A
íntegra da nota da CNBB criticando a decisão do STF de reconhecer a união estável de casais do mesmo sexo pode ser lida em uma reportagem do Estadão.
Um festival de bobagens.
"A diferença sexual é originária e não mero produto de uma opção cultural."
Quem e onde disse que as diferenças sexuais são opções culturais? (Há diferenças de 'papéis' que são de fato culturalmente condicionadas - há sociedades matrilineares, patrilineares, matriarcais, patriarcais, poliândricas, poligínicas, etc., mas suponho que estejam a falar das características biológicas como aparelho reprodutor e orientação sexual.)
E se disseram, qual a relevância disso?
"O matrimônio natural entre o homem e a mulher bem como a família monogâmica constituem um princípio fundamental do Direito Natural."
Bééééé, wrong answer.
1) No Brasil, o ordenamento jurídico *não* se baseia em "direito natural". A Constituição Federal diz no parágrafo único de seu artigo 1o: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição" e em seu artigo 5o, inc. I: "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição" e II: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".
2) Casamento, monogamia e união somente de homem com mulher *não* é dado pela natureza e com valor universal. Há fortes suspeitas a respeito da monogamia em humanos. Tanto o casamento não é nem um pouco universal que os próprios bispos que elaboraram (ou pelo menos subscreveram) a equivocada nota *não* são casados - aliás, a todo o clero da ICAR é vetado o casamento.
"As pessoas que sentem atração sexual exclusiva ou predominante pelo mesmo sexo são merecedoras de respeito e consideração. Repudiamos todo tipo de discriminação e violência que fere sua dignidade de pessoa humana."
Ótimo, então não vamos discriminá-las dizendo que elas não podem constituir família.
"As uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo recebem agora em nosso País reconhecimento do Estado. Tais uniões não podem ser equiparadas à família, que se fundamenta no consentimento matrimonial, na complementaridade e na reciprocidade entre um homem e uma mulher, abertos à procriação e educação dos filhos."
Como não? Há consentimento entre as partes - ninguém está obrigando ninguém a se manter em união (ou futuramente, se casar), há complementaridade e reciprocidade entre os indivíduos da união. Não há proibição de um casal infértil (ou que simplesmente não desejem filhos) de se unirem (e nem de se casarem), então a procriação dentro da união não é objeção. E um casal homossexual poderia ainda: ter filhos de outras relações (um homem divorciado ou uma mulher divorciada, p.e.) ou mesmo adotar crianças (a lei permite que até solteiros adotem, por que não um casal homossexual?). Tendo filhos, há obrigação legal de que os responsáveis lhes provenham educação.
"Equiparar as uniões entre pessoas do mesmo sexo à família descaracteriza a sua identidade e ameaça a estabilidade da mesma."
Que ameaça? Casais heterossexuais continuarão suas vidas. Ninguém está proibindo a união heterossexual, apenas permitindo a união homossexual - ou melhor, a lhe reconhecer seus direitos.
"É um fato real que a família é um recurso humano e social incomparável, além de ser também uma grande benfeitora da humanidade. Ela favorece a integração de todas as gerações, dá amparo aos doentes e idosos, socorre os desempregados e pessoas portadoras de deficiência. Portanto têm o direito de ser valorizada e protegida pelo Estado."
O Estado está tanto *valorizando* a família que está a permitir que *mais* pessoas possam constituir as suas - com seus direitos assegurados. Casais homossexuais podem igualmente favorecer a integração das gerações, dar amparo aos doentes e idosos, socorrer os desempregados e portadores de deficiência. Homossexuais não são mais (nem menos) egoístas do que heterossexuais tanto quanto podemos saber.
"É atribuição do Congresso Nacional propor e votar leis, cabendo ao governo garanti-las. Preocupa-nos ver os poderes constituídos ultrapassarem os limites de sua competência, como aconteceu com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal. Não é a primeira vez que no Brasil acontecem conflitos dessa natureza que comprometem a ética na política."
O STF já ultrapassou antes seus limites de competência - como no caso
Battisti -, mas aqui não é o caso. O STF está *garantido direitos* a um grupo de *cidadãos* - a quem a própria nota da CNBB diz que não se deve discriminar. O instrumento aplicado foi a ADIN (houve também uma ADPF, considerada prejudicada): julgou-se que as leis que restringem o reconhecimento da união estável a apenas casais heterossexuais era inconstitucional, por promover exatamente a discriminação contra os homossexuais.
Que pessoa de bem pode ser contra *garantir direitos* de pessoas, sobretudo, quando essa garantia de direitos não fere os de ninguém?
A CNBB perde mais uma oportunidade de se mostrar humanista (há pontos altos em outras ocasiões quando se põe a defender os direitos humanos), atuando mais uma vez de modo retrógrado e obscurantista com essa nota.