segunda-feira, 30 de abril de 2012

Space quota exceeded 9

Nogueira, Oracy. 2006. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, revista de sociologia da USP 19(1): 287-308.

preconceito racial: "disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece."
preconceito racial de marca: "[quando] se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque".
preconceito racial de origem: "quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as conseqüências do preconceito".

As diferenças entre os dois principais tipos (idealizados) de preconceitos raciais é esquematizada na Tabela 1. "[C]onvém repetir que se trata de dois conceitos ideais que indicam situações 'puras', abstratas, para as quais propendem as situações ou casos concretos, sem que se espere uma coincidência, ponto por ponto, de qualquer caso real com um ou outro dos tipos ideais. Mesmo as proposições que se vão apresentar deverão ser entendidas não num sentido absoluto, porém como indicativas de tendências e como hipóteses a serem aferidas, seja através de novas pesquisas de campo, seja através da reconsideração de dados já disponíveis." (p. 292)

Tabela 1. Quadro sinóptico das diferenças entre preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. Fonte: Nogueira 2006.


Isso explicita as diferenças das situações raciais entre o Brasil (onde predomina o preconceito de marca) e os EUA (onde predomina o de origem). Naturalmente, as medidas de combate ao preconceito racial haverá de levar em conta tal diferenciação.

domingo, 29 de abril de 2012

Space quota exceeded 8

Em uma decisão que me surpreendeu pela unanimidade, o STF considerou como constitucionais as chamadas cotas raciais para o ingresso ao ensino superior.

Superada a tecnicalidade legal, existem ainda considerações éticas e filosóficas que não devem ser descartadas, mas não me aterei a elas aqui. O foco principal serão alegações factuais.

Há uma variedade dentro desses mecanismos de cotas. A maioria estabelece a autodeclaração como critério para o estabelecimento de raça/cor/etnia; a UnB é sui generis ao inserir uma entrevista prévia com uma banca que pode homologar ou não a inscrição sob cotas raciais de cada candidato. Críticas se acirraram com o caso dos gêmeos univitelinos, no qual um dos irmãos foi aceito e outro não para concorrer dentro das cotas.

1) O caso dos gêmeos univitelinos mostram que o sistema de cotas raciais é imperfeito, logo promove injustiça.
Verdade que é um bom exemplo de imperfeição do sistema, mas até aí ninguém alegaria que o sistema de cotas em geral e da UnB em particular é perfeito. Todo sistema - de cotas para acesso à universidade, de detecção de vazamento radioativo, de medição de inflação, etc. - é imperfeito. A questão é se é suficientemente bom para os propósitos a que se destina e se é melhor do que sistemas alternativos com o mesmo propósito.

2) O sistema de autodeclaração é sujeita a fraudes de declaração e de entrevista prévia da UnB é altamente subjetiva.
Sim, a imperfeição passa também pela possibilidade de fraudes. Mas novamente, todo sistema é passível de fraudes. Então a questão é: o nível de fraudes é excessivamente alto? há alternativas melhores?
A subjetividade em si não é algo abominável. E nem é necessariamente pior do que critérios alternativos tidos por objetivos. Há inúmeros casos em que a subjetividade é usada em sistemas práticos - como degustação de produtos: um painel de consumidores ou especialistas avaliam subjetivamente a qualidade - e isso pode ser convertido em valores numéricos (como notas de 0 a 10), médias permitem avaliações consistentes entre diferentes grupos de avaliadores; avaliação do comportamento de alunos; avaliação de governos; e eleições são basicamente avaliações subjetivas por parte dos eleitores das candidaturas e chapas apresentadas convertidas em números (quantidade de votos; quociente eleitoral...).

3) Critério de renda é mais objetivo do que critério de cor/raça/etnia; cor varia continuamente e não há onde colocar objetivamente o limite.
A renda também varia continuamente. Mesmo com o estabelecimento de um valor de renda mínima - de modo mais ou menos arbitrário -, como o valor é autodeclarado, é tão subjetivo quanto um sistema de autodeclaração. E até mais do que um sistema de cotas raciais como o da UnB - raça não é algo sobre o qual se possa mentir tão facilmente. (P.e., 45% dos juízes paulistas omitem renda e bens em suas declarações a órgãos de controle. Em 2011, de cerca de 24 milhões de declarações, 385 mil contribuintes - cerca de 1,6% - foram intimados por indícios de fraude.)

No caso de cor, há uma boa consistência na identificação de algumas personalidades: Zeca Pagodinho - para 84% dos entrevistados ele é negro (52%, pardo; 32%, preto); Romário - 82% (51%, pardo; 31%, preto); Ronaldo - 64% pardo ou preto, contra 16% que o consideram branco; Camila Pitanga - 63% (36%, pardo; 27%, preta); FHC - 18% (17% pardo; 1% preto) contra 70%.

Atente-se também para o fato da exposição à discriminação racial estar bastante ligada ao grau de melanização da pele (e atributos tidos por tipicamente negros - cabelo encaracolado, nariz chato e largo, lábios carnudos e outros). Declaram que já se sentiram discriminados em função da cor: 7% dos brancos; 12% dos pardos e 30% dos pretos; a renda também cai de acordo com a tonalidade mais escura: em 2010, a renda média mensal era de R$ 1.538 para brancos; R$ 845 para pardos e R$ 834 para pretos.

Assim, o "olhômetro" discrimina mais claramente (com e sem trocadilhos) os mais pretos (isto é, com o fenótipo mais negroide). É isso que explica a situação dos gêmeos da UnB - uma mesma pessoa pode ser considerada preta, parda ou branca a depender da situação e há uma probabilidade maior ou menor disso ocorrer de acordo com o grau de seu fenótipo. Alguém como Camila Pitanga teria aproximadamente 50% de chances de ser considerada negra. Isso significa que, no geral, ela estará menos exposta à discriminação do que alguém com um fenótipo que leva a 80% das pessoas o considerarem negro. Assim, em uma classificação binária do tipo: entra ou não entra nas cotas raciais, esse grau de exposição à discriminação se reflete na probabilidade de ser ou não admitido no sistema de cotas - o limite não é necessário.

4) O critério de renda teria efeito sobre a discriminação por cor/raça.
É possível que tenha algum. Mas não contemplaria exatamente o efeito da discriminação por cor: se o fator cor não é eliminado, a tendência é favorecer mais os brancos pobres do que negros pobres.

5) Cotas raciais diminuem a qualidade.
tratado anteriormente neste blogue. Não há nenhum indicativo de que isso ocorra no caso brasileiro - há situações que têm desempenho inferior, superior ou igual; de modo geral, o desempenho é similar.

6) Cotas raciais animamacirram os ânimos contra os beneficiários.
Já tratado anteriormente neste blogue. (Estranho que isso seja um fator levantado contra as cotas raciais por quem defende cotas sociais - por que não seria problema no segundo caso?)

"A second unintended consequence of affirmative action, according to critics, is that it functions as a form of reverse discrimination and thus increases intergroup tension (Lynch 1992). When striking down race-sensitive admissions policies at the University of Texas Law School, the Fifth Circuit Appellate Court reasoned that any categorization by ethnic or racial groups was likely to elicit animosity against the group granted preferential treatment by other ethnic groups (including whites). Indeed, one laboratory study has shown that the mere mention of affirmative action is enough to increase students’ intolerance against out-group members (Maio & Esses 1998).
Although poorly conceived diversity programs may create resentment and may enlarge antiminority bias, it seems that white students who have the opportunity to interact with the beneficiaries of affirmative action tend to appreciate the contact and tend not to devalue diversity efforts (Bowen & Bok 1998; Lempert et al. 2000a,b). White people who work for affirmative action employers also seem to value race-based remedies for discrimination (Taylor 1995). Evaluations of employers, and specifically of the fairness of employment practices, are highest among whites who work for diversity-promoting firms (Parker et al. 1997)."
Crosby et al. 2006. Understanding affirmative action. Annu. Rev. Psychol. 57: 585-611.

Da discussão no twitter que levou a esta postagem, uma denúncia de grande gravidade que o Ministério Público precisa investigar: "Uma professora amiga minha da UnB disse ter sido pressionada para dar notas maiores a cotistas."

terça-feira, 17 de abril de 2012

Preguiça cética

Ser um cético - no sentido de ser alguém que tenha uma visão baseada na dúvida sistemática das alegações apresentadas (geralmente vinculada a um racionalismo - valorização e uso de processos racionais de análise, em particular das ciências), isto é, um adepto do ceticismo científico - é algo que demanda trabalho.

De um lado, exige bastante cultura: é preciso aprender as bases da lógica (pelo menos a aristotélica), da epistemologia (o que fundamenta o conhecimento científico, como sabemos o que sabemos), de psicologia (quais são os vieses cognitivos que nos afetam?), ter um razoável domínio do conhecimento científico (uma boa noção da cosmologia, física, química, biologia), um bom conhecimento a respeito das pseudociências (quais são as alegações principais e por que estão furadas), uma boa pincelada a respeito da história das religiões... E são conhecimentos que precisam ser constantemente atualizados - não apenas o conhecimento científico muda, como novas formas de pseudociências surgem a todo momento. Fácil, fácil daria para montar um curso de graduação.

De outro, mesmo se você não for um ativista cético, vai se meter em intermináveis discussões: afinal, ser cético é ser minoria e muitos dos partidários de visões contrárias são bastante empenhados na evangelização e catequisação, isto é, as oportunidades de confrontação são inúmeras.É muita energia mental investida (ou desperdiçada) e eventuais ameaças físicas não estão fora de cogitação. Se você for um cético low profile, ainda assim vai gastar energias *evitando* debates.

Em mais um lado (quem disse que há apenas dois lados sempre?), ocorre que ser cético não importa um pacote completo. Há uma série de outros elementos de visões de mundo que não vêm junto com a cultura cética: visões políticas, por exemplo. E isso, bem, isso vai potencializar estranhamentos *entre* os céticos.

Vida dura. Mas há grupos - que de resto não formam necessariamente um conjunto homogêneo - que acabam de certo modo adotando uma postura automática de ceticismo. Deixe-me pôr isso em uma forma de (pseudo)paradoxo: apesar da cultura cética exigir esforço mental, alguns céticos usam o ceticismo como uma espécie de muleta intelectual.

Algumas alegações são rapidamente dispensadas como bobagens sem fundamento apenas porque o cético consegue pensar em uma contra-argumentação razoável. Ok, como primeira abordagem não é má - há muitas bobagens por aí, e se não resistem a um primeiro exame superficial, não precisamos insistir muito. Ocorre que essa atitude, em não poucos casos, persiste mesmo quando uma contra-contra-argumentação igualmente razoável é apresentada. A coisa piora quando *dados* são apresentados em apoio à visão com que o cético não concorda. Todo o mecanismo do ceticismo de filtro de bobagens é colocado no modo superpowernitro e o cético passa a racionalizar meios para interpretar os dados de modo que mais bem se encaixem em sua visão de mundo. Mais e mais dados são apresentados de modo a refutar os argumentos do cético. Mas o cético não se convence. E pior, ele não irá apresentar novos dados que estejam de acordo com seu ponto de vista, e sim, no máximo, novas interpretações - tal cético poderá até mudar de opinião em relação ao seu ponto inicial, no entanto sem convergir com a visão que pretende combater de todo modo.

Ele terá criado um pequeno dragão invisível em sua garagem. Mas como foi um dragão geneticamente engenheirado a partir de um lagarto monitor de Komodo e usando um manto de invisibilidade com tecnologia de fibra óptica - qual seja, dentro das possibilidades do que ele conhece a respeito de ciências - tal dragão não lhe parecerá um anátema.

Essa descrição serve (parcialmente) para os autodenominados céticos climáticos (apenas parcialmente porque nem todos realmente adotam a cultura cética, sendo mais bem descritos como negacionistas climáticos), mas não apenas a eles. Enfrentei uma situação dessas certa vez quando, em uma lista de ceticismo e racionalismo, na defesa de cotas raciais usei as diferenças de rendimento entre negros e brancos como indício da discriminação racial. Uma série de argumentos muito similares a que abordei neste blogue sobre os rendimentos das mulheres foram levantados. A cada fator novo que levantavam (região, escolaridade, tipo de emprego...), eu mostrava uma pesquisa que mostrava a persistência de diferenças. Sinceramente não sei se convenci alguém. O argumento final que usaram é que sempre se pode pensar em um fator não levado em consideração antes. Isso é rigorosamente verdadeiro. Mas, ironia, defensores da visão popperiana que eram, queriam uma espécie de prova absoluta da existência de discriminação racial no Brasil. Não enxergavam que cada fator derrubado era um teste de hipótese, qual seja, de que há discriminação racial no que se refere à renda, que a corroborava. Conseguiam usar Popper para atacar bobagens como astromancia, homeopatia e quejandos; mas falhavam em aplicá-lo em suas próprias hipóteses. Alguns estiveram por bem pouco de insinuar que a persistência das diferenças significava uma inferioridade intelectual/biológica dos negros. (Não devo ser injusto em sugerir que todos da referida lista tinham esse posicionamento impermeável a dados contrários. Não obstante, dentre os que se manifestaram 'céticos' à hipótese desde o início, não me lembro de nenhum ter mudado de posição. Os que admitiam a ocorrência de discriminação o fizeram de cara.)

Já que construí o argumento na forma de um paradoxo, deixe-me também encaixar um segundo paradoxo: tais céticos terão gastado muito mais energia em defesa de sua preguiça inicial.

Não sei se é apropriado chamar essa subcultura de hiperceticismo ou ultraceticismo - em analogia à hipercorreção ou ultracorreção.

Evolução da diferença salarial por gênero no Brasil

Aparentemente há alguns mitos a respeito da diferença salarial e de rendimentos que ainda persistem. Procurarei rebatê-los com dados disponíveis (compilei-os aqui com as referências).

A Figura 1 apresenta a evolução do rendimento médio da mulher (em fração do rendimento médio masculino) segundo dados do IBGE.

Figura 1. Evolução da diferença salarial nas regiões brasileiras.

O primeiro mito que podemos derrubar é que as diferenças sejam maiores em regiões economicamente menos desenvolvidas. Bem ao contrário: as maiores defasagens ocorrem no Sudeste e no Sul.

O segundo mito é o que diz que nada precisa ser feito já que a diferença vem caindo. As mulheres terão o mesmo rendimento médio dos homens, no ritmo atual, apenas no ano 2054. Ver também a Figura 2.

O terceiro mito diz respeito a que as diferenças de salários se devem ao fato de as mulheres estarem em ocupações de menor rendimento. Vide a Figura 2. Para o mesmo cargo, mulheres recebem menos e cada vez menos.

Figura 2. Evolução da diferença salarial por cargo.

O quarto mito diz que as mulheres recebem menos por trabalharem menos do que os homens. É verdade que a média de horas trabalhadas é inferior, mas tem sido de apenas 10% menos; a renda corrigida por hora de trabalho é inferior. (Apenas no setor da construção as mulheres recebem mais - e substancialmente mais - do que os homens, isso pelo fato de a maioria dos cargos que as mulheres ocupam serem de níveis maiores: há poucas mulheres pedreiras.) Vide Figura 3.

Figura 3. Evolução da diferença salarial e de horas trabalhadas por setor da economia.

O quinto mito diz que as mulheres recebem menos por terem uma qualificação menor do que os homens. Não é verdade, não apenas as mulheres têm um nível médio de instrução maior, como a diferença aumenta com a escolaridade da mulher. E a situação tem piorado para as mulheres com maior instrução. (Vide Figura 4.)*

Figura 4. Evolução da diferença salarial por anos de estudo. Fonte: Mulher no Mercado de Trabalho - Perguntas e Respostas.

Há um pequeno enigma: quando vemos a situação para uma mesma ocupação e para uma mesma escolaridade, as mulheres têm recebido cada vez menos do que os homens; porém, se olhamos para a situação geral, a diferença tem diminuído - ainda que a passos de tartaruga paralítica. Que se pasa?***

Uma possível resposta é que as mulheres têm conseguido ocupações mais bem remuneradas e de nível mais alto do que a média dos homens - embora em desvantagem em relação aos pares, no cômputo geral, isso estaria levando à diminuição da defasagem.**

Para piorar a situação, quando vemos as oportunidades de promoçãoascenção na carreira também observamos uma discriminação por gênero: mulheres têm menos chances de obterem promoção nas grandes indústrias brasileiras.

Certamente, levantarão outras objeções como a priorização à família pelas mulheres. Mas a diferença de rendimentos associada ao gênero persiste mesmo quando decompomos os fatores. E cada fator, na verdade, é um fator que *compõe* a discriminação de gênero e não uma explicação alternativa: se as mulheres recebem menos por ocuparem cargos inferiores, a discriminação está justamente na vedação do acesso às mulheres a cargos superiores como a presidência e vice-presidência de grande empresas; se as mulheres recebem menos por se dedicarem mais aos filhos, a discriminação está justamente em não se oferecem condições às mulheres, como creches, para cuidarem dos filhos.

*Upideite(18/abr/2012): Para as escolaridades a partir de 8 anos, há uma tendência de diminuição da diferença. Tendência mais clara para o grupo com 11 anos ou mais de estudos (o que inclui o grupo com nível superior).
**Upideite(18/abr/2012): Um exemplo numérico (hipotético) de como isso pode ocorrer.
No ano 2000, deste exemplo, o rendimento médio da mulher era de 90% da dos homens tanto no cargo A quanto no cargo B; e a média geral era de 90%. No ano 2010, o rendimento médio da mulher caiu em comparação ao dos homens: 76% no cargo A e 87% no cargo B. Mas a média geral subiu para 92%. Isso ocorreu porque, no nosso exemplo, a fração de mulheres ocupando o cargo B (de maior renda) aumentou.

***Upideite(09/abr/2014): Descobri agora que o fenômeno de desaparecimento ou reversão da tendência obtida em diferentes grupos quando seus dados são combinados tem nome - paradoxo de Simpson.

domingo, 15 de abril de 2012

Cantadas, galanteios e outras questões feministas

Como uma pessoa recebe uma cantada é um ato pessoal: pode achar um galanteio, pode ser indiferente a ela, pode considerar um aborrecimento menor ou ter uma forte opinião contrária - mesmo a cantadas das mais leves como "e aí, gatinha/o". Não me cabe julgar isso, só respeitar os sentimentos de cada um/a.

Porém, chamou-me a atenção um trecho do texto publicado no Blogueiras Feministas:
"Ao contrário do que muitos homens gostam de dizer por aí, a maioria de nós, mulheres, não se sente prestigiada ou enaltecida ao ser assediada na rua por um sujeito que ela não conhece e, tampouco, tem a intenção de conhecer."

Claro, depende um pouco do significado de assédio - no texto, a autora discute casos grotescos de tocar nas partes íntimas sem permissão, mas também diz que: "um dos medos constante na mente de qualquer mulher é o abuso sexual, que pode começar com uma aparentemente inofensiva 'cantada'" (grifo meu).

Tocar partes íntimas é considerado ato libidinoso e pode ser tipificado como estupro se envolver ameaça (art. 213 do Código Penal) ou violência sexual mediante fraude se envolver modo que dificulte a livre manifestação da vontade da vítima (art. 215) ou assédio sexual se se valer da condição de superior hierárquico (art. 216-A) ou, pelo menos, como ato obsceno (art. 233). Há que se avançar na legislação: por exemplo, não prevê casos que não envolvam ameaça (incluindo demissão) ou fraude realizados em locais não públicos - como no recesso do lar.

Mas, voltemos às cantadas inofensivas. Mesmo estas, se a pessoa não gosta, não devem ser proferidas. Não é este, no entanto, o ponto que discuto. É a afirmação de que a maioria das mulheres não recebem a cantada como elogio. Tecnicamente é verdade, mas não quer dizer que a maioria se sinta ofendida. Pesquisa realizada a pedido da Fundação Perseu Abramo* (do PT) em 2001, mostra que, se 32% das mulheres consideram as cantadas como desrespeitosas, 27% as recebem como elogio; 8% dizem que depende da cantada, 6% são indiferentes e 27% declaram que nunca foram cantadas.

Vendo unicamente pelo lado da reação das receptoras, a questão é um pouco mais matizada. O argumento não é exatamente: "não cante as mulheres porque elas consideram grosseiro", mas, sim: "Assumindo que a sensação de desrespeito tenha o mesmo peso da sensação de elogio e assumindo a probabilidade de que uma cantada tenha 50% de chances de ser do tipo grosseira; tomando-se uma mulher ao acaso da população, há uma chance de (32%+4%)/(100%-27%) = 49,31% de ser desagradável, uma chance de (27%+4%)/(100%-27%) = 42,46% de ser agradável e 8,22% de ser recebido com indiferença; portanto a expectativa de ganho é negativa, ainda que por pouco (-49,31% + 42,46% + 0 x 8,22% = -0,0685); então, a menos que você seja um galanteador muito bom, quando a expectativa de ganho é positiva (+0,0411 se 100% das suas cantadas forem positivas), o melhor é ficar quieto."

Esse raciocínio, no entanto, não vai funcionar bem se levarmos em conta o ganho por parte de quem faz a cantada. Se para o sujeito, ele ganha sempre que cantar alguma mulher, independente da resposta que provocar (um sorriso ou xingamento), a cantada vai ocorrer sempre. Porém, o argumento acima é para sensibilizar parte dos homens susceptível a esse tipo de argumento.

A coisa se complica mais se levarmos em conta o chamado sexismo benevolente. Provavelmente boa parte das cantadas e galanteios poderão ser vistas como reforço da imagem socialmente construída da mulher, qual seja, a de um ser incompletamente independente (é delicada, precisa ser protegida, ser tutelada). Mesmo para um homem mais esclarecido na questão (não é bem o meu caso, tenho que confessar), é um problema que vai entrar em sutilezas ainda maiores. Estudos mostram que as mulheres precisam ser treinadas para detectar casos de sexismo benevolente e nós, homens, mesmo quando enxergamos tais situações, recusamo-nos a ver como algo negativo.

Digamos que se trate de um homem razoavelmente esclarecido diante de uma mulher não treinada (a situação é improvável somente pela parte do homem razoavelmente esclarecido - no entanto, faz sentido somente nesse caso), como ele deve se portar? Respeitar a decisão da mulher como um agente independente ou tutelá-la treinando-a?

Bom esclarecer que ao expor tal situação, não estou tentando caricaturizar o feminismo; considero, porém, a questão bem posta: o que fazer?

Como disse no começo, meu posicionamento é de respeitar a decisão da pessoa. Se ela recebe uma cantada como ofensa pessoal, não passarei uma cantada; se ela recebe bem, não vejo problema algum (mesmo sob o mencionado risco do sexismo). Mas como saber se a garota recebe bem ou mal um galanteio? Se se trata de uma completa desconhecida, pra mim, vale o quadro discutido para uma cantada no meio da rua: de modo geral, é bom evitar (até porque, infelizmente, não me encaixo na categoria dos que dão cantadas certeiras). No entanto, se se conhece a pessoa, pode haver informação suficiente para que a expectativa de ganho seja positiva (para a mulher).

Mas e o fator do sexismo benevolente? A solução que vejo é deixar isso a cargo das mulheres. Que haja conversa e debate entre elas, feministas ou não, e elas decidam por si o que vale e o que não vale. Não no sentido de que um grupo dite para os homens como eles devem agir com todas as mulheres, mas que cada mulher, devidamente informada pelo debate, tenha clareza sobre o modo como deseja ser tratada e os homens respeitem as decisões individuais.

As feministas têm uma outra frente de trabalho também: fazer as próprias mulheres compreenderem o feminismo. Também segundo a pesquisa encomendada pela FPA, somente 45% das mulheres identificam o feminismo com a luta pela igualdade de diretos, 22% acham que se trata da superioridade feminina ou ser briguenta, 16% que é ser feminina (ser vaidosa, cuidar da casa), 23% nunca ouviram falar ou não sabem (a soma final é maior do que 100% - suponho que mais de uma opção poderia ser mencionada).

Disclêimer: O aviso de praxe - sou machista, mas não me orgulho disso.

*Upideite(11/set/2013): O link está quebrado. O atual é este.
*Upideite(8/mai/2014): Um estudo científico sobre o tema. (via @carlosom71)

sábado, 14 de abril de 2012

Um pouco mais sobre anencefalia

A Folha Online publicou o comentário de uma leitora - médica geneticista que terminou o mestrado em 2008 no Instituto Fernandes Figueira - contrária à decisão do STF (ainda que de modo tácito apenas).

Basicamente podemos resumir em dois pontos: a) suplementação da dieta da gestante com ácido fólico (vitamina B9) e b) abertura de precedente para a permissão de interrupção de gravidez em outros casos.

A suplementação com ácido fólico, como a própria autora do comentário diz, reduz o risco de ocorrência de malformação congênita do feto em caso de gestantes com tendências genéticas de 25% para 3% - índice para a população em geral. Bem, se há um risco de 25% para certos grupos, porque na população em geral o risco é de somente 3%? Resposta: porque o tamanho desses grupos com alto risco é pequeno.Ou seja a observação da médica: "Vê-se aí que o mais importante sobre a anencefalia não está sendo comentado, ficando toda a discussão sobre a questão do aborto." não tem sentido estatístico - 3% da população em geral é muito, mas muito, mas muito maior do que os 25% dos casos específicos - não tem então como ser "o mais importante".

De todo modo, mesmo com a suplementação o risco não desaparece. E nem é tão baixo: 3% das gravidezes com algum tipo de malformação (nem todos de anencefalia). No Brasil, são 3 milhões de partos por ano, mais ou menos. Isso corresponde a 90 mil casos de má-formação congênita por ano - com ou sem suplementação de ácido fólico. (Atenção: bom dizer que uma campanha de esclarecimento e de fornecimento de suplementos é importante e tem seu valor, mas nem de longe irá acabar com o drama de gestação de fetos anencéfalos.)

O segundo ponto: "Além disso, a descriminalização de aborto dos anencéfalos abre precedente para o aborto de outras malformações fetais letais, podendo estender-se para aquelas condições com letalidade aumentada (como a síndrome de Edwards e a síndrome de Patau). É uma postura delicada que beira a eugenia." Esse tipo de raciocínio tortuoso é tão comum que tem até um nome especial: "falácia do declive escorregadio". Fácil ver que se isso valesse, valeria o inverso: "Impede-se a mulher de interromper a gestação de feto inviável e se abre um precedente para impedir o aborto em qualquer circunstância - mesmo sob o risco da mulher morrer."

quinta-feira, 12 de abril de 2012

STF: votações em alguns julgamentos históricos

Compilei na tabela abaixo como foram as votações em alguns julgamentos no STF que receberam ampla cobertura midiática. Quando encontrei informação relacionada, coloquei também a opinião pública na época (ou a mais recente disponível então) a respeito do tema em julgamento.
Dá para ver alguns padrões, se o ministro tem mais pendores liberais ou conservadores, por exemplo.

Vamos ver como será o resultado sobre as cotas raciais em universidades.

Upideite(29/abr/2012): Pra mim foi positivamente surpreendente que a unanimidade dos juízes tenha considerado as cotas raciais como constitucionais.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Am I loosing loosing my mind?*


O STF começou hoje o julgamento da ação a respeito do aborto de fetos anencefálicos.

Realmente não consigo alcançar as razões dos que se postam contra a permissão da interrupção da gravidez nos casos em que seja constatada a ausência do encéfalo nos fetos.

Cerca de 2/3 dos fetos anencefálicos não chegam ao fim da gravidez. A maioria dos que nascem, morrem clinicamente (têm parada cárdio-respiratória irreversível) em menos de 1 hora - quase nenhum chega a mais de uma semana. O caso de maior destaque de sobrevida foi brasileiro - o bebê diagnosticado como anencefálico teve morte clínica após 1 ano e 8 meses do parto - e provavelmente não se tratava de um anencefálico propriamente dito. Mas vamos supor que haja vida humana antes da morte clínica; então não é a presença de um cérebro funcional que define a vida. Onde ela estará, então? No corpo todo, menos no cérebro? Digamos que sim, então amputar um braço ou uma perna pra salvar o corpo é abominável? Bem, acho que ninguém se obstaria a essa amputação. Portanto, nos membros não está a vida humana. No tronco? Alguém acha que receber o fígado, os pulmões, os rins, o coração, etc. de alguém faz com que o receptor passe a ser a pessoa do doador? Não. E mais. Se não está no cérebro, poderíamos muito bem tratar os casos de "transtorno de identidade de integridade corporal" simplesmente removendo o encéfalo do paciente - salvaríamos o corpo e, portanto, a vida humana. Parece absurdo? Espero que sim.

A única que me pareceu razoável é a de que haveria riscos de falsos positivos, levando à interrupção de fetos viáveis por engano. Porém, no que consegui levantar na literatura científica disponível, nos casos de diagnóstico por ultrassonografia, a possibilidade de falso positivo é virtualmente nula. Nenhum caso em 171 (não, não há nenhum estelionato envolvido) 251 diagnósticos positivos para a anencefalia se mostrou equivocado. Então, se feito o exame por profissionais competentes de modo adequado, o risco é quase que incomparavelmente menor do que o risco que se impõe à mãe de fazê-la levar a gestação a termo.

Se o casal, em particular a mãe, após receber o diagnóstico de anencefalia do feto, quiser levar a gestação a termo, tudo bem. Mas deveria ser também tudo bem se quisesse interromper a gravidez que não gerará um rebento viável. Para muitas pessoas seria um tormento a mais, por que obrigá-las a sofrer sem necessidade?

*Versos da canção "Loosing my mind", escrita por Stephen Sondheim e interpretada por vários artistas, entre os quais Liza Minnelli

terça-feira, 3 de abril de 2012

Homeopatia na SciAm Brasil

A Scientific American Brasil, veículo da Duetto Editorial (sob licença da Scientific American Inc.), publicou um texto sobre homeopatia sob o título "Eficiência Questionada da Homeopatia".

O texto no entanto não questiona a homeopatia, antes, a defende. Ou tenta defender. Ataca, com certa correção, o abuso de agrotóxicos nos sistemas de produção vegetal, mas em que isso mostra a eficácia da homeopatia no combate a pragas agrícolas é algo difícil de se atinar.

A passagem mais constrangedora é: "a homeopatia não se relaciona com a química, mas com a física quântica, pois trabalha com energia, não com elementos químicos que podem ser qualificados e quantificados."

Primeiro: homeopatia trabalha com compostos químicos - todas as tinturas e diluições são produzidas e identificadas de acordo com os compostos e misturas correspondentes ao princípio ativo - p.e. arsenicum album, que é produzido por diluições sucessiva de trióxido de arsênio e em condições bem quantificadas - tanto é que se usam denominações de diluição como 12X (a tintura original é diluída 12 vezes tomando-se uma parte em dez a cada vez). Portanto qualificados e quantificados.

Segundo: a física quântica também lida com compostos químicos, por exemplo, a hibridação dos orbitais de carbono que formam ligações duplas.

Terceiro: energia é um conceito que não diz respeito somente à física quântica; a própria química lida com energia - como a entalpia.

Quarto: Não importa se a homeopatia lida ou não com compostos que podem ser qualificados ou quantificados. Importa se ela tem ou não efeitos curativos sobre sistemas. A literatura científica indica bastante claramente que *não* tem efeito - tirante eventual efeito placebo.

Quinto: Não há nada na física quântica que apoie a homeopatia e seus princípios da cura pelos semelhantes e potencialização por ultradiluição.*

Em suma, um texto mal escrito que não traz nenhum resultado indicativo de que a homeopatia tenha algum eficácia. Isso causou um pequeno burburinho no twitter: aqui, aqui, aqui.

Em defesa, a SciAm Brasil publicou o tweet: "Sobre a nota de homeopatia (abril): refere-se a um curso sério da UFV, com apoio do CNPq e envolvimento da Unesco/Fundação Banco do Brasil".

Mas:
a) Não é uma nota, é um texto apologético;
b) O curso da UFV é só citado, não é o objeto principal do texto;
c) O critério de seriedade é discutível - apenas ter a marca do CNPq, Unesco e Fundação Banco do Brasil(?) não indica que haja validade nas técnicas;
d) O curso (de extensão) não é apenas sobre homeopatia, mas inclui também plantas medicinais e produção orgânica.*

O caso foi parar no blogue Science-Based Medicine (SBM). E, entre os comentários, o da editora-chefe da SciAm americana: Mariette DiChristina. Uma crítica bastante contundente à publicação pela versão brazuca:
"mdichristinaon 03 Apr 2012 at 1:55 pm
I’m grateful to Tim Farley for letting me know about this post so that I can clear up matters.
Scientific American does _not_ condone the pseudoscience of homeopathy.Duetto, the company that licenses the right to produce Scientific American in Brazil, is an independent entity; it purchases the right to translate Scientific American’s articles and also to add local stories. I have inquired about this item, and have been told included this article was included because the work is 'has support of Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) the main brazilian agency for scientific research.' I do not yet know what that 'support' entails–whether it is funded by that agency or whether it means something else.In any case, this piece clearly should not have been published. I have brought this problem to the attention of both the editor of the Brazilian edition and the head of the Scientific American business, who manages relationships with licensees.Needless to say, I deeply regret the appearance of this fatally flawed article, which would never have been published if Scientific American had been consulted beforehand.I am easy to find on Twitter (at mdichristina) and e-mail (mdichristina at sciam.com) if you have future questions about Scientific American.(via @luizbento)


A motivação que vejo percebo na publicação do texto é a visão do editor-chefe da SciAmBrasil. Ulisses Capozzoli tem uma ideia de ciências menos hard do que o usual dos cientófilos mais ativos. Não é uma opção ruim em si. Isso permite um pensamento menos bitolado - como aquela oposição chata a respeito das duas culturas e a visão tacanha de que as ciências humanas não são ciências de verdade. Mas traz esse perigo de incluir no círculo científico bobagens do tipo homeopatia, ufologia, astromancia e outras pseudociências.

Coisa similar - e agravada pela visão de curto prazo de pura vendagem - corroeu completamente a respeitabilidade da Superinteressante.


Disclêimer: Conheço Capozzoli pessoalmente e respeito seu trabalho. Não falei com ele sobre o tema.

*Upideite(04/abr/2012): Adido a esta data.
Upideite(04/abr/2012): Manterei listagem de outros blogues e páginas que também falam sobre isso
O Lado Oculto da Lua (reproduzido também no Bule Voador)
Via Gene
O Telhado de Vidro, sobre a resposta de Capozzoli.
Ceticismo.net
Chi vó, non pó
Cultura Científica
DNA Cético
Carlos Orsi
Desafio 10:23 (reproduz o publicado no SBM)
Upideite(05/abr/2012): Ulisses Capozzoli reconhece o erro da publicação do texto. (via @samir_elian)