O jornalista de ciências Bruno de Pierro tem um blogue cuja leitura recomendo. Sua mais recente postagem é sobre a fosfoetanolamina e, mais genericamente, sobre os limites das ciências em relação ao que se pode conhecer e como os cientistas devem se portar em relação a esses limites.
Embora concorde que o reconhecimento dos limites das ciências seja importante, discordo dos exemplos dados e de algumas frases que ao menos na aparência têm um sentido de universalidade, mas que, elas mesmas, devem ser bem mais restritas na prática.
Ele começa contando um exemplo pessoal da musicoterapia e de seu efeito. De Pierro diz: "É simples: há um impacto positivo inegável na vida dos pacientes que são submetidos a terapias musicais." Bem, em princípio, qualquer coisa é negável - do contrário não faz parte do escopo científico (voltaremos a este ponto logo mais abaixo). Mas o que de Pierro quer dizer é outra coisa: "Basta visitar um desses lugares para ver idosos se movimentarem, sorrirem, inclusive aquele vovô rabugento. Como representar isso em gráficos, números, estatísticas? Não sei, mas os resultados, vivos, notórios, pulsantes, estão aí, diante dos nossos olhos."
Não basta visitar e ver. Muito do desenvolvimento do pensamento científico e filosófico deu-se no embate contra exatamente as subjetividades das impressões pessoais, na falibilidade de nossos sentidos. Por exemplo, há frequentemente uma diferença entre as estimativas dos participantes de manifestações entre os organizadores dos protestos e as autoridades contestadas. Os dois foram lá e viram. Mas viram coisas diferentes. São sinceros no que narram a respeito do que viram? Desconfiamos que não, porém se vamos nos basear apenas no "ir lá e ver", vamos apenas no fiar em qual narrativa mais nos agrada.
Há várias falhas no processo de simplesmente "ir e ver". O vovô rabugento está sorrindo por causa da música ou a despeito da música? E se, antes da música, mais gente estivesse sorrindo? "Ah, mas eles estavam sérios antes de começarmos a tocar a música". Mas e se começaram a tocar a música quando o efeito dos medicamentos começaram a fazer efeito?
Se o processo de inquirição científica tem limitações - e tem -, o processo de "ir e ver" também tem. E, em muitos casos, limitações até mais graves.
De Pierro prossegue: "Nem tudo cabe dentro de um artigo científico. Nem sempre os parâmetros da ciência são capazes de fornecer respostas. Quando isso não acontece, o que deve ser feito?"
Nem tudo cabe no artigo científico. Nem sempre os parâmetros da ciência são capazes de fornecer respostas. Não é o caso da musicoterapia. É possível, sim, representar os efeitos em gráficos, números e estatísticas, de modo mais abrangente e confiável do que pelo método de "ir e ver". Os melhores dados até o momento indicam que, para alguns usos (como para pessoas com desordens de espectro do autismo), a musicoterapia tem um bom efeito psicológico. Isso pode ser medido de diferentes formas: questionários para pacientes e seus familiares, medições de parâmetros fisiológicos associados a estresse (pressão arterial, frequência cardíaca, apetite, etc.), até a frequência e a duração dos sorrisos podem ser mensurados.(Infelizmente para o caso de adultos com demência, os dados disponíveis são ruins para se tirar qualquer conclusão por ora. Mas isso não é por falta de instrumento adequado de medição e, sim, por falta de aplicação adequada desses instrumentos.)
Pouca coisa que se refira a efeitos sobre a saúde fica de fora do que é verificável em termos científicos. Sobretudo o que se alega de cura de doenças e melhora de sintomas. Basta dividir os pacientes em dois grupos - de preferência de modo aleatório e com um número grande de indivíduos em cada grupo -, expor um dos grupos ao fator que se alega ter efeito, enquanto o outro grupo não recebe tal fator - de preferência sem que nem os pacientes, nem os atendentes saibam se foi ou não aplicado o fator para este ou aquele paciente. Ao final de um tempo, verificam-se os índices de melhora e de cura em cada grupo. Se o fator é misterioso (por exemplo, orações intercessórias), o estado de saúde do paciente é bem mais mundano e comezinho.
"Os maus cientistas (sim, eles existem, e não são raros) primeiramente desqualificarão o objeto que por eles não pode ser medido, analisado, compreendido ou explorado. Depois, caso haja uma pressão na sociedade ou mesmo de setores da própria comunidade científica, irão se debruçar sobre o objeto, tentando adaptá-lo aos moldes da ciência. Se o objeto, ou fenômeno, não puder ser explicado pela ciência, imediatamente será rebaixado ao posto de 'não-científico', 'charlatanismo', 'crença', 'placebo', etc."
Tirando "charlatanismo" não vejo nenhum rebaixamento com a classificação sob os demais termos antes de 'etc.' Argumentei a respeito de outra postagem de de Pierro sobre as limitações das ciências ante o saber dito tradicional que o fato de algo ser considerado "não científico" não significa que isso seja ruim. Arte é, em boa medida, não científica. A arte não se torna menor por conta disso. Mas, se algo não permite a análise pelas ciências, então não se trata de ciências. E se, ainda assim, insiste-se que seja um tipo de ciência, então estaremos diante de uma pseudociência - bastante afim do "charlatanismo" elencado por Bruno. Se algo que é charlatanismo é classificado como charlatanismo, não é rebaixamento.
"quando algo ainda não pode ser comprovado cientificamente, a resposta deve ser no sentido de desqualificar?"
Não. A resposta deve ser no sentido de qualificar segundo as qualidades. Se não é científico, não podemos dizer que seja científico. Se é charlatanismo, não podemos deixar de dizer que seja charlatanismo.
Se algo pode, em princípio, ser comprovado cientificamente e, a despeito da aplicação correta de metodologia científica, falha em ser comprovado cientificamente, então, esse "[ainda] não pode ser comprovado cientificamente" qualifica-se como "cientificamente refutado" e faz pouco sentido continuar tendo o que foi refutado como válido.
Se algo pode, em princípio, ser comprovado cientificamente, mas nenhum esforço sistemático foi feito para sua validação científica, então esse "ainda não pode ser comprovado cientificamente" qualifica-se como "não devidamente testado".
Da musicoterapia, de Pierro faz a ponte, então, para a fosfoetanolamina, defendendo que os pacientes possam escolher se desejam ou não receber o composto:
"No caso da fosfo, diante da ausência de um medicamente que de fato combata o câncer, parentes e pacientes recorrem ao que há disponível e que está dando resultado, mesmo que ainda não tenha sido legitimado pela ciência. Sabem dos riscos, mas não querem mais sofrer.
É justo dizer a eles: esperem, ainda não concluímos todos os testes?
[...]
Aceitamos que um rapaz maior de idade possa fumar um cigarro com milhares de substâncias que foram cientificamente comprovadas tóxicas, usando o argumento de que o indivíduo tem o direito de decidir sobre o próprio corpo. Por que não aceitar que o mesmo rapaz, que depois pode ter um câncer de pulmão, não possa ter o direito de utilizar a fosfo, como saída última para a cura?"
Há diferença importante. Quando o rapaz decide-se por fumar, ele não está em situação de desespero. O desespero chamado à baila para que empatizemos com o paciente é um fator que tira boa parte da capacidade de decisão racional. No caso do fumo, justamente pelos sabidos efeitos tóxicos, há empenho governamental para que as pessoas *deixem* de fumar. Não há nenhum programa governamental para fornecer cigarro pelo SUS e espero que não pleiteiem isso. Não há demanda para que o governo produza fumígeros. E espero que não permitam isso.
E mais do que isso, a questão não é tirar do paciente o direito de utilizar a fosfoetanolamina mesmo informado de que não há os devidos testes sobre sua segurança e eficácia. As questões são que: 1) dentro de uma instituição pública, um composto não devidamente testado estava sendo fornecido como se provavelmente curasse o câncer; 2) esse composto estava sendo produzido de maneira irregular.
Agora demanda-se que essa instituição utilize-se de recursos já escassos para produzir o composto sem os devidos testes.
Como nota de Pierro, pacientes desesperados recorrem a tudo o que há de disponível. Há milhares de compostos e processos não devidamente testados utilizados por dezenas de milhares de pacientes com câncer - chás de todo tipo, beberagens, imposições de mãos, compostos experimentais dos mais variados tipos - por quê, então, a *fosfoetanolamina* e não esses outros compostos? Ok, há os pacientes da Pho-s organizados em suas petições. Agora, se isso vale para a Pho-s deverá valer para petições futuras. Só com medicamentos sob o princípio do uso compassivo já se gasta cerca de R$ 1 bilhão por ano. E por que pacientes com câncer? E os diabéticos, portadores de HIV, epiléticos, cirróticos, hanseáticos, pacientes com insuficiência renal, cardíacos, obesos, etc?
Podem usar? Podem. As pessoas têm o direito ao desespero. Mas não cabe às autoridades alimentarem esperanças não embasadas e que têm grandes chances de serem falsas.
Em nome da empatia, da capacidade de entender o sofrimento alheio (e nem sempre alheio apenas), não podemos jogar no lixo as estatísticas. Algo como 90% dos compostos que entram na fase clínica de pesquisa são rejeitados antes de chegarem ao mercado - e uma fração é retirada depois que se descobrem efeitos adversos graves não detectados nos testes anteriores.
Que tipo de ganho temos realmente com "mais flexibilidades e novas dinâmicas" com um processo - fornecer deliberadamente em larga escala (ao menos na escala das demandas judiciais) compostos sem os testes prévios necessários - em que, estatisticamente, pelo menos 90% dos pacientes estarão em uma situação pior (no mínimo perderam tempo e dinheiro) do que se recebessem placebo?
Então, é mais do que justo dizer para os pacientes: "este composto ainda não foi devidamente testado, para que possamos liberá-lo para a comercialização e/ou distribuição governamental, pedimos que esperem; entendemos seus desejos, mas os riscos são altos; o processo de testes prévios dos compostos antes da liberação, no cômputo geral, tem salvado vidas e aumentado os anos de vida com saúde médio da população - não são protocolos tirados do nariz para alimentar algum desejo oculto sádico de ver o sofrimento alheio; ao contrário, foi e vem sendo desenvolvido ao longo dos anos para cobrir as falhas anteriores que expuseram pessoas a consequências mais do que trágicas com medicamentos não devidamente testados - sendo o caso da talidomida um exemplo bem conhecido, mas nem de longe o único; não é um procedimento a prova de falhas, mas é bem mais seguro do que a aprovação liberal - ainda que de uso circunscrito - de compostos sob demandas sociais sem os devidos testes prévios".
O uso compassivo deve ser considerado. Mas com uma visão bem mais abrangente do que o "ir e ver". O "ir e ver" pode complementar as planilhas frias, porém jamais substituir protocolos devidamente validados para avaliação de compostos e tratamentos.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2015
Fosfoetanolamina: Minhas cordiais discordâncias a Bruno de Pierro
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6 comentários:
Ótimo, Takata.
Valeu, Orsi.
[]s,
Roberto Takata
Caceta, excelente argumentação. Acho que você está coberto de razão.
Takata, uma dúvida:
"As questões são que: 1) dentro de uma instituição pública, um composto não devidamente testado estava sendo fornecido como se provavelmente curasse o câncer; 2) esse composto estava sendo produzido de maneira irregular." -- suponhamos que eu tenha meios de produzir o composto na minha casa. Eu poderia? Seria correto proibir ou liberar essa produção privada antes que qualquer mal tenha sido observado em quem consome o composto?
Só posso bater palmas.
@dNap
Em casa, provavelmente não. Há regulamentos sobre quem e como pode produzir compostos químicos: o CRF até autuou a USP por produzir o composto sem as condições mínimas de boas práticas: http://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2015/11/conselho-de-farmacia-autua-usp-por-producao-de-fosfoetanolamina.html
Mas a PEA é vendida normalmente. Por exemplo, está no catálogo da Sigma Aldricht. Se alguém quiser comprar e consumir para seu próprio uso, ao menos nesta altura das coisas, não veria sentido em uma proibição.
@Luiz Bento,
Valeu. (Espero que não seja no sentido de "pra ver o louco dançar"... rere)
[]s,
Roberto Takata
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