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quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Corinthians, gigante desde sempre

Alguns importantes marcos e conquistas não esportivas do Sport Club Corinthians Pauista.
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1918.
"Todo mundo ficava doente. [...] O Corinthians divulgou humilde comunicado afirmando que, sendo composto em sua maioria por operários, sentia-se 'na obrigação de vir, apesar de sua insignificante valia, concorrer, com seu esforço [...] para alívio dos infelizes operários atacados pela pandemia que assola esta capital'. Assim, embora 'pobre por sua natureza', achou-se 'forte para sair de seu modesto canto' e abrir uma lista de contribuições aos sócios e admiradores, cuja arrecadação seria destinada à Cruz Vermelha." Pp: 187-8.
TOLEDO 2015.

1925
"Segundo depoimentos, além de seu próprio testemunho, Rebolo foi um pioneiro na luta para que o negro fosse incorporado ao futebol das ligas oficiais. Conhecia o assunto e manifestou-se contra a segregação que predominava nas primeiras décadas do século XX. Inclusive, ele mesmo foi jogador de futebol de 1917 a 1932, antes de se tornar artista: no Corinthians, clube para o qual desenharia o emblema definitivo, nos anos 1930, jogou de 1922 a 1927.

Em 1975, Rebolo contou, não sem indignação, sobre o preconceito: 'Um absurdo, mas existia mesmo essa interdição. Os times da elite não admitiam a entrada de jogadores negros. No meu tempo de jogador, não havia negros em nenhum time. Acabou minha carreira e posso assegurar que não joguei com preto e nem contra pretos, nos jogos da Liga; eu só tinha colegas negros na várzea.. Eu me recordo de que no Corinthians surgiu um mulato chamado Tatu, que jogava muita bola, era um craque. Certa vez, num jogo entre Corinthians e Paulistano, o Tatu marcou o gol da vitória. A cidade ficou tomada, com gente fazendo discurso, já foi uma vitória do povão.'" P. 230

RODRIGUES, Mário. O negro no futebol brasileiro. Mauad Ed. 343 pp.

1979.
"Quando a polícia começou a subir os degraus da arquibancada, os torcedores da Gaviões da Fiel deram-se os braços e fecharam o caminho. Os soldados da Polícia Militar ainda tentaram forçar a passagem mas, nas fileiras de trás, milhares de outros corinthianos, braços dados, formando uma massa compacta, começaram a gritar, ameaçando descer as escadarias do estádio do Morumbi. O comando do policiamento deve ter avaliado a situação e dado uma contra-ordem, porque os PMs recuaram, desistindo de chegar até nós.
- 'Eles estavam falando da nossa faixa'- rádio de pilha colado no ouvido, boné e camiseta do Corinthians e um sorriso nos lábios, o torcedor a meu lado informava a reação no estádio. Eu jamais o vira antes e nem o encontrei depois, mas nunca o pronome possessivo na primeira pessoa do plural me pareceu tão saboroso.
'Anistia, ampla, geral e irrestrita' – dizia a faixa, e o fato dele a chamar de 'nossa' tinha, para mim, pelo menos, um significado que ultrapassava em muito aquela fugaz solidariedade que se estabelece nos campos de futebol entre torcedores do mesmo time: a bandeira era minha e da torcida do Corinthians."

FON, A.C. 2006. Depoimento à Fundação Perseu Abramo.

1983. Final do Paulista.
Jogadores do Timão entram com a faixa: "Ganhar ou perder. Sempre com Democracia."

2014.
"E aqui não há, e nem pode haver, homofobia. Pelo fim de grito de 'bicha' no tiro de meta do goleiro adversário. Porque a homofobia, além de ir contra o princípio de igualdade que está no DNA corinthiano, ainda pode prejudicar o Timão. Aqui é Corinthians!"

Manifesto contra a homofobia.

2016.
"Refugiados vivem um dia inesquecível em acolhida promovida pelo Corinthians"

2017
Suspende por tempo indeterminado atleta de MMA por homofobia.

2020
"O Corinthians colocará as suas instalações à disposição do Estado e da Prefeitura de São Paulo para ajudar no combate contra a pandemia de coronavírus. Através de nota em seu site oficial, o clube confirmou que disponibiliza a Arena, o CT Joaquim Grava e sua sede social para auxiliar na luta contra o Covid-19."
Gazeta Esportiva

sexta-feira, 28 de março de 2014

A doutrina Bush do Joaquim Barbosa (e o racismo do repórter - não é o Noblat)

Respeito muito o trabalho do repórter Roberto d'Ávila. Em sua carreira há grandes entrevistas com as mais variadas personalidades brasileiras e mundiais.

Já há alguns anos comanda o programa Conexão Roberto d'Ávila.A atração já esteve na grade da TV Cultura e agora, na Globo News. Em sua estreia no novo canal entrevistou o ministro do STF Joaquim Barbosa.

No começo da entrevista, o ministro fala do combate à corrupção.

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6mim27s
"Ainda não encontramos o método correto e eficaz de combatê-la. Talvez estejamos adotando método errado, a meu ver. Me perguntaram isso recentemente na viagem que fiz à África. Fui abordado sobre essa questão. Eu venho refletindo sobre ela e tenho minhas dúvidas, tenho minhas dúvidas se esse método puramente repressivo é o mais eficaz para combater a corrupção. Talvez medidas preventivas drásticas que doam no bolso, na carreira, no futuro dessas pessoas que praticam corrupção sejam mais eficazes."
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Hein? Punição preventiva, JB? Como se pode fazer doer no bolso *antes* de haver crime (*prevenção* é isso, senão é punição)?

E depois disso piora, não pelo que JB fala, mas pelo que RdA solta. São falas que carregam uma carga racista - não que o repórter seja do tipo que tenha ódio racial (não me parece mesmo que seja o caso).

Por volta dos 10min15s, a respeito da viagem de JB à Helsinque, RdA comenta:
"Pessoal branquinho, o senhor deveria fazer um sucesso louco lá, né?"

Em outra pergunta, bem ao finalzinho sugere que não exista o racismo propriamente no Brasil, que seja uma discriminação socioeconômica.

Já mais perto ainda do fim, insinua que JB entrou no STF por cota. O ministro fica p* - não sei se finge, mas de todo modo mostra interpretar que isso não é opinião do repórter, apenas que ele está trazendo o que algumas pessoas falam sobre sua presença no tribunal - e responde que quem diz essas barbaridades não conhece seu currículo.

Espero que nas próximas edições RdA seja mais feliz.

(Talvez mais pra frente eu acrescente outras observações, detalhando mais a parte da cota.)

Upideite (28/marq/2014): Segue transcrição dos trechos referidos acima.
45:55
- O senhor já chorou de raiva por causa do racismo?"
Ah, quando era jovem, sim. Hoje [não].
Mas hoje o senhor é recebido...
Claro. Hoje, quando você se torna conhecido, se torna autoridade, o tratamento é outro. Mas criança...
Só quem viveu que sabe.
É.
- Às vezes o senhor não chega a pensar que o racismo pode ser mais social do que a cor da pele? Porque não dá pra entender que no século 21 as pessoas ainda...
Não, não, não. O racismo, ele está em todas as esferas. Não é só social, não. Ele é econômico, ele...
Social e econômico...
É. Ele interfere nas relações profissionais, nas relações sociais das pessoas. Eu desafio alguns... Há no Brasil certas pessoas que têm essa tendência de tentar minimizar o racismo: "Ah, porque eu me dou bem com todas..." Pergunte a essa pessoa: "Quantas vezes você recebeu um negro na sua casa como..."
"... convidado".
"...como convidado". Poucos vão ter essa resposta.
Aí é talvez um problema econômico, né? Porque o negro já estudou...
Sim, claro, evidente. Você vive, você estabelece relações com mais frequência com pessoas do seu nível social. É evidente.

47:55
- Como disse o Martinho da Vila, só sua presença aqui no Supremo já é um combate ao racismo. A sua presença...
Não, eu não tenho... Não trouxe pra cá, não acho que eu tenha vindo pra cá com essa missão, não, de combater o racismo, não, não. Eu sempre achei que a minha presença aqui contribuiria para desracializar o Brasil, desracializar as relações...
Somos todos iguais.
Isso. Pra que as pessoas tivessem a sensação de que não há papel predeterminado para A, B ou C. Eu espero que o dia em que eu sair daqui, os governos, os presidentes da República saibam escolher bem pessoas pra cá e escolham negros com naturalidade.
O senhor acha que entrou numa cota naquele momento...
Não é isso, não.
...apesar de todo o seu preparo?
Dizer que eu entrei numa cota é uma manifestação racista. Por quê? Porque simplesmente as pessoas que fazem isso, deixam de lado, não olham meu currículo. Aliás, pouca gente olha meu currículo.
Que é espetacular.
Pouca gente olha. Não interessa, o cara só vê a cor da pele. Não é?
É que o senhor foi o primeiro, não é, ministro?
Mas eu espero o seguinte, que o presidente nomeie para cá um certo número de homens e mulheres negros de maneira natural. Não façam estardalhaço disso, não é? Não tentem levar a pessoa escolhida para a África pra esconder uma realidade, Roberto. A realidade triste, muito triste de que não temos representantes negros na nossa diplomacia, nos negócios do Estado.
O Brasil se apresenta como um país de brancos, quando é um país meio a meio?
O Brasil não se apresenta, o Brasil não tem como se apresentar de maneira diferente porque não há, não é? Os países africanos se ressentem muito disso, como é que pode um país que tem 50% da população negra ou muluta não tem, não consegue escolher um número de embaixadores negros para mandar para a África.
Nós nos esquecemos de falar de um assunto que talvez seja por aí, a educação, né ministro?
Pois é, mas a educação foi negada. A gente não pode usar a educação como justificativa. Essa educação foi negada. Ela precisa ser outorgada, ser dada.
Universalizada.
Universalizada. Não é?

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Space quota exceeded 10

A tramitação do PLC 180/2008 está em seus momentos finais, mas parece que vai longe ainda. E muitas das críticas ao projeto são baseadas no desconhecimento de seu teor.

Há 10 dias, o amálgama publicou um texto contrário às cotas. O único detalhe relativamente diferente é que é um texto de uma pessoa negra. Sob esse aspecto é interessante - mas não é exatamente uma novidade, José Roberto Ferreira Militão, por exemplo, é um dos negros de primeira hora contrário às cotas.

O problema do texto no amálgama é que é eivado de erros de caracterização dos argumentos pró-cotas.

1. "O raciocínio pró-cotas é o seguinte. Dada essa injustiça histórica, nada mais válido e justo do que haver uma reparação de tal situação, pois existe uma dívida com o negro desde a escravidão, e uma necessidade urgente de que ela seja paga. O Estado deve ser o responsável para que se solucione estas distorções, e por isso a aplicação do sistema de cotas não é só justa, mas inevitável. Só pessoas racistas, preconceituosas e torpes não veriam justiça nas cotas."

A reparação histórica é apenas *um* dos argumentos pró-cotas (e, de modo mais amplo, das políticas de ações afirmativas). E não é defendida de modo unânime. Há pelo menos quatro classes de argumentos - não necessariamente mutuamente excludentes, mas não necessariamente defendidos em conjunto: a reparação histórica, a reparação da injustiça atual, a geração de diversidade e a divulgação para certos grupos excluídos normalmente.

Para mim, a reparação da escravidão é complicada pelo fato de os registros terem sido destruídos. Não há muito como saber quem da população atual é descendente ou não de escravos. Pode haver reparos caso a caso com a apresentação de documentos. Mas a discriminação atual é patente e é isso que precisa ser reparado. Pode ou não ser por meio de cotas. Embora, claro que as cotas sozinhas não sejam mecanismos suficientes.

E não é verdade que somente pessoas racistas e torpes sejam contra as cotas. Há as que são apenas desinformadas. Há as que são bem informadas, mas partem de pressupostos diferentes - como uma defesa da exclusividade da meritocracia no acesso ao ensino superior (embora haja argumentos que fragilizem essa visão da meritocracia - já que estamos partindo de situações desiguais na disputa por vagas). E, sim, há as que são racistas - não necessariamente torpes. E há as torpes.

2. "Os favoráveis às cotas argumentam que os negros são 51% da população, contra 49% de brancos, e que a desproporcionalidade da presença das duas etnias nas universidades é gritante. Esse argumento já traz uma falácia e adulteração tremenda. Primeiro, dados do IBGE mostram que a população se declara como sendo branca em sua maioria, 49%; em segundo lugar, pardos, 43%; seguidos dos negros, 7%."

A desproporção da representação não tem exatamente com o fato de os negros serem (ou não) a maioria censitária. No IBGE 7% correspondem aos pretos - e há bem menos do que 7% entre os universitários. Do mesmo modo que há bem menos do que 43% de pardos entre os estudantes de nível superior. E indígenas, que ninguém falaria que são maioria censitária, também são bastante subrepresentados na população universitária.

No entanto, dizer que negros representam a maioria da população não é falácia nem adulteração tremenda. As proporções de pretos e pardos são unidas sob a denominação de negros. Essa prática é comum nos estudos sobre questões raciais no Brasil, por exemplos:

"As categorias relativas à cor das pessoas, contempladas nesta análise, são branca, negra (formada pelos pretos e pardos) e outras (que inclui os indígenas e os orientais)." aqui

"Conforme convenção do IBGE, no Brasil, negro é quem se autodeclara preto ou pardo, pois população negra é o somatório de pretos e pardos." aqui

"Quanto ao quesito raça, ainda que os dados da PNAD e da NHIS considerem uma gama variada de cores/raças (no Brasil) e grupos étnicos (nos EUA), vamos nos ater, por razões de comparabilidade, aos grupos ‘Brancos’ e ‘Negros’, incluindo neste último os indivíduos que se declaram ‘Pretos’ e ‘Pardos’. Esta classe, ‘Negros’, criada a partir da junção de ‘Pretos’ e ‘Pardos’ tem mais afinidade com o conceito ‘Black’ utilizado nos EUA e na linha dos afrodescendentes, como reivindicam os movimentos negros." aqui

E não é para fins falaciosos ou adulterativos. É pelo simples fatos de que as condições dos dois grupos são similares - a discriminação racional no Brasil se liga muito ao grau de melanização da pele. Vários estudos do próprio IBGE mostram a similaridade das condições socioeconômicas entre pretos e pardos, p.e.: aqui, aqui, aqui, aqui, etc, etc. (No texto do PLC 180/2008, no entanto, usa-se 'negros' para denominar o que o IBGE considera 'pretos': a lei fala em negros, pardos e indígenas, e.g., art. 3o.)

3. "Outra questão ignorada pelos apologistas das cotas é que a ciência praticamente eliminou o conceito de raça, pois os genes de alguém de pele branca podem conter mais raízes africanas que os de um negro, e vice versa. Isso posto, o uso do critério 'raça' para definir cotas perde a validade e é um retrocesso científico. Alguns defendem que se deve ter em mente a dimensão social, pois as raças ainda têm aplicabilidade social. Porém, no Brasil, um país miscigenado, esse argumento deve ser relativizado. Obviamente, o preconceito e a discriminação existem por aqui; sabemos que, em certas ocasiões, postos de trabalho e lugares dentro da sociedade são negados a um sujeito devido à cor de sua pele. Mas esse fato não torna o Brasil um país racista em sua essência, pois aqui as etnias convivem de maneira razoavelmente próxima, com poucos conflitos de cunho racial, graças à miscigenação que constituiu o povo brasileiro desde a época colonial [...]"

Não é uma questão ignorada de que raça como conceito biológico não se aplique bem à situação humana. Tanto é que o sistema aqui é de autodeclaração e não um teste biológico. (Veja que critério socioeconômico como renda também não é biológico - quem é rico pode ter tido pais pobres ou ter sido ele mesmo pobre e vice-versa; há mistura de classes e o corte de quem é rico e quem é pobre é arbitrário.)

Agora, negar oportunidade de trabalho por questão da cor de pele torna *sim* o Brasil um país racista. Não se trata de um fato isolado, mas de um fenômeno social - tanto é que é mensurável na forma de exclusão socioeconômica. Menos oportunidade de emprego, trabalhos piores, menor remuneração...

Porém, as cotas (e as ações afirmativas) não dependem de haver ou não racismo (preconceito por conta de raça ou etnia atribuída). A questão é de se há ou não discriminação (exclusão socioeconômica correlacionada à raça ou etnia atribuída).

4. "E os descendentes dos japoneses que chegaram aqui no começo do século XX e foram vítimas de um preconceito quase tão intenso quanto os negros, e, sem incentivo de ninguém, apenas com a própria força, através de educação e disciplina, conseguiram ascender socialmente, terão que pagar?"

Na verdade o preconceito contra os japoneses foi muito *inferior* ao que sofreram e sofrem os negros. Japoneses nunca foram escravos - embora muitos tenham trabalhado em condições análogas à escravidão. Chegaram aqui dentro, justamente, de uma política oficial de embranquecimento da população brasileira (na outra ponta, dentro de uma política expansionista não-militar do Japão). A ascensão social foi possível justamente porque tinham direito à posse: podiam acumular riquezas, comprar e negociar propriedades. Coisa que durante a escravatura era virtualmente negada aos negros escravos.

Mas, sim, os japoneses e seus descendentes também terão que pagar. A discriminação é difusa. E muitos japoneses são racistas e contribuem com a discriminação por meio do preconceito - p.e. ao negar emprego para negros. Os próprios negros também acabam pagando - seus impostos também sustentam as universidades públicas. Isto é, a contribuição deve ser de todos.

5. "O que os defensores das ações afirmativas nunca lembram em seus argumentos é que em nenhum local onde as cotas foram implementadas houve alcance dos resultados desejados, e em vez de diminuir os conflitos e as distorções étnicas, elas as ampliaram. Thomas Sowell, renomado economista norte-americano e insuspeito de ser racista (ele é negro), estudou a questão das cotas nos EUA, na Índia e na África."

O estudo de Sowell é bastante falho como demonstra James Sterba. Os exemplos de outros países que não os EUA são falhos porque são cotas elaboradas por maiorias sociais (ainda que minoriais censitárias eventualmente) em benefício próprio. (Aliás, os erros de Thomas Sowell na crítica às ações afirmativas merecem uma análise mais extensa, que deixo para outra hora.)

5b. "Caso exemplar é dos EUA, onde a maior parte dos estados já eliminou as ações afirmativas, pois concluiu-se que eram ineficientes e catalisadoras de ódio entre grupos e classes."

Não é verdade. A eliminação de política de ações afirmativas do tipo cotas raciais ocorreu por decisão da Suprema Corte e não tem a ver com ineficiência ou geração de ódio, mas por entenderem os juízes (conservadores na maioria, diga-se) que elas só poderiam ser aplicadas em caso de correção de prejuízos anteriores (justamente a tal reparação histórica): isso, no entanto, obrigaria às empresas e universidades assumirem culpa anterior - o que abriria brecha para pesados processos indenizatórios.

6. "A real solução para o problema é uma só: melhoria do ensino de base (ensino fundamental e médio)."

Mais ou menos. É algo pelo qual todos lutam. No entanto, se há consenso, por que tão pouco é efetivamente realizado? Há questões bastante complicadas por trás. Mesmo eliminando-se disputas ideológicas a respeito: que tipo de educação é a melhor? a conteudista? a construtivista? - educação de qualidade envolve muita verba. E a briga pelos 10% do PIB na educação é encarniçada. E, acredite, os que defendem a adoção de cotas *defendem* também os 10% do PIB na educação - não todos, claro; do mesmo modo que nem todos os que são contra as cotas defendem aumento de gastos com educação.

De todo modo, não são objetivos excludentes. Como disse antes, boa parte dos pró-cotas são também favoráveis a mudanças e melhorias gerais no ensino básico. A melhoria da educação básica não é uma *alternativa* às cotas. São dois projetos distintos - um de mais longo prazo (tanto em se efetivamente conseguir fazer as tais melhorias, como em tais melhorias surtirem efeito) e outro de mais médio prazo (as cotas já estão implementadas e os efeitos estão a ser medidos).

7. "O sistema de cotas raciais beneficia parte dos negros, os que possuem arcabouço educacional para alcançar uma universidade, mas não alcança os reais necessitados, os pobres, que são de diversas etnias."

Mesmo que beneficiasse, já seria um ganho em relação a não ter cotas. Repare que o problema aqui não é a cota: remova-a, os pobres são beneficiados? Não.

Cotas raciais podem (embora não precisem) ser vinculadas a condicionantes socioeconômicas. O PLC 180/2008 prevê no parágrafo único do art. 1o que 50% das vagas sejam destinadas a alunos egressos de escolas públicas e que 50% das vagas de cotistas sejam destinadas a estudantes de famílias com renda per capita de até 1,5 salário mínimo.

Vários desses pontos já abordei anteriormente em postagens da série, como disse, à exceção do fato de o autor ser negro, não há nenhuma novidade maior na argumentação.

De passagem, em relação ao PLC 180/2008, a SBPC e a ABC emitiram nota conjunta contrária ao projeto. Embora sejam favoráveis às experiências com cotas - sociais e raciais - creem que o projeto atente contra a autonomia universitária. Particularmente não entendo que a noção de autonomia universitária (AU) abarque a decisão sobre o ingresso - se se abolirem os sistemas de vestibular e obrigar a adoção de um exame nacional único (como o Enem), isso não diz respeito à AU. A AU é sobre a estruturação didático-pedagógica, os cursos oferecidos, a destinação das verbas, priorização das área de pesquisa, e coisas assim. Concordo com a Dra. Nader de que as IES devem opinar sobre o perfil dos alunos a serem admitidos, mas não defini-lo.

A minha preocupação com o projeto é de outra natureza. É que julgo que ainda não temos dados suficientemente consolidados que demonstrem a eficiência (ou não) das cotas para os fins a que se destinam - qual seja a da inclusão social dos indivíduos beneficiados; e muito menos o melhor (ou os melhores) modelo(s) de cotas. Considero louvável a ousadia do projeto - ao estabelecer 50% das vagas para cotas -, mas essa mesma ousadia, na ausência de maior embasamento, torna-se um tanto temerária.

As IES estão estabelecendo suas políticas de ações afirmativas. Mais de 2/5 das IFES têm cotas atualmente. Cada uma tem um sistema. Com seus méritos, limitações e defeitos. A uniformização imposta pelo projeto pode não atender às necessidades específicas de cada comunidade e de cada IES. E corta essa riqueza de experimentos que podem nos fornecer dados importantísimos para a avaliação mais rigorosa dos efeitos das políticas de ações afirmativas, incluindo as cotas.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Space quota exceeded 9

Nogueira, Oracy. 2006. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, revista de sociologia da USP 19(1): 287-308.

preconceito racial: "disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece."
preconceito racial de marca: "[quando] se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque".
preconceito racial de origem: "quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as conseqüências do preconceito".

As diferenças entre os dois principais tipos (idealizados) de preconceitos raciais é esquematizada na Tabela 1. "[C]onvém repetir que se trata de dois conceitos ideais que indicam situações 'puras', abstratas, para as quais propendem as situações ou casos concretos, sem que se espere uma coincidência, ponto por ponto, de qualquer caso real com um ou outro dos tipos ideais. Mesmo as proposições que se vão apresentar deverão ser entendidas não num sentido absoluto, porém como indicativas de tendências e como hipóteses a serem aferidas, seja através de novas pesquisas de campo, seja através da reconsideração de dados já disponíveis." (p. 292)

Tabela 1. Quadro sinóptico das diferenças entre preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. Fonte: Nogueira 2006.


Isso explicita as diferenças das situações raciais entre o Brasil (onde predomina o preconceito de marca) e os EUA (onde predomina o de origem). Naturalmente, as medidas de combate ao preconceito racial haverá de levar em conta tal diferenciação.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O estrupo* no BBB12

Esse alvoroço a respeito da cena na cama entre dois integrantes do Big Brother Brasil 12 tem trazido alguns aspectos muito perigosos na argumentação.

Acertadamente, vários já criticaram as barbaridades machistas da justificação de um estupro de vulnerável e, mais amplamente, de violência contra as mulheres. Do outro lado, há a alegação de que há racismo na acusação.

Outro ponto deplorável é a condenação prévia, a execração pública de um fato não esclarecido. Houve mesmo estupro?

Os capítulos I (artigos 213 a 216A) e II (artigos 217 a 218B) do Título VI do Código Penal versam sobre os crimes sexuais. Antes de mais nada é preciso que se estabeleça que tenha havido sexo (conjunção carnal) ou ato libidinoso (como manipulação de partes íntimas). O vídeo mostra movimentação sob o edredon, mas isso é apenas sugestivo. Não sabemos o que houve. O acusado diz que houve apenas beijos (visíveis no vídeo) e passada de mão (a depender de onde poderia ser caracterizado ato libidinoso, mas a própria virtual vítima diz que isso foi feito reciprocamente).

Aparentemente não houve violência ou grave ameaça, então o artigo 213 (estupro) não se aplicaria. Não houve aparentemente fraude ou uso proposital de meio que dificultasse ou impedisse a livre manifestação da vontade da vítima, assim, o artigo 215 (violência sexual mediante fraude) também não se aplicaria. Não se trata de assédio sexual por não envolver relações de hierarquia de cargo (artigo 216A). Os artigos 214, 216, 217 estão revogados.

O 218 (corrupção de menores) não é o caso por não se tratar de menor de 14 anos. O 218A não se aplica por não envolver sexo na presença de menor de 14 anos. O 218B (favorecimento de exploração sexual de vulnerável) também não por não ser caso de prostituição, nem de menor de 18 anos.

Restaria o 217A, caso tenha havido sexo ou ato libidinoso não consensual. O artigo (estupro de vulnerável) prevê os seguintes casos: sexo com menor de 14 anos (não é o caso), enfermidade (não é o caso), deficiência mental (não é o caso) ou alguma outra causa em que a vítima não possa oferecer resistência - seria o álcool.

Pelos trechos publicados das falas da suposta vítima, se houve sexo, não foi consensual. Porém, mesmo que tenha havido sexo não consensual, pode ser o caso de não se tratar de estupro de vulnerável se o perpetrador do ato também estivesse sob influência alcoólica que houvesse diminuído sua capacidade de discernimento - a menos que o uso do álcool para a facilitação da prática do sexo tivesse sido intencional (o que não é o caso - a bebida foi ingerida durante festa promovida pela produção do programa).

Diz o Código Penal em seu artigo 28, inciso II:
"Art. 28 - Não excluem a imputabilidade penal:
II - a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos.
§ 1º - É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
§ 2º - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento."

Ou seja, não sabemos nem ao menos se houve agressão. E, se houve, é possível que o acusado seja inimputável.

Um crime, no entanto, que pode ter ocorrido é o de calúnia (art. 138), caso o acusado não venha a ser condenado em decisão de corte transitada em julgado, por parte dos que saíram a gritar: "estuprador". Claro que o estupro é um crime terrível e se entende, por isso, a comoção, mas o código penal exclui paixão e emoção como desculpas para crimes (art. 28, inc. I) - incluindo os de calúnia e injúria.

Que o caso seja devidamente investigado e apurado. E, *se* se houver cometido crime, que o(s) responsáveis seja(m) devidamente punido(s).

O que não posso deixar de notar, porém, é a estranhíssima atitude da Rede Globo. Na edição de segundadomingo, nada foi dito a não ser "o amor é lindo" pelo apresentador Pedro Bial, após a exibição editada das cenas polêmicas. Na terçasegunda-feira a produção do programa decidiu por expulsar o participante acusado por "grave comportamento inadequado".

"Lindo" é um tanto antitético em relação a "grave e inadequado", não obstante, o que pega é a produção afirmar que "[d]esde domingo de manhã, a direção avalia o comportamento de Daniel, suspeito de ter infringido as regras do programa". As questões são:

1) por que os participantes e o público não foram avisados, então, que havia um participante sob observação?
2) por que os participantes não foram isolados - se havia potencial de comportamento inadequado grave, não haveria risco na exposição dos demais?
3) a Globo, ao perceber o potencial do problema, deu à participante, suposta vítima, todas as informações necessárias para que ela pudesse dar os necessários esclarecimentos? (Isto é, foi mostrado o video à participante para que ela pudesse dizer até onde as ações foram consentidas e a partir de que momento - se houve algum - deixaram de ser?)
4) a Globo acha adequado dizer apenas que se trata de um "grave comportamento inadequado", deixando a suspeição de algo realmente grave (crime de estupro de vulnerável) sobre uma pessoa?


*Obs: Existe, sim, na língua portuguesa a palavra 'estrupo', mas com o significado de 'tumulto, ruído, alvoroço'.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Vamos ver se a pós-moderação do Observador Político funciona

FHC e cia. lançaram um projeto interessante, uma plataforma para a discussão de temas políticos. Os interessados só precisam se cadastrar e podem postar comentários e iniciar discussões sobre diversos temas de interesse nacional.

Lógico que há regras. Infelizmente há pessoas de má índole que burlam não apenas as regras do projeto, como ferem a própria lei e manifestam seu naco de intolerância. Felizmente, apesar do tom áspero de não poucos comentários, são raros os casos extremados, envolvendo preconceito explícito de raça, gênero, origem... Achei um só (reproduzido abaixo) por enquanto. Já denunciei ao serviço de moderação do Observador Político. Vamos ver quanto tempo demoram pra remover*. O comentário é a esta postagem.

*Upideite(27/jul/2011): Como observa André, nos comentários, já retiraram a mensagem racista do OP. Agora consta: "[ COMENTÁRIO DELETADO POR INFRAÇÃO AO CÓDIGO DE CONDUTA ]", mas o autor continua como membro. De todo modo, a pós-moderação funcionou - levou pouco mais de 24 horas para removerem.

sábado, 2 de abril de 2011

"Legião é o meu nome, porque somos muitos."

Como escrevi antes, temos sim - ainda que a passos de tartaruga - avançado na questão da igualdade racial e sexual (incluindo a questão dos LGBTT).

Se de um lado é chocante constatar que haja ainda gente como Bolsonaros e Felicianos da vida - e gente que defenda o que disseram -, o próprio fato dessas falas e pensamentos chocarem indicam que avançamos: antes essas coisas seriam tidas como naturais, banais. Hoje, não. Muitas vozes se levantaram indignadas.

Seria exemplar se a própria Câmara os denunciasse e os caçassecassasse por conduta incompatível com a vida parlamentar; mas o histórico do tratamento da casa para com seus membros não permite se depositar muitas esperanças nesse final. Seria exemplar também se os eleitores tratassem de manter esse tipo de pessoas longe das vagas representativas, porém, é um nicho político que rende votos suficientes.

Há também gente que, embora não deva compactuar com esse tipo de pensamento, defenda a liberdade de que tais disparates sejam ditas. Sorry. Que tais defensores sejam, quase que invariavalmente, brancos (e não sejam gueis assumidos) tornam as coisas suspeitas. Não de que pensem, no fundo, como tais boçais.

Mas um branco dizendo que os negros (e os gueis) não deveriam ligar pra isso é forçar a amizade. De onde Guterman tirou que ficar calado é a melhor estratégia? Essa foi a situação que imperou por séculos. As coisas só melhoraram quando se passou a *protestar* contra os ataques aos grupos minoritários. "Ah, eu não ligaria." Fácil dizer isso quando se está em uma situação em que jamais passaria por isso.

Haveremos de construir uma sociedade em que tais sandices não encontrariam nenhum refúgio em bolsões quer políticos, quer religiosos, quer de outra natureza. O trabalho é, porém, árduo.

sábado, 30 de outubro de 2010

Caçadores de racistas

Vetar uma obra de Monteiro Lobato nas escolas é censura?

O Conselho Nacional de Educação decidiu vetar* a obra “Caçadas de Pedrinhos” de Monteiro Lobato por: a) possuir elementos racistas e b) não haver preparo dos professores para lidar com o material.

A grita foi de censura. Será mesmo censura? (Eu discordo do veto e falarei disso mais abaixo, mas por ora quero examinar a questão da censura.)

Passamos há não muito tempo por uma terrível ditadura – o processo de redemocratização mal completa 2520 e poucos anos – que, entre outras barbaridades implementou um sistema de censura. Reportagens, filmes e livros eram proibidos de circular, classificados de imoral, subversivos. Textos e materiais que apresentassem fatos e versões contrários aos interesses da ditadura tinham circulação restrita ou impedida de todo. Era preciso submeter a um comitê avaliador previamente que liberava, classificava ou proibia a circulação e execução da obra.

O CNE tem como uma de suas atribuições avaliar livros didáticos que são comprados pelo PNLD e pelo PNLEM (respectivamente programas de compra e distribuição de livros didáticos para os ensinos fundamental e médio de escolas públicas). Eles podem ser recomendados, recomendados com ressalvas ou reprovados. A reprovação de um livro faz com que os professores não possam pedir a aquisição do título pelo programa – mas não impede seu uso nas escolas: p.e., se o professor tiver cópias, ele tem a liberdade de usá-las com seus alunos.

Há pouco, fez-se a grita de que o livro “Nova História”, comprado e distribuído pelo programa, era “doutrinário” (e tenho a opinião de que ele era) e, assim, inadequado, não devendo ser recomendado pelo MEC. O livro acabou sendo retirado do programa. Isso foi censura?

E os livros que continha palavrões, descrições de crimes e de sexo? Foi um escândalo tanto em nível nacional quanto em nível estadual – pela Secretaria do Estado da Educação de São Paulo que havia adquirido e distribuído esses títulos na rede estadual de ensino. Foram retirados. Censura?

Se isso é censura, então os programas de avalição devem ser interrompidos e *todos* os livros liberados para compra mediante requisição dos professores – seja o Mein Kampf, seja o Caminho Suave; sejam doutrinários ou não; sejam pornográficos ou não. Fim da história.

Agora, se acham que deve haver avaliação de livros para verificar se eles são adequados quanto a questões como preconceito racial, de classe socioeconômica, gênero, idade, etc., de adequação conceitual, de segurança (não incentivar as crianças a realizarem experimentos perigosos, p.e.), não cabe acusação de censura. Pode-se discordar ou concordar com a avaliação – e a crítica ou defesa deve ser quanto ao mérito dessa avaliação. Gritar “censura” não significa nada nesse contexto.

Então, quanto ao mérito, “Caçadas de Pedrinho” é racista? Eu acho que não. Verdade que foi escrito em outra época, em que a questão da discriminação/igualdade racial não era tão proeminente como hoje. Mas não há insinuações racistas ou preconceituosas contra os negros. Os jornais (como O Globo) dizem que os seguintes trechos são destacados como indicação de preconceito racial:
"Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão".
"Não é a toa que macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens."

Em um trecho anterior do livro, para enfrentar as onças, Pedrinho havia criado pernas de bambu para ficarem bem altos. Quando perguntado se a onça não poderia subir por elas, ele diz que as pernas seriam untadas e ficariam como paus-de-sebo e que nem macacos conseguiriam subir por elas. Mais adiante, Tia Nastácia estava sem as pernas de pau e quando a onça chegou, por medo, subiu rapidamente na árvore, a despeito de suas dificuldades e pouca habilidade natural. Esse é o contexto. Não há nenhuma comparação racista. Além disso, a expressão "macaca" não tem sentido pejorativo, haja vista que no conto sobre Hans Staden, Pedrinho chama sua turma - Emília, Narizinho, que haviam com ele subido em uma árvore, e Visconde, que havia ficado no chão - de "macacada". Carvão é apenas uma descrição da cor da pele - como neve em Branca de Neve.

A segunda frase diz "homens", os homens, seres humanos, dizem bobagens. Não há nenhuma comparação de macacos com negros. É dita em uma reunião que os animais da floresta fazem sobre que atitude tomar ante a morte de uma onça pelas mãos de Pedrinho:
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Logo que os viu reunidos, a capivara tomou a palavra e expôs a situação perigosa em que se achavam todos.
— Quem faz um cesto faz um cento — disse ela. — O fato de terem matado a onça vai encher de coragem esses meninos e fazê-los repetir suas entradas nesta floresta a fim de nos caçar a todos. O caso é bastante sério.
— Peço a palavra! — gritou o bugio, que estava de cabeça para baixo, seguro pelo rabo no seu galho. — Acho que o melhor meio de vocês escaparem à fúria desses meninos é fazerem como nós fazemos: morar em árvores. Quem mora em árvores está livre de todos os perigos do chão.
— Imbecil! — resmungou a capivara, furiosa de tamanha asneira. — Não é à toa que os macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens. Esta reunião foi convocada para discutir-se a sério, visto que o caso é muito sério. Quem tiver uma idéia mais decente que a deste idiota pendurado, que tome a palavra e fale.
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O macaco é o animal e não uma metáfora de pessoa negra.

O parecer aprovado pelo CNE diz: "A crítica realizada pelo requerente foca de maneira mais específica a personagem feminina e negra Tia Anastácia e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas." O texto não se refere apenas a urubus e macacos, há ondas, veados, tatus, capivaras. As feras africanas são mecionadas apenas na imaginação de Pedrinho, que estava decepcionado de, no Brasil, apenas a onça parecer um animal ameaçador constituindo-se em um desafio para caçada - pensa no rinoceronte, que, no livro de Dona Benta, é descrito como muito perigoso, mas o rinoceronte fugido de um circo que encontram é manso e amistoso. Não há nenhum preconceito contra a África nesse aspecto. De fato, a única menção ao urubu é negativa: "E aves, desde o negro urubu fedorento, até essa jóia de asas que se chama beija-flor." - mas é o urubu ave e não é uma metáfora de pessoas negras.

É um excesso de zelo tolo que poderá privar os alunos da rede pública de uma ótima leitura. Algumas expressões realmente soam ofensivas atualmente, como quando Emília chama Nastácia de "pretura". Mas se o parecer absolve o texto de incentivo ao crime ambiental com a caçada de animais silvestres pelo fato da edição apresentar uma nota atual contextualizando que no passado a caça era permitida, uma simples observação quanto a esses anacronismos das relações raciais deveriam bastar - e não pedir que professores tenham toda uma formação sobre gênese do racismo no Brasil.


*Upideite(18/nov/2010): Aparentemente o termo "vetar" não seria correto. O parecer não teria caráter deliberativo, mas apenas de recomendação.

Upideite(09/jan/2011): Eu já havia lido antes, mas acabei não fazendo a menção a duas postagens no Biscoito Fino e a Massa sobre o tema. Ambos a defender a decisão do CNE: este e este.

*Upideite(28/mai/2023): Atualmente minha avaliação sobre o caso mudou bastante. Dado o fato de que Lobato era indubitavelmente racista - com ódio aos negros mesmo - e eugenista ativo, não dá pra sustentar que esses trechos não denotem racismo. Há 10 anos, Feres Jr. e cols. (2013) recomendavam a edição dos livros, suprimindo as partes claramente racistas. Hoje eu tendo a achar que a obra de Lobato não deva ser apresentada às crianças mesmo.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Space quota exceeded 3

(Esta postagem deverá sofrer atualizações posteriores.)

Abaixo algumas afirmações e negativas (ainda) frequentes entre os opositores mais veementes das cotas raciais (para acesso ao ensino superior).

+ Cotas irão aumentar o preconceito contra os negros, acirrar os ânimos e a tensão social.
A) Vamos supor que aumentem. A culpa é dos preconceituosos, não das medidas. Seria o mesmo que dizer que não se deve instalar iluminação em um bairro porque os criminosos que ali atuam não irão gostar.
B) Cotas - e políticas de ações afirmativas - não visam a combater o preconceito. Visam apenas a equalizar as condições de acesso aos recursos sociais.
C) Não há nenhum indício sólido de que as cotas aumentem o preconceito contra os negros. Ao contrário, o instituto Datafolha apurou em duas oportunidades o apoio da população às cotas para negros nas universidades. Em julho de 2007, 65% dos entrevistados declararam ser favoráveis às cotas para negros (e 87% para as pessoas de baixa renda); em novembro de 2008, 62% declararam concordar que "as cotas para negros nas universidades são fundamentais para ampliar o acesso de toda a população à educação". Em outubro de 2003, a Fundação Perseu Abramo fez uma pesquisa sobre cotas e 59% dos entrevistados concordavam (total ou parcialmente) com a reserva de vagas para negros no estudo e no trabalho (em 1995, 48% concordavam total ou parcialmente). Em janeiro de 2013, 62% dos brasileiros eram a favor de cotas em IES públicas para negros, pobres e alunos de escolas públicas (64% eram favoráveis a cotas que só considerassem a raça autodeclarada).
C1)** Há estudos que indicam uma *diminuição* do preconceito com a exposição à diversidade étnico-racial-cultural (hipótese do contato). Para uma revisão: Paluck & Green 2009.

+ Cotas diminuem a qualidade do ensino.
A) Pesquisas indicam que, de modo geral, os cotistas apresentam um desempenho acadêmico igual ou superior aos não-cotistas.
Na UFBA, em 11 dos 18 cursos mais concorridos, os cotistas tiveram desempenho igual ou superior aos não-cotistas.
Na UFPR, os cotistas raciais tiveram, na média, um desempenho pior nos dois primeiros anos de avaliação: índice de rendimento acadêmico dos cotistas raciais - 53% -, de não-cotistas: 62%. Por outro lado, o abandono de curso foi menor: 4% dos cotistas raciais contra 11,2% dos não-cotistas.
Na UnB, em 27 cursos os cotistas raciais tiveram um desempenho superior; em três, o mesmo desempenho e, em 31, um desempenho pior. Quanto à evasão[5], os cotistas apresentam uma taxa não superior ou inferior: 8% contra 10% de não-cotistas em um período de 1,5 ano para ingressos em 2004 (subindo para 15,7% contra 17,5% em 2,5 anos), para ingressos em 2005, em um período de 1,5 anos, as taxas foram: 9,7% contra 16,1%.
Na Uerj*, os cotistas tiveram um desempenho acadêmico praticamente igual (ligeiramente superior) aos não-cotistas: 6,74 contra 6,71 de nota média.
Na UFABC*****, os cotistas, em geral, tiveram um desempenho médio similar (ligeiramente inferior) aos não cotistas: 1,99 de coeficiente de rendimento acadêmico contra 2,11. Os cotistas raciais tiveram um desempenho menor: -35,4% (pretos cotistas), -17,6% (pardos cotistas), -17,2% (pretos não-cotistas), +14,0% (brancos não cotistas), +10,2% (amarelos não-cotistas).
Na UFRGS****, os cotistas raciais (advindos das escolas públicas) que entraram em 2008 tiveram um desempenho pior (maior tempo de integralização do curso) e maior taxa de evasão do que os não cotistas de escolas públicas e não cotistas que não se declararam negros. (Não encontrei os valores.)
Na Unifesp6,  cotistas tiveram desempenho médio 1,26% inferior aos não-cotistas; em cursos do câmpus de São Paulo-SP o desempenho médio foi 6,65% inferior; nos do câmpus de Santos-SP, o desempenho foi 8,71% superior.
No Enade 20086, cotistas (e beneficiários de bônus) tiveram um desempenho médio 9,3% inferior aos não-cotistas. 10% inferior no caso das estaduais paulistas.
Na Unicamp***, que usa o sistema de bonificação em lugar de cotas, os contemplados por critérios sociais (escolas públicas) não tiveram diferenças de desempenho; os bonificados por critérios raciais obtiveram um desempenho pior: 16% de reprovação contra 10% geral e 28% de abandono contra 24% geral.
(Esta argumentação era mais frequente antes da implementação mais ampla das cotas e do surgimento desses estudos. Atualmente é menos sacada, mostrando como dados claros podem ajudar no debate.)

+ Os cotistas não conseguirão emprego por serem considerados inferiores.
Não há distinção na diplomação a respeito de se se trata ou não de aluno cotista. Mas poderia haver uma desconfiança geral - mais facilmente voltada contra os negros -, é preciso estudos para se verificar isso e alguns começam a ser feitos com os cotistas formados.
Na UFRGS7, os egressos cotistas sociais e raciais do curso de Ciências Jurídicas e Sociais estão no mercado dentro de sua área de formação, e relatam não sofrer preconceito.

De todo modo, se houver discriminação contra cotistas/beneficiários de programas de ações afirmativas, o problema tem origem no mercado, não nas ações afirmativas. Eventuais soluções deverão ser encontradas para se impedir essa discriminação e não simplesmente acabar com as políticas de ações afirmativas.

+ Devemos utilizar cotas sociais no lugar das raciais, já que os negros estão mesmo em maior número entre os mais pobres.
Números do Inclusp7 mostram que, entre os beneficiados do programa de inclusão de alunos de escolas públicas na USP, ocorre uma desproporção ainda maior entre brancos e negros do que entre os aprovados na Fuvest que não são beneficiados pelo programa.

O uso exclusivo de cotas sociais pode, assim, agravar ainda mais a exclusão dos negros.

*Upideite(04/fev/2011): adido a esta data.
**Upideite(05/fev/2011): adido a esta data.
***Upideite(30/abr/2012): adido a esta data.
****Upideite(01/ago/2012): adido a esta data.
*****Upideite(13/ago/2012): adido a esta data.
5Updeite(09/abr/2013): adido a esta data.
6Upideite(19/mai/2013): adido a esta data.
7Upideite(23/set/2016): adido a esta data.

Space quota exceeded 2

Uma analogia visual do que significam as medidas de ações afirmativas:


Ações afirmativas procuram minimizar as diferenças de condições entre os membros de diferentes grupos sociais no acesso a bens e serviços sociais. No desenho acima a analogia é com uma barreira a ser superada. O indivíduo verde na primeira coluna está em clara desvantagem em relação ao indivíduo vermelho: ele tem que partir de um ponto mais baixo para superar a barreira. Portanto não é válida a argumentação de que a barreira é a mesma e depende apenas dos esforços individuais para superá-la.

Se damos uma escada para ambos (segunda coluna), o indivíduo verde fica em melhor situação do que na primeira coluna, mas o indivíduo vermelho também é beneficiado e a diferença entre ambos continua - o vermelho tem mais facilidades para superar a barreira. Se a idéia é equalizar as condições, não faz sentido fornecer a mesma vantagem para ambos. A escada aqui representa uma solução provisória.

Se cimentamos o fosso em que o verde se encontra (coluna três), as diferenças iniciais são removidas e temos uma solução permanente para a desigualdade entre os grupos.

Mas não adianta fazer uma plataforma de cimento para o vermelho (coluna quatro) para dizer que se está trabalhando sem discriminação.


No desenho acima temos basicamente o mesmo raciocínio do primeiro desenho. Aqui o desnível cinza representa a discriminação econômica, o desnível verde representa a discriminação racial.