Um tema recorrente nos círculos céticos-racionalistas (entenda aqui o ceticismo e o racionismo como o neoceticismo e o neorracionalismo e não os ceticismo e racionalismo filosóficos clássicos) é a diferença entre o pensamento religioso e o cético-racionalista (que quase sempre igualam com o pensamento científico).
É rara uma visão positivista clássica: de que as ciências forneçam um conhecimento com certeza absoluta. Mas é muito comum ainda um resquício do cientificismo, de que esse conhecimento é assintoticamente próximo de 100% de certeza (quanto mais se testa, mais certo é) e que tal conhecimento supera de tal feita os outros tipos de visão de mundo que as alternativas deveriam ser desconsideradas - ou varridas do mapa.
O pensamento religioso é, nessa visão, pautado em fé dogmática. (A maioria pensa nas religiões como alegações de verdades reveladas - características das grandes religiões monoteístas e até do budismo primitivo - em seu conceito de Nirvana ou iluminação -, uma generalização que desconsidera muitas formas de espiritualismo e religião.)
Geralmente a fé é vista como uma crença sem bases - e a fé dogmática, a crença cega e renintente: a aceitação de verdades reveladas incontestáveis e indiscutíveis. (Se assim fosse não deveríamos notar nenhuma evolução no pensamento religioso - o que não é rigorosamente verdadeiro, muitas delas passam por reformas: especialmente após períodos de crise: e se alguém lembrar das mudanças de paradigmas kuhnianos não estará tão longe, mas há também adaptações lentas, contínuas e graduais às mudanças do comportamento das pessoas. Não são raras as cismas, criando-se novas correntes ou mesmo novas religiões, mas mesmo dentro de uma linhagem contínua de tradições ocorrem tais mudanças.)
Mas dentro da perspectiva de muitos céticos-racionalistas, o racionalismo e ceticismo se baseiam na dúvida sistemática: questionando-se todo tipo de afirmações (e negações). A isso se junta um empirismo reformado: os fatos naturais e a experimentação controlada (científica) como juízes de tais afirmações.
A tais seria uma grande bobagem (não direi heresia) qualquer tentativa de paralelismo entre as visões religiosas (irracionais e crédulas por natureza, e incontestáveis para seus proponentes) e as visões cético-racionalistas (ponderadas e baseadas em fatos, e sempre sujeitas a revisões segundo seus defensores).
Concordaria que há diferenças. Mas questiono se são mesmo diametralmente opostos e mutuamente excludentes.
Sou um dos primeiros a condenar execuções baseadas em questões religiosas: p.e. dilapidação de adúlteras (raramente homens adúlteros sofrem o mesmo destino) por ferir leis divinas. "Selvageria, irracionalidade, primitivismo teocrático" são pensamentos que ecoam também em minha mente. Prender, castigar ou mesmo matar alguém porque autoridades religiosas dizem que é assim que se deve proceder. "Isso é errado aos olhos de deus", é assim e sem questionamentos.
Vejamos no entanto sob uma perspectiva comparativa mais sutil (sem com isso significar qualquer condescendência com o tipo de pensamento acima).
Os céticos-racionalistas concordam que os postulados científicos são contestáveis, estão sujeitos a mudanças (quando os fatos assim o exigirem). Isso é relativamente neutro quando se trata da descrição do funcionamento do mundo natural. "Ok, a Terra gira ao redor do Sol e não contrário. E mesmo isso poderá ser revisto se indícios novos apontarem o contrário." É uma visão liberal que tem a vantagem extra de não levar ninguém à fogueira por defender o oposto (embora críticos digam, não sem razão, que haverá a condenação à fogueira das vaidades daqueles que contrariarem o pensamento científico vigente).
Mas há um lado prático que influi de modo terrível sobre a vida das pessoas. Um exemplo fácil é a condenação de uma pessoa por, digamos homicídio, baseando-se em exames de ADN. Dizem que há uma certeza de 99,9% de que uma pessoa seja a origem de uma dada amostra de material genético. Porém essa "certeza" se baseiam na aceitação de certos postulados - por exemplo, na distribuição de certos polimorfismos na população. Não estou dizendo que o suspeito não deva ser condenado por isso (e, repito, que isso justifique a condenação por adultério de mulheres em países teocráticos). Apenas uma reflexão para que as diferenças envolvem um pouco mais de sutileza do que pontos obviamente mutuamente excludentes.
Temos "fé" suficiente em que os postulados científicos (e matemáticos) utilizados nas conclusões são firmes o bastante para justificar a condenação de pessoas (e, em certos países, mesmo à morte).
(Bom frisar também, seria grosseira simplificação - para não dizer erro - dizer que não há nenhuma oposição entre o pensamento religioso em geral e a abordagem cético-racionalista.)
domingo, 16 de maio de 2010
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