Superada a tecnicalidade legal, existem ainda considerações éticas e filosóficas que não devem ser descartadas, mas não me aterei a elas aqui. O foco principal serão alegações factuais.
Há uma variedade dentro desses mecanismos de cotas. A maioria estabelece a autodeclaração como critério para o estabelecimento de raça/cor/etnia; a UnB é sui generis ao inserir uma entrevista prévia com uma banca que pode homologar ou não a inscrição sob cotas raciais de cada candidato. Críticas se acirraram com o caso dos gêmeos univitelinos, no qual um dos irmãos foi aceito e outro não para concorrer dentro das cotas.
1) O caso dos gêmeos univitelinos mostram que o sistema de cotas raciais é imperfeito, logo promove injustiça.
Verdade que é um bom exemplo de imperfeição do sistema, mas até aí ninguém alegaria que o sistema de cotas em geral e da UnB em particular é perfeito. Todo sistema - de cotas para acesso à universidade, de detecção de vazamento radioativo, de medição de inflação, etc. - é imperfeito. A questão é se é suficientemente bom para os propósitos a que se destina e se é melhor do que sistemas alternativos com o mesmo propósito.
2) O sistema de autodeclaração é sujeita a fraudes de declaração e de entrevista prévia da UnB é altamente subjetiva.
Sim, a imperfeição passa também pela possibilidade de fraudes. Mas novamente, todo sistema é passível de fraudes. Então a questão é: o nível de fraudes é excessivamente alto? há alternativas melhores?
A subjetividade em si não é algo abominável. E nem é necessariamente pior do que critérios alternativos tidos por objetivos. Há inúmeros casos em que a subjetividade é usada em sistemas práticos - como degustação de produtos: um painel de consumidores ou especialistas avaliam subjetivamente a qualidade - e isso pode ser convertido em valores numéricos (como notas de 0 a 10), médias permitem avaliações consistentes entre diferentes grupos de avaliadores; avaliação do comportamento de alunos; avaliação de governos; e eleições são basicamente avaliações subjetivas por parte dos eleitores das candidaturas e chapas apresentadas convertidas em números (quantidade de votos; quociente eleitoral...).
3) Critério de renda é mais objetivo do que critério de cor/raça/etnia; cor varia continuamente e não há onde colocar objetivamente o limite.
A renda também varia continuamente. Mesmo com o estabelecimento de um valor de renda mínima - de modo mais ou menos arbitrário -, como o valor é autodeclarado, é tão subjetivo quanto um sistema de autodeclaração. E até mais do que um sistema de cotas raciais como o da UnB - raça não é algo sobre o qual se possa mentir tão facilmente. (P.e., 45% dos juízes paulistas omitem renda e bens em suas declarações a órgãos de controle. Em 2011, de cerca de 24 milhões de declarações, 385 mil contribuintes - cerca de 1,6% - foram intimados por indícios de fraude.)
No caso de cor, há uma boa consistência na identificação de algumas personalidades: Zeca Pagodinho - para 84% dos entrevistados ele é negro (52%, pardo; 32%, preto); Romário - 82% (51%, pardo; 31%, preto); Ronaldo - 64% pardo ou preto, contra 16% que o consideram branco; Camila Pitanga - 63% (36%, pardo; 27%, preta); FHC - 18% (17% pardo; 1% preto) contra 70%.
Atente-se também para o fato da exposição à discriminação racial estar bastante ligada ao grau de melanização da pele (e atributos tidos por tipicamente negros - cabelo encaracolado, nariz chato e largo, lábios carnudos e outros). Declaram que já se sentiram discriminados em função da cor: 7% dos brancos; 12% dos pardos e 30% dos pretos; a renda também cai de acordo com a tonalidade mais escura: em 2010, a renda média mensal era de R$ 1.538 para brancos; R$ 845 para pardos e R$ 834 para pretos.
Assim, o "olhômetro" discrimina mais claramente (com e sem trocadilhos) os mais pretos (isto é, com o fenótipo mais negroide). É isso que explica a situação dos gêmeos da UnB - uma mesma pessoa pode ser considerada preta, parda ou branca a depender da situação e há uma probabilidade maior ou menor disso ocorrer de acordo com o grau de seu fenótipo. Alguém como Camila Pitanga teria aproximadamente 50% de chances de ser considerada negra. Isso significa que, no geral, ela estará menos exposta à discriminação do que alguém com um fenótipo que leva a 80% das pessoas o considerarem negro. Assim, em uma classificação binária do tipo: entra ou não entra nas cotas raciais, esse grau de exposição à discriminação se reflete na probabilidade de ser ou não admitido no sistema de cotas - o limite não é necessário.
4) O critério de renda teria efeito sobre a discriminação por cor/raça.
É possível que tenha algum. Mas não contemplaria exatamente o efeito da discriminação por cor: se o fator cor não é eliminado, a tendência é favorecer mais os brancos pobres do que negros pobres.
5) Cotas raciais diminuem a qualidade.
Já tratado anteriormente neste blogue. Não há nenhum indicativo de que isso ocorra no caso brasileiro - há situações que têm desempenho inferior, superior ou igual; de modo geral, o desempenho é similar.
6) Cotas raciais
Já tratado anteriormente neste blogue. (Estranho que isso seja um fator levantado contra as cotas raciais por quem defende cotas sociais - por que não seria problema no segundo caso?)
"A second unintended consequence of affirmative action, according to critics, is that it functions as a form of reverse discrimination and thus increases intergroup tension (Lynch 1992). When striking down race-sensitive admissions policies at the University of Texas Law School, the Fifth Circuit Appellate Court reasoned that any categorization by ethnic or racial groups was likely to elicit animosity against the group granted preferential treatment by other ethnic groups (including whites). Indeed, one laboratory study has shown that the mere mention of affirmative action is enough to increase students’ intolerance against out-group members (Maio & Esses 1998).
Although poorly conceived diversity programs may create resentment and may enlarge antiminority bias, it seems that white students who have the opportunity to interact with the beneficiaries of affirmative action tend to appreciate the contact and tend not to devalue diversity efforts (Bowen & Bok 1998; Lempert et al. 2000a,b). White people who work for affirmative action employers also seem to value race-based remedies for discrimination (Taylor 1995). Evaluations of employers, and specifically of the fairness of employment practices, are highest among whites who work for diversity-promoting firms (Parker et al. 1997)."
Crosby et al. 2006. Understanding affirmative action. Annu. Rev. Psychol. 57: 585-611.
Da discussão no twitter que levou a esta postagem, uma denúncia de grande gravidade que o Ministério Público precisa investigar: "Uma professora amiga minha da UnB disse ter sido pressionada para dar notas maiores a cotistas."
Nenhum comentário:
Postar um comentário