terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Zika e danos neurológicos: na ausência de indícios, especular não é a solução

Artigo no Observatório da Imprensa assinado pelo jornalista João Ricardo Zini - que não conheço e de cujas referências não encontro no Google traço além desse próprio artigo - questiona a validade das evidências científicas - ou, antes, o status ontológico e deontológico da "ausência de evidências científicas".

"Mas a afirmação de que 'não há evidência científica' é um velho clichê que, em certas situações, mais inquieta do que explica. Quando vidas podem ser comprometidas, a falta de demonstração cartesiana dos riscos não significa que eles não existam."

Não é exatamente uma questão de cartesianismo. A qualificação 'científica' (que o autor quer passar por 'cartesiana' - que, não com rara frequência, é usada como um qualificativo negativo) quer dizer somente que se seguem critérios de objetividade, verificabilidade, reprodutibilidade - que buscam minimizar efeitos da mera opinião, das subjetividades, da má fé.

Porém a questão vai um pouco além de não se ter indícios. O sistema de vigilância sanitária no Brasil é relativamente bem desenvolvido.

Casos de quadros sintomatológicos tão importantes como problemas neurológicos graves e, ainda mais, como o coma são relativamente fáceis de se rastrear a partir de registros hospitalares. É esse sistema que permitiu detectar o surto de microcefalia, por exemplo.

Ou seja, nesse caso, a ausência de registro é mais eloquente do que uma situação em que não há registro simplesmente porque nenhuma busca foi feita. É uma ausência de registro que atua com um indicador da ausência do evento. Como a falta de marcação no ponto do funcionário é um indicador de que o funcionário faltou - porque o default é que, na presença, haja a marcação.

(Talvez valha lembrar a piada do capitão do navio que, ao flagrar o imediato bêbado registrou no diário de bordo: "Hoje o imediato estava embriagado". No dia seguinte, o imediato sabendo do que se sucedera resolveu também registrar: "Hoje o capitão estava sóbrio". Peço perdão ao solitário leitor ou solitária leitora do blogue por explicar a piada. Mas a ausência de registro em outros dias do estado alcoolizado do imediato *é* um indício de que ele *não* estava alcoolizado nesses outros dias. Enquanto que a ausência de registro de sobriedade do capitão nos demais dias, *não* é um indício de que o capitão estivesse borracho; porque *não* é objetivo das bitácoras registrar estados de normalidade, mas de excepcionalidade.)

Ou seja, embora a velha máxima saganiana de que "ausência de evidência não é evidência da ausência" continue válida; aqui trata-se de efetivamente de "evidência da ausência". Não um indício absoluto, claro. Tais registros não são perfeitos e poderia haver casos em um nível baixo o suficiente para não se destacar nos números de agravos neurológicos que são normalmente esperados por outras causas.

No entanto, isso seria um indicativo de que, se ocorressem tais problemas associados à infecção por vírus zika, seriam suficientemente raros. E os pesquisadores e autoridades de saúde foram suficientemente conscienciosos para dizer que, sim, poderiam eventualmente ocorrer tais casos.

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Diz a nota da Fiocruz:
"É importante também esclarecer que, assim como outros vírus, a exemplo de varicela, enterovírus e herpes, o zika poderia causar, em pequeno percentual, complicações clínicas e neurológicas em adultos e crianças, sem distinção de idade."
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Mas o "não há evidências científicas" é mais do que declaração protocolar ou "clichê" como diz o articulista. Trata-se de um claro *desmentido* de que os casos mencionados nos boatos sejam reais.

Suponhamos, no entanto, que não houvesse um sistema de registro e vigilância de saúde no Brasil - como não há em vários países. Ou seja, que fosse o caso de "ausência de evidência" e não de "evidência de ausência". Oras, é o caso justamente de suspender o juízo de fato.

"Há apenas alguns meses, provavelmente muitos doutores achariam delírio dizer que o aedes aegypti tem alguma relação com microcefalia em recém-nascidos. Como sempre, muita gente teve de morrer para que o conhecimento científico reconhecesse tais evidências."

Bobajada. Até agora há um único óbito atribuível ao ZIKV. A microcefalia não é, em si, letal, ainda que uma má formação de gravidade. E, mais importante, a relação entre a microcefalia e infecção por ZIKV não foi fruto de um boato, mas de, primeiro, uma detecção pelo sistema de vigilância de saúde de um surto de casos de microcefalia e de uma epidemia de febre zika; e depois de inferências a partir de coincidências ecológicas de tempo e espaço entre as duas enfermidades - e, então, de uma busca sistemática pela presença de ZIKV nos pacientes com microcefalia (e seguirá com experimentos controlados para a determinação da natureza dessa relação), ao mesmo tempo em que se descartava a ocorrência de outras causas possíveis conhecidas: sífilis, citomegalovírus, rubéola, etc.

Não foi um caso de denegação peremptória de relação para uma posterior admissão a contragosto frente a indícios esfregados na cara e que não conseguem mais negar.

Já em julho deste ano, tão logo o aumento de casos de microcefalia começou a emergir, a suspeita da relação com o ZIKV foi levantada.

"Tão ou mais importante talvez seja discutir possíveis riscos e, sobretudo, os casos que possam sugerir esta ou aquela hipótese, na medida em que isso seja relevante para antecipar medidas preventivas."

Primeiro que falar em risco na ausência de indícios é puro exercício de especulação. Pode-se alegar o princípio da precaução; nesse caso, porém, está a se falar não de riscos, mas de incerteza e, mais do que isso, é preciso ter uma boa margem para que o dano causado não seja maior do que o potencialmente evitado: por exemplos, causar pânico, levar à automedicação, fomentar a exploração da boa fé... Sem uma boa garantia a esse respeito, estaremos no terreno irresponsável do sensacionalismo.

Quanto a discutir "casos que possam sugerir esta ou aquela hipótese", se existem tais casos, então existem indícios científicos. O que um jornalista pode (e deve) fazer é apresentá-los em contra-argumentação à negação das autoridades. Mas não é a negação de que a ausência de indícios não deve servir de desculpas para a especulação, é tão somente (e 'tão somente' é tão somente uma expressão - já que seria algo de boa monta) a negação da alegação de que não há indícios científicos.

E "antecipar medidas preventivas" é ocioso, porque a medida preventiva seria a mesma: combater o mosquito transmissor. (Sério, digamos que se descubra mesmo que o ZIKV possa levar os indivíduos ao coma - sempre lembrando que é algo que não é impossível de vir a ocorrer - que medida preventiva efetiva diferente haveria de ser tomada que não a de evitar a infecção pelo ZIKV?)

Upideite(31/dez/2015): Vamos fazer uma analogia. Digamos que corre boato pelo whatsapp de que um famoso artista cometeu um grave crime contra a vida. A polícia diz que não há nenhum registro de passagem dele, nem queixa contra ele. Sabemos que a polícia já errou no passado. Seria o caso de ficar discutindo na imprensa as consequências para a vítima, para a carreira do artista e do futuro do staff que trabalha com ele, a possibilidade de se prendê-lo preventivamente? Afinal, se for mesmo criminoso, outras pessoas poderão ser atacadas. Veja bem, tudo isso só com base no fato de que rolou um boato - cuja origem desconhecemos - em uma rede social, nada mais: nenhuma vítima nomeada, nenhum detalhe sobre o crime imputado como data e local, nenhuma testemunha a confirmar.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Governos, hierarquias e determinismo biológico: minhas cordiais discordâncias a Pirulla

O Pirulla, do excelente canal homônimo no YouTube, publicou uma série de tweets sobre sua visão a respeito de uma organização social sem governo.


Permitam-me discordar. Não tanto quanto à conclusão de que seria impossível uma sociedade humana sem nenhuma forma de liderança e hierarquia (mas também discordo de que seja realmente impossível), porém, principalmente, em relação à base argumentativa.

O fato de se apontar para um comportamento compartilhado com nossos parentes primatas não-humanos é para sugerir um componente inato de tal comportamento. Não é uma evidência matadora de que realmente esse comportamento em humano seja inato e não fruto da cultura, mas é uma evidência com algum peso. Estudos de genética comparada - na impossibilidade de se fazerem testes de manipulação genética por questões éticas (o acaso pode nos brindar com experimentos naturais levados a cabo por mutações espontâneas): não apenas interespecífica, mas interpopulacionais, interfamiliares e interindividuais também entram em jogo (como o acompanhamento de irmãos gêmeos criados em separado) - fornecem-nos indícios mais sólidos.

Dito isso, devemos ter em mente, então, que a afirmação de que somos primatas hierárquicos é bastante plausível, ainda que longe de acima de qualquer dúvida razoável. Mesmo aceitando-se essa premissa semi-explícita, ainda é discutível a premissa de que "sempre arrumam um líder".

As sociedades humanas de que temos conhecimento, de fato, organizam-se em alguma forma de hierarquia com um ou mais líderes. E isso pode ser um indicador de que formas alternativas sejam mais difíceis. Mas não é um indicador infalível da impossibilidade.

As sociedade humanas modernas apresentam alguma forma de caça. E caça é realizada por nosso parente chimpanzé comum. Os bonobos ainda não foram registrados realizando caça cooperativa, mas parecem comer tanto carne quanto o chimpanzé. (Além disso, entre os bonobos, a hierarquia é bem menos rígida.) De todo modo, embora seja plausível que o comportamento de caça seja inato em humanos, mesmo na suposição de que o seja de fato, não parece nenhum absurdo imaginar a emergência de uma sociedade sem nenhuma forma de caça. De fato, o movimento em vários países é pela restrição da caça de animais e até de seu banimento.

Em relação à hierarquia, liderança e governo, também há um movimento entre os países democráticos ocidentais desenvolvidos de, por meio de dispositivos legais, limitar o poder do governante - não mais havendo espaço para monarquias absolutistas.

Não me parece, assim, haver realmente um impedimento para que se possa vir a emergir uma sociedade não hierárquica, anárquica (no sentido original de ausência de um governo central). Não discuto aqui a conveniência (ou desejabilidade) ou não de uma tal sociedade; apenas que não parece ser algo que seja impossível ou virtualmente impossível.

Sim, herdamos de nossos ancestrais diversas características e inclinações comportamentais. Muito de nossas características psicológicas devem ser inatas.

Porém, muitas delas podem ser moldadas até radicalmente pela cultura e experiência individual e coletiva (como educação). A organização social parece ser uma delas.

Edward O. Wilson talvez até tivesse razão ao dizer que o comunismo seria uma boa teoria aplicada à espécie errada. De fato, não somos formigas (que, por ironia, é um dos exemplos máximos de sociedade hierárquica rígida). Porém, justamente uma das características humanas é a plasticidade neuronal e a adaptabilidade conferida por nossa inteligência.

Se, em uma eventualidade, uma sociedade sem governo for vista por um número suficiente de pessoas como a solução mais apropriada, ela poderá vir a ser aplicada; mesmo indo contra instintos e inclinações naturais. A reprodução é certamente uma inclinação natural, mas muito de nós somos capazes de superá-la e evitar de modo planejado a gravidez. Alguns de nós são capazes até de superar a inclinação ao ato sexual.

domingo, 20 de dezembro de 2015

Mais fosfoetanolamina: (modo de ação) x (segurança+eficácia)

A Folha publicou em sua seção 'Tendências e Debates' texto do Prof. Dr. Wilmar da Rocha d'Angelis, professor de linguística da Unicamp, em defesa da fosfoetanolamina (cuidado! contém paywall poroso). Há alguns erros que comentarei abaixo.

"A USP, e a própria Anvisa, tem abusado do argumento de que não se pode fornecer ou comercializar mediamento sem atender a todos os protocolos do órgão de vigilância, que garantem a 'segurança' e a 'eficácia' do seu uso. O argumento é falacioso. Primeiro, porque basta ler bulas de remédios adotados como 'primeira linha' no tratamento de diversas doenças para se encontrar expressões como 'não se sabe como 'X' age no organismo, acredita-se que...

Ora, se há algo que evidencia uma eficácia duvidosa e nenhuma segurança no uso de um medicamento é esse tipo de afirmação, que no entanto, está escrita com todas as letras nas bulas de diversos fármacos defendidos, ou melhor, aprovados pela Anvisa."

Não se trata de falácia. O fato de não se saber *como* um dado composto age não impede de, com os devidos testes, saber *que* o composto age efetivamente e com segurança contra uma determinada enfermidade ou condição. Como comentei rapidamente na postagem anterior em que comento texto do jornalista Bruno de Pierro sobre o mesmo tema, em linhas beeeem gerais, basta dividir em dois grupos: um que recebe o tratamento controle (sem o fator a se testar) e outro que recebe o tratamento teste (com o fator a ser avaliado), e verificar a diferença de *respostas* entre os dois grupos.

Saber o mecanismo de ação é importante para outras coisas, mas não é condição necessária para se verificar se no grupo teste não morre mais pessoas, não apresenta piora no quadro, não desenvolve outras patologias e, mais do que isso, se há melhora no quadro ou cura da condição que se deseja tratar.

"Em segundo lugar, a fosfoetanolamina não é, claramente, um medicamento; por seu mecanismo de ação - esse sim, bem conhecido e, até mesmo, amplamente divulgado pelos pesquiasdores liderados pelo prof. Gilberto Chierice - a substância é um suplemento coadjuvante no tratamento do câncer.

Do mesmo modo que se receita albumina, ácido fólico, selênio ou suplementos vitamínicos para pacientes em diversas situações, a fosfoetanolamina pode e deve ser ingerida como forma de auxiliar o organismo em seu combate a uma doença grave. Albumina, ácido fólico, complexo vitamínico e uma centena de outros produtos livremente comercializados em todo o país, não são medicamentos."

A venda de albumina e cia. não é livre. Elas devem ser registradas na Anvisa como "Substâncias Bioativas e Probióticos Isolados com Alegação de Propriedades Funcional e ou de Saúde" e *não* dispensa a comprovação por meio de testes das propriedades alegadas.

Embora o grupo possa querer mudar de estratégia, até o momento, os próprios pesquisadores enxergam no composto um medicamento em potencial: "Nosso grupo tem a convicção de que ela pode oferecer uma *cura* para o câncer, pois todos os fatos indicam isso".* Tanto é que Chierice tentou registrar a Pho-s na Anvisa como medicamento - mas desistiu no meio do caminho por achar um processo complicado (essas besteiras como ter que comprovar a eficiência e a segurança).

Além disso, na lei, um medicamento é "produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico". A alegação é que o composto cure câncer. Se essa alegação pretende ser mantida, o registro é de medicamento.

Não é verdade tampouco que a ação da Pho-s seja bem conhecida. Há propostas de que inicie a apoptose de células tumorais, talvez por meio de atuação sobre os mitocôndrios. Mas não se sabe por que isso ocorreria ao mesmo tempo em que não atuaria sobre células não tumorais. Para piorar, há na literatura técnica descrição de ação da PEA como *estimulante* da divisão celular de células tumorais: e.g. Kano-Sueoka et al. 1979.

"a fosfoetanolamina é inimiga da poderosíssima indústria farmacêutica"

De modo algum, tanto é que, segundo o próprio Chierice, houve proposta para a compra da patente do processo de síntese de Pho-s: "Uma multinacional me ofereceu um valor inicial de US$ 148 milhões pela patente". O baixo custo de produção é até um atrativo a mais para a Big Pharma, pois significa que podem ter uma margem de lucro espetacular. Só se ver o quanto a Bayer fatura (e lucra) com a Aspirina (mesmo o ácido acetilssalicílico ter a patente expirada há muito tempo).

*Upideite(20/dez/2015): Este trecho da entrevista de Chierice ao CRQ4 é mais claro sobre a determinação do grupo em fazer da Pho-s um medicamento (e não um simples adjuvante): "Enquanto a patente estiver conosco, teremos a certeza de que ela será usada para divulgar a substância e transformá-la em um medicamento"

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Fosfoetanolamina: Minhas cordiais discordâncias a Bruno de Pierro

O jornalista de ciências Bruno de Pierro tem um blogue cuja leitura recomendo. Sua mais recente postagem é sobre a fosfoetanolamina e, mais genericamente, sobre os limites das ciências em relação ao que se pode conhecer e como os cientistas devem se portar em relação a esses limites.

Embora concorde que o reconhecimento dos limites das ciências seja importante, discordo dos exemplos dados e de algumas frases que ao menos na aparência têm um sentido de universalidade, mas que, elas mesmas, devem ser bem mais restritas na prática.

Ele começa contando um exemplo pessoal da musicoterapia e de seu efeito. De Pierro diz: "É simples: há um impacto positivo inegável na vida dos pacientes que são submetidos a terapias musicais." Bem, em princípio, qualquer coisa é negável - do contrário não faz parte do escopo científico (voltaremos a este ponto logo mais abaixo). Mas o que de Pierro quer dizer é outra coisa: "Basta visitar um desses lugares para ver idosos se movimentarem, sorrirem, inclusive aquele vovô rabugento. Como representar isso em gráficos, números, estatísticas? Não sei, mas os resultados, vivos, notórios, pulsantes, estão aí, diante dos nossos olhos."

Não basta visitar e ver. Muito do desenvolvimento do pensamento científico e filosófico deu-se no embate contra exatamente as subjetividades das impressões pessoais, na falibilidade de nossos sentidos. Por exemplo, há frequentemente uma diferença entre as estimativas dos participantes de manifestações entre os organizadores dos protestos e as autoridades contestadas. Os dois foram lá e viram. Mas viram coisas diferentes. São sinceros no que narram a respeito do que viram? Desconfiamos que não, porém se vamos nos basear apenas no "ir lá e ver", vamos apenas no fiar em qual narrativa mais nos agrada.

Há várias falhas no processo de simplesmente "ir e ver". O vovô rabugento está sorrindo por causa da música ou a despeito da música? E se, antes da música, mais gente estivesse sorrindo? "Ah, mas eles estavam sérios antes de começarmos a tocar a música". Mas e se começaram a tocar a música quando o efeito dos medicamentos começaram a fazer efeito?

Se o processo de inquirição científica tem limitações - e tem -, o processo de "ir e ver" também tem. E, em muitos casos, limitações até mais graves.

De Pierro prossegue: "Nem tudo cabe dentro de um artigo científico. Nem sempre os parâmetros da ciência são capazes de fornecer respostas. Quando isso não acontece, o que deve ser feito?"

Nem tudo cabe no artigo científico. Nem sempre os parâmetros da ciência são capazes de fornecer respostas. Não é o caso da musicoterapia. É possível, sim, representar os efeitos em gráficos, números e estatísticas, de modo mais abrangente e confiável do que pelo método de "ir e ver". Os melhores dados até o momento indicam que, para alguns usos (como para pessoas com desordens de espectro do autismo), a musicoterapia tem um bom efeito psicológico. Isso pode ser medido de diferentes formas: questionários para pacientes e seus familiares, medições de parâmetros fisiológicos associados a estresse (pressão arterial, frequência cardíaca, apetite, etc.), até a frequência e a duração dos sorrisos podem ser mensurados.(Infelizmente para o caso de adultos com demência, os dados disponíveis são ruins para se tirar qualquer conclusão por ora. Mas isso não é por falta de instrumento adequado de medição e, sim, por falta de aplicação adequada desses instrumentos.)

Pouca coisa que se refira a efeitos sobre a saúde fica de fora do que é verificável em termos científicos. Sobretudo o que se alega de cura de doenças e melhora de sintomas. Basta dividir os pacientes em dois grupos - de preferência de modo aleatório e com um número grande de indivíduos em cada grupo -, expor um dos grupos ao fator que se alega ter efeito, enquanto o outro grupo não recebe tal fator - de preferência sem que nem os pacientes, nem os atendentes saibam se foi ou não aplicado o fator para este ou aquele paciente. Ao final de um tempo, verificam-se os índices de melhora e de cura em cada grupo. Se o fator é misterioso (por exemplo, orações intercessórias), o estado de saúde do paciente é bem mais mundano e comezinho.

"Os maus cientistas (sim, eles existem, e não são raros) primeiramente desqualificarão o objeto que por eles não pode ser medido, analisado, compreendido ou explorado. Depois, caso haja uma pressão na sociedade ou mesmo de setores da própria comunidade científica, irão se debruçar sobre o objeto, tentando adaptá-lo aos moldes da ciência. Se o objeto, ou fenômeno, não puder ser explicado pela ciência, imediatamente será rebaixado ao posto de 'não-científico', 'charlatanismo', 'crença', 'placebo', etc."

Tirando "charlatanismo" não vejo nenhum rebaixamento com a classificação sob os demais termos antes de 'etc.' Argumentei a respeito de outra postagem de de Pierro sobre as limitações das ciências ante o saber dito tradicional que o fato de algo ser considerado "não científico" não significa que isso seja ruim. Arte é, em boa medida, não científica. A arte não se torna menor por conta disso. Mas, se algo não permite a análise pelas ciências, então não se trata de ciências. E se, ainda assim, insiste-se que seja um tipo de ciência, então estaremos diante de uma pseudociência - bastante afim do "charlatanismo" elencado por Bruno. Se algo que é charlatanismo é classificado como charlatanismo, não é rebaixamento.

"quando algo ainda não pode ser comprovado cientificamente, a resposta deve ser no sentido de desqualificar?"

Não. A resposta deve ser no sentido de qualificar segundo as qualidades. Se não é científico, não podemos dizer que seja científico. Se é charlatanismo, não podemos deixar de dizer que seja charlatanismo.

Se algo pode, em princípio, ser comprovado cientificamente e, a despeito da aplicação correta de metodologia científica, falha em ser comprovado cientificamente, então, esse "[aindanão pode ser comprovado cientificamente" qualifica-se como "cientificamente refutado" e faz pouco sentido continuar tendo o que foi refutado como válido.

Se algo pode, em princípio, ser comprovado cientificamente, mas nenhum esforço sistemático foi feito para sua validação científica, então esse "ainda não pode ser comprovado cientificamente" qualifica-se como "não devidamente testado".

Da musicoterapia, de Pierro faz a ponte, então, para a fosfoetanolamina, defendendo que os pacientes possam escolher se desejam ou não receber o composto:
"No caso da fosfo, diante da ausência de um medicamente que de fato combata o câncer, parentes e pacientes recorrem ao que há disponível e que está dando resultado, mesmo que ainda não tenha sido legitimado pela ciência. Sabem dos riscos, mas não querem mais sofrer.

É justo dizer a eles: esperem, ainda não concluímos todos os testes?
[...]
Aceitamos que um rapaz maior de idade possa fumar um cigarro com milhares de substâncias que foram cientificamente comprovadas tóxicas, usando o argumento de que o indivíduo tem o direito de decidir sobre o próprio corpo. Por que não aceitar que o mesmo rapaz, que depois pode ter um câncer de pulmão, não possa ter o direito de utilizar a fosfo, como saída última para a cura?"

Há diferença importante. Quando o rapaz decide-se por fumar, ele não está em situação de desespero. O desespero chamado à baila para que empatizemos com o paciente é um fator que tira boa parte da capacidade de decisão racional. No caso do fumo, justamente pelos sabidos efeitos tóxicos, há empenho governamental para que as pessoas *deixem* de fumar. Não há nenhum programa governamental para fornecer cigarro pelo SUS e espero que não pleiteiem isso. Não há demanda para que o governo produza fumígeros. E espero que não permitam isso.

E mais do que isso, a questão não é tirar do paciente o direito de utilizar a fosfoetanolamina mesmo informado de que não há os devidos testes sobre sua segurança e eficácia. As questões são que: 1) dentro de uma instituição pública, um composto não devidamente testado estava sendo fornecido como se provavelmente curasse o câncer; 2) esse composto estava sendo produzido de maneira irregular.

Agora demanda-se que essa instituição utilize-se de recursos já escassos para produzir o composto sem os devidos testes.

Como nota de Pierro, pacientes desesperados recorrem a tudo o que há de disponível. Há milhares de compostos e processos não devidamente testados utilizados por dezenas de milhares de pacientes com câncer - chás de todo tipo, beberagens, imposições de mãos, compostos experimentais dos mais variados tipos - por quê, então, a *fosfoetanolamina* e não esses outros compostos? Ok, há os pacientes da Pho-s organizados em suas petições. Agora, se isso vale para a Pho-s deverá valer para petições futuras. Só com medicamentos sob o princípio do uso compassivo já se gasta cerca de R$ 1 bilhão por ano. E por que pacientes com câncer? E os diabéticos, portadores de HIV, epiléticos, cirróticos, hanseáticos, pacientes com insuficiência renal, cardíacos, obesos, etc?

Podem usar? Podem. As pessoas têm o direito ao desespero. Mas não cabe às autoridades alimentarem esperanças não embasadas e que têm grandes chances de serem falsas.

Em nome da empatia, da capacidade de entender o sofrimento alheio (e nem sempre alheio apenas), não podemos jogar no lixo as estatísticas. Algo como 90% dos compostos que entram na fase clínica de pesquisa são rejeitados antes de chegarem ao mercado - e uma fração é retirada depois que se descobrem efeitos adversos graves não detectados nos testes anteriores.

Que tipo de ganho temos realmente com "mais flexibilidades e novas dinâmicas" com um processo - fornecer deliberadamente em larga escala (ao menos na escala das demandas judiciais) compostos sem os testes prévios necessários - em que, estatisticamente, pelo menos 90% dos pacientes estarão em uma situação pior (no mínimo perderam tempo e dinheiro) do que se recebessem placebo?

Então, é mais do que justo dizer para os pacientes: "este composto ainda não foi devidamente testado, para que possamos liberá-lo para a comercialização e/ou distribuição governamental, pedimos que esperem; entendemos seus desejos, mas os riscos são altos; o processo de testes prévios dos compostos antes da liberação, no cômputo geral, tem salvado vidas e aumentado os anos de vida com saúde médio da população - não são protocolos tirados do nariz para alimentar algum desejo oculto sádico de ver o sofrimento alheio; ao contrário, foi e vem sendo desenvolvido ao longo dos anos para cobrir as falhas anteriores que expuseram pessoas a consequências mais do que trágicas com medicamentos não devidamente testados - sendo o caso da talidomida um exemplo bem conhecido, mas nem de longe o único; não é um procedimento a prova de falhas, mas é bem mais seguro do que a aprovação liberal - ainda que de uso circunscrito - de compostos sob demandas sociais sem os devidos testes prévios".

O uso compassivo deve ser considerado. Mas com uma visão bem mais abrangente do que o "ir e ver". O "ir e ver" pode complementar as planilhas frias, porém jamais substituir protocolos devidamente validados para avaliação de compostos e tratamentos.

domingo, 6 de dezembro de 2015