quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Aborto: alguém quer mesmo discutir isso?

No twitter promoveram a hashtag #legalizaroaborto pelo "Dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto".

Obviamente, os contrários ao aborto também deram as caras. É um diálogo de surdos. A plataforma - limitando a 140 caracteres - já não é algo que facilite a troca de argumentos, reduzindo as coisas mais a slogans, porém, para piorar, são slogans que não são projetados para convencer mais do que os que já estão convencidos: os tweets são basicamente apenas marcação de posição.

A maioria dos argumentos - contra ou a favor da legalização do aborto - é terrível. Listerei alguns, com os contra-argumentos; apesar de não ser um levantamento exaustivo, parece-me que são relativamente representativos: em diversos tweets coisas similares foram escritas. (Atenção: não quer dizer que todos os argumentos pró ou contra são ruins.)

"Ovo não é galinha. Semente não é árvore. Embrião (ou feto) não é uma pessoa." Dependendo do conceito de vida humana, feto ou até embrião pode, sim, ser considerado uma pessoa. Pintinho também não é galinha, como plântula não é árvore. Crianças não são pessoas? (Há gente, como Peter Singer, que defende a possibilidade de infanticídio.)

"E se tua mãe tivesse te abortado?" Simples, a pessoa não existiria. Também não existiria se os pais não tivesse feito sexo - há que se obrigar a todos a terem relações sexuais sem uso de contraceptivos?

"O corpo é da mulher, o Estado não tem o direito de intervir sobre ele." Isso se se admitir que o feto (ou o embrião) não tem direito também.

"É uma questão de saúde pública. Mulheres correm risco fazendo aborto clandestino. Milhares morrem todos os anos." Não sei se se pode dizer que isso seja uma decorrência direta da proibição legal quando, na prática, é perfeitamente possível se fazer aborto pelo SUS - bastaria alegar que a gravidez foi originada de violência sexual (isso não é fiscalizado). Pelas Normas Técnicas do MS sobre aborto e outros procedimentos de prevenção de agravos de violência sexual contra mulheres: "O Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento nesse caso [de gravidez resultante de violência sexual], a não ser o consentimento da mulher. Assim, a mulher que sofre violência sexual não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia. Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento. //O Código Penal afirma que a palavra da mulher que busca os serviços de saúde afirmando ter sofrido violência, deve ter credibilidade, ética e legalmente, devendo ser recebida como presunção de veracidade. O objetivo do serviço de saúde é garantir o exercício do direito à saúde, portanto não cabe ao profissional de saúde duvidar da palavra da vítima, o que agravaria ainda mais as consequências da violência sofrida. Seus procedimentos não devem ser confundidos com os procedimentos reservados a Polícia ou Justiça. " Há um risco, pequeno, da mulher responder criminalmente se mais tarde se souber que ela mentiu sobre a natureza da gravidez; mas se aborto em clínicas clandestinas ou homemade é tão perigoso assim (e é), é um risco que valeria muito a pena.

Além disso, consideremos uma situação hipotética em que um grupo de pessoas (adultas ou crianças nascidas) representa risco à saúde pública: elas estão contaminadas com gripe aviária. O abate dessas pessoas deve ser cogitado? E há um outro fator aí: existe um bom grau de escolha consciente por parte da mãe em se arriscar em abortamento clandestinos. É um tanto diferente do caso de pessoas com drogadição (para quem também se cogita regulação legal para a minimização de impacto à saúde), cujo grau de liberdade de escolha é diminuída pelo efeito das drogas sobre o sistema nervoso. Talvez uma melhor comparação - embora a escala seja bem diferente - seja a prática de "surf" de trem ou carona dependurado em ônibus ou rachas em locais desabitados: libera-se a prática, regulamentando-a ("o sistema de transporte público deve fornecer capacetes e coletes protetores")? Ou aumenta a fiscalização para inibi-la? Ou tenta-se outros procedimentos? Quais?

"Ilegalidade do aborto não impede que ele ocorra." Não só do aborto, mas de direção alcoolizada, homicídios e outros crimes que ninguém quer ver legalizado apenas porque ocorrem e com alta frequência.

"Diminuiria o número de pessoas pobres, de filhos maltratados." Infanticídio poderia ter esses efeitos também. As pessoas sem condições de criar podem deixar os filhos para adoção.

"Só engravida quem quer." Os métodos contraceptivos não são 100% seguros, há um índice de falha. Nas condições ideais, pílulas apresentam 0,3% de falhas ao longo de um ano (isto é, 0,3% das mulheres usando muito cuidadosamente o método acabam engravidando ao longo de um ano de uso) - nas condições normais (pelo menos nos EUA), o índice de falha chega a 8% no ano.

"Legalizar o aborto aumenta o número de sexo desprotegido, gravidez indesejada, DST/Aids e número de abortos." Nos casos de países em que houve legalização, não se encontrou tal efeito - embora haja dificuldades de se estimar isso em relação ao número de abortos, já que os números antes da legalização são, claro, apenas estimativas um tanto imprecisas. Em Portugal, o aborto foi legalizado em 2007. Em 2009, foram registrados cerca de 19.000 abortamentos legais; em 2006 eram estimados cerca de 20 mil abortamentos ilegais. A taxa de natalidade lusa é de cerca de 1%/ano; isso dá aproximadamente dois abortos por cem partos vivos. Nos EUA, a taxa de aborto tem declinado, atualmente está na faixa de 1 milhão de procedimentos por ano; na década de 1990, eram 1,6 milhão.

"O aborto já é permitido, mas só para os ricos. As mulheres pobres serão beneficiadas." Curiosamente, quanto mais baixa a renda, maior é a resistência à prática do aborto. Entre entrevistados com renda até 2 SM, 70% são contra alteração da lei permitindo mais casos; entre os com mais de 10 SM de renda, 58% são contra (isso em 2008). Além disso, como dito mais acima, pelo SUS é perfeitamente possível se realizar a interrupção, é só mentir (e as pessoas mentem o tempo todo por coisas muito mais banais e com riscos maiores).

"Maioria dos que são contra o aborto são homens. Os homens deveriam se abster de opinar já que não engravidam." Não há diferença por gênero. E, embora os homens não engravidem, sua opinião é tão legítima quanto a de pessoas que são contrárias à pena de morte (ou a favor delas) sem que tenham tido a fatídica experiência de ter algum parente próximo vítima de crime abominável.

O que vai restar de substancial são estes dois argumentos e variantes:

Os dois são perfeitos e inatacáveis na lógica. Porém dependem justamente de se aceitar a premissa a respeito de quando se inicia a vida humana: na fertilização, na implantação do zigoto na parede do útero, no início do funcionamento do sistema circulatório (análogo à morte por parada cardiorrespiratória), no início do funcionamento do sistema nervoso, na capacidade de sobrevivência ao meio extrauterino...

O processo de desenvolvimento humano é contínuo. Marcar qual tempo é o mais significativo é um jogo completamente arbitrário: tanto no início quanto na morte. Aceitamos a morte encefálica, em boa medida, porque ela é prática: permite a retirada de órgãos ainda funcionais - e, no momento, irreversível (como foi a parada cardiorrespiratória por muito tempo, antes das técnicas de ressuscitação por massagem e por desfibriladores).

Como em muitas áreas, os grupos pró e contra radicalizam a ponto de se tornarem mutuamente incompreensíveis. Os argumentos que usam valem-se de valores que só são partilhados dentro de cada grupo, só funcionam para os convertidos - eventualmente para os indecisos. Embora os antiaborto (ou pró-vida) tenham uma retórica que, no atacado, funciona melhor para a população em geral - de aspecto emocional e, não raras vezes, de cunho religioso.

Os pró-aborto (ou pró-escolha), ao se voltarem para questões seculares, encampam a batalha no terreno da doutrina religiosa contra o laicismo. Não me admira que venham perdendo espaço ao longo dos anos no Brasil.

Eu gostaria de romper esse binarismo: contra ou favor. Há mais do que uma gradação entre esses polos - há uma ramificação de possibilidades intermediárias: em que situações a interrupção da gravidez é permissível (no Brasil, em lei são quando a gravidez é resultante de estupro - ou mais amplamente, de violência sexual -, ou quando a vida da mãe está em risco; a jurisprudência tem estendido para os casos de fetos inviáveis, em particular, dos anencefálicos - decisão final que será dada pelo STF em algum momento, espera-se)? qual o prazo permitido para a interrupção? o processo dependerá de decisão judicial ou nem precisa de notificação? (Embora a definição de quando começa a vida tenha alguma influência a respeito do posicionamento, ela não é decisiva por si mesma: do mesmo modo que se aceita a terminação da vida de adultos conscientes em alguns casos - eutanásia, pena de morte, legítima defesa... Assim, mesmo que se reconheça que o embrião ou feto seja um ser humano vivo, pode-se aceitar a terminação da gestação.)

Enquanto pró-vida tratar os pró-aborto como homicidas e os pró-escolha tratar os antiaborto como ogros medievais, não vejo espaço para um avanço dialogado (o que quer que avanço signifique).

Disclêimer: Não que importe, mas eu não tenho uma posição definida quanto ao tema. Alguma inclinação a aceitar o abortamento para fetos até antes do início do funcionamento do sistema nervoso.

Um comentário:

Victor disse...

Texto muito sensato, na minha opinião.