domingo, 20 de dezembro de 2015

Mais fosfoetanolamina: (modo de ação) x (segurança+eficácia)

A Folha publicou em sua seção 'Tendências e Debates' texto do Prof. Dr. Wilmar da Rocha d'Angelis, professor de linguística da Unicamp, em defesa da fosfoetanolamina (cuidado! contém paywall poroso). Há alguns erros que comentarei abaixo.

"A USP, e a própria Anvisa, tem abusado do argumento de que não se pode fornecer ou comercializar mediamento sem atender a todos os protocolos do órgão de vigilância, que garantem a 'segurança' e a 'eficácia' do seu uso. O argumento é falacioso. Primeiro, porque basta ler bulas de remédios adotados como 'primeira linha' no tratamento de diversas doenças para se encontrar expressões como 'não se sabe como 'X' age no organismo, acredita-se que...

Ora, se há algo que evidencia uma eficácia duvidosa e nenhuma segurança no uso de um medicamento é esse tipo de afirmação, que no entanto, está escrita com todas as letras nas bulas de diversos fármacos defendidos, ou melhor, aprovados pela Anvisa."

Não se trata de falácia. O fato de não se saber *como* um dado composto age não impede de, com os devidos testes, saber *que* o composto age efetivamente e com segurança contra uma determinada enfermidade ou condição. Como comentei rapidamente na postagem anterior em que comento texto do jornalista Bruno de Pierro sobre o mesmo tema, em linhas beeeem gerais, basta dividir em dois grupos: um que recebe o tratamento controle (sem o fator a se testar) e outro que recebe o tratamento teste (com o fator a ser avaliado), e verificar a diferença de *respostas* entre os dois grupos.

Saber o mecanismo de ação é importante para outras coisas, mas não é condição necessária para se verificar se no grupo teste não morre mais pessoas, não apresenta piora no quadro, não desenvolve outras patologias e, mais do que isso, se há melhora no quadro ou cura da condição que se deseja tratar.

"Em segundo lugar, a fosfoetanolamina não é, claramente, um medicamento; por seu mecanismo de ação - esse sim, bem conhecido e, até mesmo, amplamente divulgado pelos pesquiasdores liderados pelo prof. Gilberto Chierice - a substância é um suplemento coadjuvante no tratamento do câncer.

Do mesmo modo que se receita albumina, ácido fólico, selênio ou suplementos vitamínicos para pacientes em diversas situações, a fosfoetanolamina pode e deve ser ingerida como forma de auxiliar o organismo em seu combate a uma doença grave. Albumina, ácido fólico, complexo vitamínico e uma centena de outros produtos livremente comercializados em todo o país, não são medicamentos."

A venda de albumina e cia. não é livre. Elas devem ser registradas na Anvisa como "Substâncias Bioativas e Probióticos Isolados com Alegação de Propriedades Funcional e ou de Saúde" e *não* dispensa a comprovação por meio de testes das propriedades alegadas.

Embora o grupo possa querer mudar de estratégia, até o momento, os próprios pesquisadores enxergam no composto um medicamento em potencial: "Nosso grupo tem a convicção de que ela pode oferecer uma *cura* para o câncer, pois todos os fatos indicam isso".* Tanto é que Chierice tentou registrar a Pho-s na Anvisa como medicamento - mas desistiu no meio do caminho por achar um processo complicado (essas besteiras como ter que comprovar a eficiência e a segurança).

Além disso, na lei, um medicamento é "produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico". A alegação é que o composto cure câncer. Se essa alegação pretende ser mantida, o registro é de medicamento.

Não é verdade tampouco que a ação da Pho-s seja bem conhecida. Há propostas de que inicie a apoptose de células tumorais, talvez por meio de atuação sobre os mitocôndrios. Mas não se sabe por que isso ocorreria ao mesmo tempo em que não atuaria sobre células não tumorais. Para piorar, há na literatura técnica descrição de ação da PEA como *estimulante* da divisão celular de células tumorais: e.g. Kano-Sueoka et al. 1979.

"a fosfoetanolamina é inimiga da poderosíssima indústria farmacêutica"

De modo algum, tanto é que, segundo o próprio Chierice, houve proposta para a compra da patente do processo de síntese de Pho-s: "Uma multinacional me ofereceu um valor inicial de US$ 148 milhões pela patente". O baixo custo de produção é até um atrativo a mais para a Big Pharma, pois significa que podem ter uma margem de lucro espetacular. Só se ver o quanto a Bayer fatura (e lucra) com a Aspirina (mesmo o ácido acetilssalicílico ter a patente expirada há muito tempo).

*Upideite(20/dez/2015): Este trecho da entrevista de Chierice ao CRQ4 é mais claro sobre a determinação do grupo em fazer da Pho-s um medicamento (e não um simples adjuvante): "Enquanto a patente estiver conosco, teremos a certeza de que ela será usada para divulgar a substância e transformá-la em um medicamento"

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