domingo, 27 de dezembro de 2015

Governos, hierarquias e determinismo biológico: minhas cordiais discordâncias a Pirulla

O Pirulla, do excelente canal homônimo no YouTube, publicou uma série de tweets sobre sua visão a respeito de uma organização social sem governo.


Permitam-me discordar. Não tanto quanto à conclusão de que seria impossível uma sociedade humana sem nenhuma forma de liderança e hierarquia (mas também discordo de que seja realmente impossível), porém, principalmente, em relação à base argumentativa.

O fato de se apontar para um comportamento compartilhado com nossos parentes primatas não-humanos é para sugerir um componente inato de tal comportamento. Não é uma evidência matadora de que realmente esse comportamento em humano seja inato e não fruto da cultura, mas é uma evidência com algum peso. Estudos de genética comparada - na impossibilidade de se fazerem testes de manipulação genética por questões éticas (o acaso pode nos brindar com experimentos naturais levados a cabo por mutações espontâneas): não apenas interespecífica, mas interpopulacionais, interfamiliares e interindividuais também entram em jogo (como o acompanhamento de irmãos gêmeos criados em separado) - fornecem-nos indícios mais sólidos.

Dito isso, devemos ter em mente, então, que a afirmação de que somos primatas hierárquicos é bastante plausível, ainda que longe de acima de qualquer dúvida razoável. Mesmo aceitando-se essa premissa semi-explícita, ainda é discutível a premissa de que "sempre arrumam um líder".

As sociedades humanas de que temos conhecimento, de fato, organizam-se em alguma forma de hierarquia com um ou mais líderes. E isso pode ser um indicador de que formas alternativas sejam mais difíceis. Mas não é um indicador infalível da impossibilidade.

As sociedade humanas modernas apresentam alguma forma de caça. E caça é realizada por nosso parente chimpanzé comum. Os bonobos ainda não foram registrados realizando caça cooperativa, mas parecem comer tanto carne quanto o chimpanzé. (Além disso, entre os bonobos, a hierarquia é bem menos rígida.) De todo modo, embora seja plausível que o comportamento de caça seja inato em humanos, mesmo na suposição de que o seja de fato, não parece nenhum absurdo imaginar a emergência de uma sociedade sem nenhuma forma de caça. De fato, o movimento em vários países é pela restrição da caça de animais e até de seu banimento.

Em relação à hierarquia, liderança e governo, também há um movimento entre os países democráticos ocidentais desenvolvidos de, por meio de dispositivos legais, limitar o poder do governante - não mais havendo espaço para monarquias absolutistas.

Não me parece, assim, haver realmente um impedimento para que se possa vir a emergir uma sociedade não hierárquica, anárquica (no sentido original de ausência de um governo central). Não discuto aqui a conveniência (ou desejabilidade) ou não de uma tal sociedade; apenas que não parece ser algo que seja impossível ou virtualmente impossível.

Sim, herdamos de nossos ancestrais diversas características e inclinações comportamentais. Muito de nossas características psicológicas devem ser inatas.

Porém, muitas delas podem ser moldadas até radicalmente pela cultura e experiência individual e coletiva (como educação). A organização social parece ser uma delas.

Edward O. Wilson talvez até tivesse razão ao dizer que o comunismo seria uma boa teoria aplicada à espécie errada. De fato, não somos formigas (que, por ironia, é um dos exemplos máximos de sociedade hierárquica rígida). Porém, justamente uma das características humanas é a plasticidade neuronal e a adaptabilidade conferida por nossa inteligência.

Se, em uma eventualidade, uma sociedade sem governo for vista por um número suficiente de pessoas como a solução mais apropriada, ela poderá vir a ser aplicada; mesmo indo contra instintos e inclinações naturais. A reprodução é certamente uma inclinação natural, mas muito de nós somos capazes de superá-la e evitar de modo planejado a gravidez. Alguns de nós são capazes até de superar a inclinação ao ato sexual.

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