até a terceira semana da gestação. Mas isso deveria ser um *direito* da mulher/casal; não uma obrigação (ainda que apenas moral).