sábado, 29 de maio de 2010

She don't lie, she don't lie...

Atribuiu-se a seguinte frase ao ex-governador de São Paulo e (pré)candidato tucano à sucessão de Lula, José Serra: "É impossível a Bolívia exportar 60% ou 70% da sua cocaína para o Brasil sem que o governo lá faça corpo mole". Como já se atribuiram falsamente outras frases ao próprio Serra, não vou tomar por garantido que ele tenha mesmo dito isso. Mas analisarei a "lógica" por trás do argumento.

Não para em pé.

É perfeitamente possível (e não estou dizendo que o governo boliviano esteja de fato se empenhando) ter-se essa proporção (que não sei de onde foi tirada) mesmo com o governo local se empenhando fortemente. Digamos que na situação sem controle, na Bolívia produzam-se 120 toneladas de cocaína por ano - das quais 72 ton sejam enviadas ao Brasil. Na situação em que o governo faça controle, poderia, digamos, ter uma produção de 3 ton/ano e o Brasil recebendo 1,8 ton/ano, a proporção da produção exportada para cá seria exatamente a mesma nas duas situações.

Imagine, então, o governo americano dizendo: "É impossível a Colômbia exportar 60% ou 80% de sua cocaína para os EUA sem que o governo de lá faça corpo mole". (A produção de cocaína na Colômbia em 2008 foi de 430 ton, o consumo anual dos EUA é de 270 a 400 ton por ano, cerca de 90% da cocaína consumida pelos americanos é de origem colombiana.)

No twitter, @roneymau procura defender a correção do raciocínio de Serra (ou atribuído a ele) chamando a atenção para o peso do comércio da cocaína na economia boliviana. Mas isso não tem nada a ver com a argumentação original. Poderia até ser uma justificativa para se suspeitar de corpo mole por parte das autoridades bolivianas - mas não tem nenhuma ligação com a porcentagem de venda ao Brasil (ou a qualquer lugar).

Não consegui encontrar estimativas da produção real de cocaína na Bolívia. Há a produção *potencial* com base na produção das folhas de coca. Mas boa parte da produção é consumida como folha mesmo pela população local. Adultos indígenas consomem entre 50 e 100 g de folhas de coca por dia. A população boliviana é estimada em 9.947.418 habitantes (para 2010), a população acima dos 15 anos é de 64,9%; a composição étnica é de 30% de quéchucas, 25% de aimarás; 30% de mestiços e 15% de brancos. Considerando-se apenas indígenas adultos, seriam 3,5 milhões de pessoas. Se 50%* deles consumirem 50 gramas de folha de coca por dia, em um ano teríamos: 32.400 toneladas de folhas de coca consumidas por ano. A produção de em 2008 foi de 54.000 toneladas. Nessas condições, restariam 21.600 toneladas de folhas de coca. O que equivaleria a 45 a 175 ton/ano de cocaína (a depender do teor de cocaína na folha boliviana e da eficiência do processo de refino). (A Veja diz que apenas 17% da produção de coca é destinada para consumo em folhas, o restante vira cocaína. Mas não sei de onde tiraram esse número. Com um uso médio de 50 g/dia, isso significaria que apenas 5% da população boliviana mascariam coca regularmente.)

*Representante do governo boliviano diz que 62,2% da população total (não apenas entre os indígenas) faz uso regular das folhas. Uma reportagem de O Globo de 19/fev/2006 ("Entre 'coca zero' e 'cocaína zero', a encruzilhada boliviana" de Janaína Figueiredo), atribuindo os dados a "economistas locais" (nomes não foram especificados), dizia que toda a população rural (que correspondia a 30% da população total) e 50% da urbana faziam uso regular da folha de coca. 91,4% de estudantes de enfermagem de uma universidade boliviana fizeram uso de coca nos 12 meses anteriores à pesquisa. 75% dos homens e 15% das mulheres quéchuas campesinos da província de Yamparaez mastigam coca. O número que usei: correspondente a 27% da população boliviana com mais de 15 anos - tende a ser uma subestimativa de pessoas que usam coca regularmente. Em junho deste ano deve sair o resultado da pesquisa nacional sobre o consumo tradicional de coca.

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