terça-feira, 28 de agosto de 2018

Além da cúpula do trovão

Reproduzo o que escrevi alhures sobre a polêmica defendida pelo prof. Max Langer, da USP/RP.
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No texto original pra Folha, o prof. Langer não menciona nenhuma vez as palavras: moral(idade), ética; menos ainda diz algo sobre a moralidade ser ou não absoluta.

O que ele diz, textualmente:

"Por que diabos nossa espécie deveria agir como uma polícia ambiental que, uma vez presente na Terra (como se tivesse vindo de outro mundo), precisa conter as mudanças naturais (inclusive aquelas causadas por nós mesmos) pelas quais o meio constantemente passa? A vida em nosso planeta é irremediavelmente dinâmica. Quão egoísta de nossa parte seria conter esse curso, impedindo o surgimento de qual sorte de magníficos organismos que o futuro reserva?"

Nas respostas às críticas ao texto original, o prof. Langer introduz o conceito de "imperativo moral absoluto": "Somente não acho que exista um imperativo moral absoluto nisso, que seja algo que 'tenha' que ser feito."

Há uma série de contradições do prof. Langer nessa linha de raciocínio.

1. Aceitemos, por caridade, que ele esteja certo de que a vida seja *irremediavelmente* dinâmica. Que nada do que fizermos impede a extinção de espécie e o aparecimento de novas. Isso é reforçado na resposta de Langer aos pesquisadores Hubbe e Mendonça-Furtado (H&MF): "Não, não acho que possamos fazer nada, pois o que quer que façamos não faz diferença no cômputo geral das coisas". Oras, se qualquer coisa que fizermos não irá afetar a tal dinâmica, por que cargas d'água o pesquisador está incomodado a ponto de falar que tentar preservar espécies interfere com a dinâmica da vida?

Talvez porque os recursos poderiam ser usados pra outra coisa? Mas aí segundo o próprio prof. Langer, ainda em resposta a H&MF: "Normalmente seguimos as convenções atuais de onde vivemos [...]". E mais pra frente à indagação de H&MF de se seria justo abandonar os doentes, Langer responde: "Muitas sociedades tradicionais o fazem. Não estou concordando ou não, somente dizendo que isso é/foi socialmente aceito." E também diz: "Quem comete crime ambiental deve pagar por isso. Mas porque está cometendo um crime (ação que a sociedade, através de seus governantes, julgou inadequada), não um mal em si."

Oras, se a sociedade convencionou que a proteção da natureza é um valor, que os recursos e esforços para conservar espécies e biomas são bem aplicados, qual o incômodo do prof. Langer?
2. H&MF na crítica a Langer escrevem: "Cianobactérias e florestas do passado causaram grandes extinções. Estas extinções também baniram do planeta várias espécies de cianobactérias e plantas daquelas florestas. Será que se elas soubessem que suas ações as levariam à morte, elas não tentariam fazer nada para reverter o processo?"

Ao que Langer responde: "É falacioso comparar humanos (uma espécie vivente) com plantas e cianobactérias (milhares de espécies viventes)."

Mas foi o *próprio* Langer quem trouxe as cianobactérias e plantas à discussão, ao usá-las como exemplos de que as extinções são causadas por agentes naturais e concluir que a extinção antropogênica é natural. Então, ou H&MF também podem comparar cianobactérias e plantas com os humanos ou o prof. Langer foi falacioso no texto original.

3. Em resposta a Reinaldo José Lopes, o prof Langer concede que: "Atitudes ambientalistas podem muito bem ser a melhor alternativa para a sociedade humana (para sua preservação, ou a de qualquer outra espécie ou ecossistema que se queira), não discordo disso, discordo delas (atitudes ambientalistas) serem consideradas como um valor em si, 'certas', inatacáveis, totalitárias, e não relativizadas pelo conhecimento acumulado sobre a vida e o homem."

Oras, se forem a melhor alternativa serão relativizadas pelo quê? Se são as melhores tal avaliação passa pelo conhecimento acumulado sobre a vida e o homem. Em que a extinção antropogênica ser também natural relativizaria?

4. "Segundo, acho a consciência humana supervalorizada, além de mal definida (temos que saber minimamente do que estamos falando antes de usar o termo). Mesmo que ela exista em cada indivíduo (mas leiam 'cachorros de Palha' de John Gray ou vejam os vídeo de Claudia Feitosa-Santana no 'Casa do Saber' para terem dúvidas disso), não existe de forma coletiva para uma espécie. 'A espécie' não pode redirecionar suas atividades, pois essas são tão somente o somatório das atividades dos organismos que a compõe. Não existe 'bunker de comando'."

Se supervalorizada ou não, ela existe. Só o fato de Langer poder escrever sobre a extinção causada pelos humanos ser ou não natural em um meio de comunicação em massa e de responder a uma crítica já é um indicativo de que humanos são conscientes. Ou pelo menos um.
Mas, independentemente disso, mais uma vez, foi o próprio prof. Langer quem introduziu a consciência na discussão em seu texto original.

"No caso de nosso cérebro, ele possibilitou o desenvolvimento da linguagem e da consciência, por exemplo, atributos também geralmente reputados como únicos do ser humano. Animais não humanos se comunicam? Sem dúvida. Mas possuem linguagem? Também há consenso de que muitos são sencientes. Mas seriam conscientes? Para o filósofo australiano Peter Singer, senciência seria a capacidade de experimentar dor e sofrimento; consciência também incluiria outros aspectos como intencionalidade, autoconsciência e criatividade.

Independentemente das respostas a essas perguntas, que em muito dependem das altamente imprecisas definições desses termos, o mais importante é entender que, únicos ou não, tais atributos surgiram na espécie humana como consequência do processo evolutivo. Por isso, em sua essência, são equivalentes a qualquer outra característica de qualquer outra espécie. Possuí-los não nos faz diferentes, pois eles compartilham sua natureza com o restante das coisas do mundo."

E na espécie humana existem vários bunkers de comando: famílias, instituições, governos, sociedade.
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Enfim, se o ponto de Langer era argumentar que não há moral absoluta, 1. não muda nada a questão ambiental (porque ela sempre tem sido dialógica - ainda que ocasionalmente confrontacional - as leis, ao menos em democracias, e as convenções internacionais são frutos de intensas negociações - frequentemente frustrantes para os ambientalistas), 2. foi feito de modo pouco cuidadoso e eficiente (a ponto de várias pessoas plenamente capacitadas criticarem-no e Langer ter que dizer que foi mal interpretado; o ponto não foi nem sequer mencionado no texto original; o ponto destacado, que a extinção antropogênica é natural, não tem qualquer relevância, já que incorreria na falácia naturalista).
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domingo, 8 de abril de 2018

Lula, Lava Jato e contexto

Reproduzo abaixo o que escrevi alhures.

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Já vi vários argumentos justificando a prisão de Lula e/ou de que ele de fato cometeu crime de corrupção com base na aliança dele com Jucá, Temer, Maluf, Renan, Sarney, donos de empreiteiras como Emílio e Marcelo Odebrecht ou Leo Pinheiro...

Em um primeiro momento isso me soa a um ad hominem. O fato de ele ter feito aliança política com sujeitos no mímino mínimo suspeitos não comprova que se tenha cometido ilícito.

Sendo caridoso, podemos ver isso não como uma prova, mas como um argumento de contexto. Como era próximo a notórios corruptos, então certos outros elementos de prova devem seguir uma certa chave interpretativa: altera a probabilidade condicional de que esses elementos estejam ligados a atos ilícitos.

Pois bem, assim seria justo. Mas há um porém. Dois.

1. Temos o fato de que era uma composição política em nome da governabilidade também. Isso *também* altera as probabilidades condicionais, mas em um sentido oposto, o de diminuir a probabilidade de ligação com ilícitos. P.e. a nomeação de Barusco Pedro Paulo Costa pra diretoria. Se analisamos no contexto da associação criminosa, como fez o Moro e como defende quem lembra das alianças com a escumalha política, essa nomeação é suspeita como facilitadora proposital da corrupção. Se analisamos sob a óptica da governabilidade, a nomeação se dá pra facilitar o apoio político de projetos do governo. (Note-se que Lula só força o conselho a aprovar a nomeação após o PP pressionar cobrando pela demora na homologação.)

2. Temos que levar em conta também como contexto que os procuradores do MPFPR e o juiz Sérgio Moro *queriam* a condenação do Lula - tenha ou não componente apreciável da pressão midiática nessa vontade dos membros da Lava Jato. Isso é evidenciado nas várias condutas consideradas atípicas por especialistas no Direito de seus membros no inquérito e no processo. Lembrando não apenas a pressa sempre presente (o rápido julgamento, o rápido pedido de prisão), mas a divulgação ilegal dos grampos (Moro teve que pedir desculpas depois de levar um pito do STF) e a recusa do acordo de colaboração premiada quando não envolvia acusação contra Lula. E, mais grave, a denúncia de Tacla Duran sobre os procedimentos da Lava Jato.

Se é contexto, temos que considerar esses e outros elementos também.
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sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Batatinha quando nasce: não espalhe desinformação


Republico aqui minha análise da tese de que o verso original seria "Espalha a rama pelo chão" que postei alhures.
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 Um outro mito recorrente de hipercorreção é de que o verso original da "Batatinha" seria "espalha a rama".

De fato, uma versão antiga - e talvez ancestral - fala em "deita a rama".

"Batatinha quando nasce
Deita a rama pelo chão
Mulatinha quando deita
Põe a mão no coração."
Foi registrada, p.e., em um livro do final do séc. 19: "Cantos populares do Brazil, colligidos pelo dr. S. Roméro, acompanhados de intr. e notas comparativas por T. Braga" de 1883.

Mas em seu "Trova literária: história da quadra setissilábica autônoma, especialmente na literatura brasileira" de 1974, o poeta e engenheiro Eno Teodoro Wanke, embora tenha registrado diversas variantes do "batatinha", não incluiu nenhum "espalha a rama".

Como o subtítulo da obra de Wanke indica, "Batatinha" - tal qual grande parte das trovas e cantigas populares, é uma redondilha. No caso, uma redondilha maior, com sete sílabas - e com tônicas nas sílabas ímpares. "Espalha a rama" torna o verso octossílabo e com tônicas nas pares.

Cabe notar a existência de versos como:

"A laranja, quando nasce,
Logo nasce redondinha;
Também tu, quando nasceste,
Logo foi para ser minha."
(Registrado também por Sylvio Roméro - e a trova era entoada não apenas no Brasil, mas, segundo Wanke, também em Portugal, na região de Minho).

Ou

"A açucena quando nasce
Arrebenta pelo pé,
Assim arrebenta a lingua
De quem falia o que não é."
(Igualmente registrado por Sylvio Roméro.)

É difícil saber qual foi a forma original e quando passou a incluir "batatinha" (suponho - é suposição - que seja derivada, já que laranjeiras e açucenas eram conhecidas na Europa, os versos devem preceder à colonização do Brasil e o contato com as batatas, nativas das Américas). É possível que "esparrama" seja derivada. Mas dificilmente incluiu um intermediário "espalha a rama" ao menos como algo estável - já que atrapalha completamente o tempo da declamação pelo número de sílabas diferente e tônicas fora de tempo.
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Upideite(19/jan/2017): A referência mais antiga que encontro no Google Books a "espalha a rama" é de um livro de 1985 "Contribuição ao conhecimento de Roraima e sua cultura", sem autoria indicada (possivelmente corresponde a Sette Silva,E.L. ; Nascimento,M.C.S.C. 1985. Contribuição ao
conhecimento de Roraima e sua cultura. Governo do Teritório Federal de Roraima / Conselho Territorial de Cultura, Boa Vista. 91p. como referido em Barbosa, R.I. et al. 2000):

"Batatinha quando nasce
Espalha a rama pelo chão
Meu amor quando me beija
Põe a mão no coração"