quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

A Calculadora de Sonhos

As plantas secavam. A terra, ressequida, crepitava e rachava. Os olhos miravam a desolação da estiagem prolongada. A má administração pelas autoridades da água das barragens fizera sumir o precioso líquido. O gado definhava. Os pequenos roceiros de Crateús voltavam-se esperançosos para Jônatas Ribeiro. Ele sabia. Ele diria quando viria a chuva.

-------------------
Iara Ribeiro nasceu em uma família de profundas raízes na tradição dos "profetas da chuva". O avô de seu bisavô por parte de pai, assim lhe disseram certa vez, foi o primeiro a dominar a arte - ou de possuir o dom - de prever quando se iniciariam as primeiras precipitações no interior do sertão nordestino: algum lugar dentro da área de litígio de limite entre Piauí e Ceará.

Uma mistura de sensibilidade de leitura de sinais da natureza - presságios e agouros: a direção e a altura do voo de certas aves, a presença de certos insetos, a conformação da teia das aranhas, o odor do vento noroeste... amalgamados em uma matriz de intuição - sensitividade mediúnica, nas palavras de um estudioso que se meteu de agregado entre os Ribeiros. O parapsicólogo foi devidamente enxotado quando trouxe a hipótese de o patriarca ser um judeu sefardita cristão-novo, mas não antes de escrever um tratado sobre rabdomancia e outras técnicas divinatórias acerca da água.

Não há registros além da tradição oral familiar a respeito da taxa de sucesso da linhagem dos Ribeiros na previsão extracientífica das condições meteorológicas. Ela, por certo, diz que era "tiro e queda". O que era, de certo modo, sustentado pelas constantes consultas aos adivinhos da família, especialmente próximo à época do dia de São José. A vida de penúria, no entanto, poderia indicar o contrário - ou o fato de não quererem explorar comercialmente a habilidade (nem mesmo para saber quando plantar ou quando emigrar da terra). Entre indas e vindas, o avô de Iara, seu Jônatas, acabou de se tornar mais um retirante, vindo a São Paulo tentar a sorte.

Meteu-se a ajudante de pedreiro, a alfaiate, a ajudante de ordens... Houve pouco progresso material notado. O pai de Iara também pouco acrescentou ao patrimônio familiar. Na verdade, até retirou um pouco - sustentando seu gosto por jogo do bicho, álcool e, principalmente, uma amante. A dilapidação não se deu pela contribuição expressiva de mãe de Iara em tripla jornada como faxineira, costureira e dona de casa.

Os irmãos mais velhos foram um a um tomando seu destino - nem todos felizes, nem todos infelizes. Um jogador de futebol não exatamente frustrado, um sargento do exército, uma professora primária, um morto pela polícia, um advogado desquitado afundado em dívidas. Iara estava destinada a ser doutora, vaticinava o pai. "Ela vai ser a médica da família." Mas o talento ao tirocínio que não envolvesse índices pluviométricos provavelmente não se associara à família.

Ela metera na cabeça desde cedo que resgataria a tradição perdida há geração e meia. Seria a primeira profetiza da chuva em uma linhagem só de seres barbados. Espremia do avô o quanto podia as histórias e folclores a respeito dos prodígios divinatórios do bisavô - e algo do trisavô. "Foi uma seca dura, duríssima. Nem as lágrimas conseguiam escorrer pelo rosto; evaporavam-se tão logo saíam do canto dos olhos. A terra dura, não dava nem pra arar. Mesmo que arasse, nada poderia crescer ali. O que havia crescido, já estava tudo seco. Perguntaram pra mim quando iria chover. Não tinha coragem de dizer que não viria naquele ano. Que mais crianças morreriam de fome, na falta de leite, na falta de feijão, da falta de farinha, na falta de água. Não podia ver tanta gente desesperada vindo bater à minha porta como se eu tivesse poder de fazer vir a chuva. Fugi." Mas era difícil de separar o que eram lembranças legítimas da juventude, o quanto eram reconstruções mitificadas galhofeiras. A rápida progressão da debilidade da saúde mental do avô após os 70 anos pouco ajudou.

Domaria as nuvens em seus segredos. Esse era seu destino. Colecionava reportagens sobre profetas da chuva - marcara em seu diário a frustração por não ter encontrado nada que a ajudasse na biblioteca da escola, nem na do município; semanas depois seu júbilo pelo material encontrado na internet (anotada com desânimos posteriores ao não conseguir reproduzir o que era descrito); nem telefonemas a parentes no interior do Ceará a ajudara a aclarar as coisas (a bronca da mãe com o valor da conta telefônica tornara essa alternativa inviável).

Mas prosseguira. Elaborara um intrincado esquema em que procurava relacionar dois fatos aparentemente distintos e sem nenhuma ligação óbvia implicando em um resultado inesperado. Prendia na parede do quarto fotos e ilustrações sobre uma pessoa, objeto ou evento e conectava-os por meio de linhas de costura; queria entender os nós que se formavam naquela teia de aranha. Mas esse método - para alívio da mãe, já preocupada com o estado mental da filha - logo foi preterido ao simples desenho sobre cartolina quando uma imensa, grotesca e kafkiana barata emergiu certa noite por de trás de uma das fotos coladas à parte. (Nota: o Gregor Samsa paulistano, quem quer que fosse, não teve maior oportunidade de longas divagações existenciais, imediatamente esmigalhado que foi por um chinelo de borracha.)

Iara tornara-se muito boa em detectar padrões - ainda que, na maioria das vezes, falsos padrões ou que ainda não se descobriram como verdadeiramente verdadeiros. Surpreendia professores ao conectar fatos históricos como a Revolução Francesa e a Americana com a Inconfidência Mineira (relação bastante conhecida no meio dos historiadores, mas, por algum motivo, totalmente ignorado por seus professores de história e de geografia). Pontes similares eram construídas entre conceitos matemáticos: por um tempo, Iara cultivara o péssimo hábito de atormentar seus parentes, amigos e até o dono da padaria com jogos numéricos para adivinhar que macacos não viviam na Dinamarca (ou algo assim), que sua colega Tayanne pensara no número 12, que o aniversário do seu Juca era no dia de Santo Inácio...

Um dia seu professor de física Dulcídio Barrabraz contou a história de Gilbert Walker - do ponto de vista de Iara era menos a história de Walker do que de sua equipe na Índia, a processar um número gigantesco de dados sobre a atmosfera e os oceanos em inúmeros pontos do mundo - talvez o primeiro supercomputador humano do mundo. De repente, as linhas de algodão e traços de hidrográfica na cartolina agora eram as linhas no gráfico; os nós conectando as linhas eram números de índices de correlação. As possibilidades cintilavam na cabeça de Iara, que quase explodiu. Um novo mundo se lhe abria.

-------------------
As plantas secavam. A terra, ressequida, crepitava e rachava. Os olhos miravam a desolação da estiagem prolongada. A má administração pelas autoridades da água dos reservatórios fizera sumir o precioso líquido. Um fluido inodor e insípido saída das torneiras - mas a densidade era de um milésimo da que deveria ser: ar no lugar da água. Os vizinhos de bairro voltavam-se esperançosos para Iara Ribeiro - já formada em Meteorologia. Ela sabia. Ela diria quando viria a chuva.

Iara fugiu para a casa de uma tia-avó em Fortaleza.

=========
Esta é uma obra de coincidência, qualquer realidade com a semelhança é mera ficção.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Kátia Abreu, a lexicografista, redefine latifúndio

A Senadora Kátia Abreu, agora ministra da Agricultura, depois de redefinir ruralista, agora quer mudar o significado de latifúndio.

Em entrevista à jornalista da Folha de São Paulo, Mônica Bergamo, a ministra disse que no nosso Brasil varonil não há mais latifúndios.

Com a devida vênia, vamos ao que diz a lei 4.505/1964 (Estatuto de Terra):
Art. 4°
"V - 'Latifúndio', o imóvel rural que:
a) exceda a dimensão máxima fixada na forma do artigo 46, § 1°, alínea b, desta Lei, tendo-se em vista as condições ecológicas, sistemas agrícolas regionais e o fim a que se destine;

b) não excedendo o limite referido na alínea anterior, e tendo área igual ou superior à dimensão do módulo de propriedade rural, seja mantido inexplorado em relação às possibilidades físicas, econômicas e sociais do meio, com fins especulativos, ou seja deficiente ou inadequadamente explorado, de modo a vedar-lhe a inclusão no conceito de empresa rural."

Art. 46.  § 1°, alínea b
b) dos limites máximos permitidos de áreas dos imóveis rurais, os quais não excederão a seiscentas vezes o módulo médio da propriedade rural nem a seiscentas vezes a área média dos imóveis rurais, na respectiva zona;"

Pra não existir mais latifúndio no Brasil, *dois* fatos devem ser verdadeiros *ao mesmo tempo*:
1) No Brasil não há mais propriedades rurais com mais de 600 módulos médios nem 600 vezes a área média das propriedades rurais da região;
2) No Brasil não há mais propriedades improdutivas.

Entre 2003 e 2010, segundo levantamento do Incra, órgão responsável por avaliar a função social da terra, a improdutividade *aumentou*, bem como a concentração de propriedades rurais. Teria a tendência se revertido durante a primeira gestão da presidenta Dilma Rousseff? Ainda mais a ponto de eliminar as grandes propriedades rurais e/ou improdutivas? Em 2010, eram cerca de 130 mil grandes propriedades rurais com área média de cerca de 2.400 ha, destes, 40% eram classificados como improdutivos.

O tamanho do módulo varia de 5 a 110 ha. A média no Brasil é de 60 ha. Qualquer propriedade rural com 66.000 ha ou mais com certeza seria um latifúndio por extensão. Abaixo uma pequena amostra, nem de longe exaustiva de propriedades que podem ser consideradas latifúndios por extensão (não necessariamente por produtividade).

278 mil ha. Paracajá-PA.
252 mil ha. São Miguel do Araguaia-GO.
170 mil ha. Manicoré-AM.
170 mil ha. Casa Nova-BA.
150 mil ha. Belém-PA.
143 mil ha. Tarauacá-AC.
122 mil ha. Feijó-AC.
117 mil ha. Poconé-MT.
112 mil ha. Canto do Buriti-PI.
103 mil ha. Itiquira-MT.
100.532 ha. Cocalinho-MT.
101 mil ha. Itiquira-MT.
94 mil ha. Aripuana-MT.
85 mil ha. Bom Jesus-PI
72 mil ha. Abreulândia-TO.
66.658 ha. Regeneração-PI.

Ou seja, tanto tanto propriedades que são latifúndios por produção quanto há por extensão.

Então, para a nossa ministra dizer que não há mais latifúndio no país, ela precisaria redefinir pra algo como: "propriedade com mais de 8,5 milhões de km2 ou que produz menos de 100 milhões de toneladas de grãos por safra".

E o que tem potencial de dar mais problemas do que já há, o diagnóstico dos conflitos indígenas da senadora é: "os índios saíram da floresta e passaram a descer nas áreas de produção". Ela simplesmente inverte a realidade histórica e diz que são os índios que invadem as propriedades dos produtores rurais e não que produtores rurais (nem sempre de boa-fé; nem sempre de má-fé) apropriaram-se territórios indígenas tradicionais (a rigor, todo o Brasil é território indígena tradicional, mas diz a nossa Constituição em seu art. 231 "§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.".)