domingo, 15 de abril de 2012

Cantadas, galanteios e outras questões feministas

Como uma pessoa recebe uma cantada é um ato pessoal: pode achar um galanteio, pode ser indiferente a ela, pode considerar um aborrecimento menor ou ter uma forte opinião contrária - mesmo a cantadas das mais leves como "e aí, gatinha/o". Não me cabe julgar isso, só respeitar os sentimentos de cada um/a.

Porém, chamou-me a atenção um trecho do texto publicado no Blogueiras Feministas:
"Ao contrário do que muitos homens gostam de dizer por aí, a maioria de nós, mulheres, não se sente prestigiada ou enaltecida ao ser assediada na rua por um sujeito que ela não conhece e, tampouco, tem a intenção de conhecer."

Claro, depende um pouco do significado de assédio - no texto, a autora discute casos grotescos de tocar nas partes íntimas sem permissão, mas também diz que: "um dos medos constante na mente de qualquer mulher é o abuso sexual, que pode começar com uma aparentemente inofensiva 'cantada'" (grifo meu).

Tocar partes íntimas é considerado ato libidinoso e pode ser tipificado como estupro se envolver ameaça (art. 213 do Código Penal) ou violência sexual mediante fraude se envolver modo que dificulte a livre manifestação da vontade da vítima (art. 215) ou assédio sexual se se valer da condição de superior hierárquico (art. 216-A) ou, pelo menos, como ato obsceno (art. 233). Há que se avançar na legislação: por exemplo, não prevê casos que não envolvam ameaça (incluindo demissão) ou fraude realizados em locais não públicos - como no recesso do lar.

Mas, voltemos às cantadas inofensivas. Mesmo estas, se a pessoa não gosta, não devem ser proferidas. Não é este, no entanto, o ponto que discuto. É a afirmação de que a maioria das mulheres não recebem a cantada como elogio. Tecnicamente é verdade, mas não quer dizer que a maioria se sinta ofendida. Pesquisa realizada a pedido da Fundação Perseu Abramo* (do PT) em 2001, mostra que, se 32% das mulheres consideram as cantadas como desrespeitosas, 27% as recebem como elogio; 8% dizem que depende da cantada, 6% são indiferentes e 27% declaram que nunca foram cantadas.

Vendo unicamente pelo lado da reação das receptoras, a questão é um pouco mais matizada. O argumento não é exatamente: "não cante as mulheres porque elas consideram grosseiro", mas, sim: "Assumindo que a sensação de desrespeito tenha o mesmo peso da sensação de elogio e assumindo a probabilidade de que uma cantada tenha 50% de chances de ser do tipo grosseira; tomando-se uma mulher ao acaso da população, há uma chance de (32%+4%)/(100%-27%) = 49,31% de ser desagradável, uma chance de (27%+4%)/(100%-27%) = 42,46% de ser agradável e 8,22% de ser recebido com indiferença; portanto a expectativa de ganho é negativa, ainda que por pouco (-49,31% + 42,46% + 0 x 8,22% = -0,0685); então, a menos que você seja um galanteador muito bom, quando a expectativa de ganho é positiva (+0,0411 se 100% das suas cantadas forem positivas), o melhor é ficar quieto."

Esse raciocínio, no entanto, não vai funcionar bem se levarmos em conta o ganho por parte de quem faz a cantada. Se para o sujeito, ele ganha sempre que cantar alguma mulher, independente da resposta que provocar (um sorriso ou xingamento), a cantada vai ocorrer sempre. Porém, o argumento acima é para sensibilizar parte dos homens susceptível a esse tipo de argumento.

A coisa se complica mais se levarmos em conta o chamado sexismo benevolente. Provavelmente boa parte das cantadas e galanteios poderão ser vistas como reforço da imagem socialmente construída da mulher, qual seja, a de um ser incompletamente independente (é delicada, precisa ser protegida, ser tutelada). Mesmo para um homem mais esclarecido na questão (não é bem o meu caso, tenho que confessar), é um problema que vai entrar em sutilezas ainda maiores. Estudos mostram que as mulheres precisam ser treinadas para detectar casos de sexismo benevolente e nós, homens, mesmo quando enxergamos tais situações, recusamo-nos a ver como algo negativo.

Digamos que se trate de um homem razoavelmente esclarecido diante de uma mulher não treinada (a situação é improvável somente pela parte do homem razoavelmente esclarecido - no entanto, faz sentido somente nesse caso), como ele deve se portar? Respeitar a decisão da mulher como um agente independente ou tutelá-la treinando-a?

Bom esclarecer que ao expor tal situação, não estou tentando caricaturizar o feminismo; considero, porém, a questão bem posta: o que fazer?

Como disse no começo, meu posicionamento é de respeitar a decisão da pessoa. Se ela recebe uma cantada como ofensa pessoal, não passarei uma cantada; se ela recebe bem, não vejo problema algum (mesmo sob o mencionado risco do sexismo). Mas como saber se a garota recebe bem ou mal um galanteio? Se se trata de uma completa desconhecida, pra mim, vale o quadro discutido para uma cantada no meio da rua: de modo geral, é bom evitar (até porque, infelizmente, não me encaixo na categoria dos que dão cantadas certeiras). No entanto, se se conhece a pessoa, pode haver informação suficiente para que a expectativa de ganho seja positiva (para a mulher).

Mas e o fator do sexismo benevolente? A solução que vejo é deixar isso a cargo das mulheres. Que haja conversa e debate entre elas, feministas ou não, e elas decidam por si o que vale e o que não vale. Não no sentido de que um grupo dite para os homens como eles devem agir com todas as mulheres, mas que cada mulher, devidamente informada pelo debate, tenha clareza sobre o modo como deseja ser tratada e os homens respeitem as decisões individuais.

As feministas têm uma outra frente de trabalho também: fazer as próprias mulheres compreenderem o feminismo. Também segundo a pesquisa encomendada pela FPA, somente 45% das mulheres identificam o feminismo com a luta pela igualdade de diretos, 22% acham que se trata da superioridade feminina ou ser briguenta, 16% que é ser feminina (ser vaidosa, cuidar da casa), 23% nunca ouviram falar ou não sabem (a soma final é maior do que 100% - suponho que mais de uma opção poderia ser mencionada).

Disclêimer: O aviso de praxe - sou machista, mas não me orgulho disso.

*Upideite(11/set/2013): O link está quebrado. O atual é este.
*Upideite(8/mai/2014): Um estudo científico sobre o tema. (via @carlosom71)

8 comentários:

André disse...

O movimento feminista é bastante plural, de modo que qualquer afirmação que se faça sempre vai ficar enviesada pelas experiências pessoais.
Tendo isso em vista, eu não vejo o feminismo como sendo a luta pela igualdade, principalmente por duas questões. Primeiro, o tempo de contribuição para aposentadoria menor para mulheres, independente da mulher ter ou não jornada "dupla" ou "ganhar menos" que o homem (dois pseudofatos que o IBGE parece desmentir). Segundo, pelo aborto (como método de prevenção da gravidez indesejada) ser considerado como direito exclusivo da mulher.
Eu penso que é lícito lutar para obter vantagens. O que me incomoda é a hipocrisia de se chamar essa luta de busca por igualdade.

none disse...

Não chamaria de hipocrisia. Não é vantagem, a mulher está mesmo em desvantagem.

Os dados do IBGE e outras pesquisas mostram como as mulheres ganham 30% menos para os mesmos serviços.
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1007151-mulheres-ganham-menos-do-que-os-homens-aponta-censo.shtml
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No Brasil não há direito ao aborto. Ele é crime. Mas, se fosse permitido - caberia à mulher, porque é ela quem gesta. A situação mais complicada seria se o homem não quisesse e a mulher quisesse.

[]s,

Roberto Takata

André disse...

Roberto Takata,
Todas essas matérias da imprensa que falam sobre a diferença de rendimento entre homens e mulheres, em geral, cometem o mesmo erro. Não dá para calcular média colocando na mesma conta empregadas domésticas e engenheiros. Seria preciso estratificar pela ocupação e formação. Um exemplo de distorção é o fato de, na construção civil, as mulheres ganharem mais que os homens, http://www.sepm.gov.br/noticias/documentos-1/anuario_das_mulheres_2011.pdf.
Mesmo o histórico social que fez com que existam mais engenheirOs que empregadAs domésticas, tem que ser melhor ponderado numa discussão sobre reforma previdenciária que respeitasse os direitos adquiridos, sendo aplicável apenas no futuro.
Sou a favor de fornecer alguma vantagem a quem precisa. Mas favorecer indiscriminadamente as mulheres sejam elas empregadas domésticas ou juízas, donas de casa e mães em tempo integral ou funcionárias públicas com empregadas domésticas e sem filhos? Isso não é igualdade.
Quanto ao aborto, não estou analisando a partir da situação presente, mas de como seria se fosse liberado sem restrições.

none disse...

André

"Não dá para calcular média colocando na mesma conta empregadas domésticas e engenheiros."

Mesmo se comparando *o mesmo cargo* a diferença existe.

Mas mesmo que a diferença se devesse ao tipo de cargo, novamente haveria discriminação - estaria a se deixar para as mulheres ocupações de qualidade inferiro - mesmo elas tendo uma escolaridade média maior do que os homens.

A compensação com uma aposentadoria mais precoce para as mulheres em geral faz sentido. Se uma juíza tem menos problemas do que uma doméstica; uma juíza, na média, tem mais problemas do que um juiz.

[]s,

Roberto Takata

André disse...

Roberto Takata,
A diferença pode existir, alguém teria que medir, mas os dados atuais indicam que essa diferença é menor que os 18% atuais (considerando os empregos com carteira assinada).
Quanto à discriminação no acesso aos cargos melhor remunerados, esse quadro é fortemente influenciado pelo passado. O que eu aponto como uma injustiça é a atual regra para o futuro. Se uma análise da dinâmica socioeconômica atual mostrar que esse quadro permanece, que se mantenha a regra atual. Mas, dado que as mulheres dominam amplamente as vagas nas universidades (mesmo na área de exatas já existe um certo equilíbrio), eu duvido que esse quadro vá permanecer.
Uma juíza tem mais problemas que um juiz? Não creio. Uma mãe, em geral, tem mais problemas que um pai. Mas, mesmo nesses casos, é preciso tentar olhar para o futuro e dar um certo espaço para que o livre arbítrio e o divórcio evitem que escolhas ruins no casamento sejam compartilhadas com a sociedade.

none disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
none disse...

André "alguém teria que medir"

E mediram. E as mulheres, para o mesmo cargo, recebem 70% dos homens em média.

A diferença aumenta quanto *maior* a escolaridade:
http://migre.me/8HGcl
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A diferença média de rendimento é de 20%. Qdo se considera o mesmo cargo a diferença é maior (30%) porque não há o fator que você supõe de que haja diferença por mulheres ocuparem cargos menos qualificados.

Tb não é verdade que as diferenças venham diminuindo. A discrepância tem aumentado.

http://migre.me/8HGz8

"Mas, dado que as mulheres dominam amplamente as vagas nas universidades (mesmo na área de exatas já existe um certo equilíbrio), eu duvido que esse quadro vá permanecer."

Como dito acima, tende até a piorar.

"Uma juíza tem mais problemas que um juiz?"

Tem. Juízas são menos promovidas proporcionalmente do que juízes.

[]s,

Roberto Takata

André disse...

Roberto Takata,
1) Há uma incoerência evidente entre os dados do MTE e do IBGE. Creio que os dados do MTE se concentrem nos empregos formais e do IBGE englobe tudo.
2) Fazer a estratificação por setores da economia já ajuda, mas seria preciso estratificar pela função e por área, para não gerar distorções (tipo as mulheres ganharem mais que os homens na construção civil, e vice-versa no funcionalismo). Veja que na sua segunda referência as diferenças
diminuem em relação aos valores totalizados.
3) Não vi essa piora que você diz, a diferença salarial vem diminuindo.
4) Essa dificuldade é por serem mulheres ou por serem mães? A solução é continuar a aposentar mais cedo ou criar mecanismos que impeçam a discriminação?