sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Batatinha quando nasce: não espalhe desinformação


Republico aqui minha análise da tese de que o verso original seria "Espalha a rama pelo chão" que postei alhures.
--------------
 Um outro mito recorrente de hipercorreção é de que o verso original da "Batatinha" seria "espalha a rama".

De fato, uma versão antiga - e talvez ancestral - fala em "deita a rama".

"Batatinha quando nasce
Deita a rama pelo chão
Mulatinha quando deita
Põe a mão no coração."
Foi registrada, p.e., em um livro do final do séc. 19: "Cantos populares do Brazil, colligidos pelo dr. S. Roméro, acompanhados de intr. e notas comparativas por T. Braga" de 1883.

Mas em seu "Trova literária: história da quadra setissilábica autônoma, especialmente na literatura brasileira" de 1974, o poeta e engenheiro Eno Teodoro Wanke, embora tenha registrado diversas variantes do "batatinha", não incluiu nenhum "espalha a rama".

Como o subtítulo da obra de Wanke indica, "Batatinha" - tal qual grande parte das trovas e cantigas populares, é uma redondilha. No caso, uma redondilha maior, com sete sílabas - e com tônicas nas sílabas ímpares. "Espalha a rama" torna o verso octossílabo e com tônicas nas pares.

Cabe notar a existência de versos como:

"A laranja, quando nasce,
Logo nasce redondinha;
Também tu, quando nasceste,
Logo foi para ser minha."
(Registrado também por Sylvio Roméro - e a trova era entoada não apenas no Brasil, mas, segundo Wanke, também em Portugal, na região de Minho).

Ou

"A açucena quando nasce
Arrebenta pelo pé,
Assim arrebenta a lingua
De quem falia o que não é."
(Igualmente registrado por Sylvio Roméro.)

É difícil saber qual foi a forma original e quando passou a incluir "batatinha" (suponho - é suposição - que seja derivada, já que laranjeiras e açucenas eram conhecidas na Europa, os versos devem preceder à colonização do Brasil e o contato com as batatas, nativas das Américas). É possível que "esparrama" seja derivada. Mas dificilmente incluiu um intermediário "espalha a rama" ao menos como algo estável - já que atrapalha completamente o tempo da declamação pelo número de sílabas diferente e tônicas fora de tempo.
 --------------

Upideite(19/jan/2017): A referência mais antiga que encontro no Google Books a "espalha a rama" é de um livro de 1985 "Contribuição ao conhecimento de Roraima e sua cultura", sem autoria indicada (possivelmente corresponde a Sette Silva,E.L. ; Nascimento,M.C.S.C. 1985. Contribuição ao
conhecimento de Roraima e sua cultura. Governo do Teritório Federal de Roraima / Conselho Territorial de Cultura, Boa Vista. 91p. como referido em Barbosa, R.I. et al. 2000):

"Batatinha quando nasce
Espalha a rama pelo chão
Meu amor quando me beija
Põe a mão no coração"

Um comentário:

Ivan Linares disse...

Valeu pela postagem! Sempre achei essa história de "espalha a rama" forçada, mesmo que fosse pela minha visão leiga de que o "espalha" quebra o ritmo da rima, como o Sr. apontou.

Aliás, a dona internete tá cheia de "hipercorreções" como a deste artigo. Coisas como dizer que não é "cuspido e escarrado" e sim "esculpido e encarnado/esculpido em carrara" ou que não é "Quem tem boca vai a Roma" e sim "vaia Roma" (o "cuspido" existe em várias línguas, segundo o Dicionário Houaiss, e o "vai a" também, de acordo com um texto do blogue "Sobre palavras", de Sérgio Rodrigues).

Ou aquela doideira de que chamar cachaça de "pinga" vem do fato de que a aguardente teria sido descoberta por acidente pelos escravos das moendas de açúcar, pois seria uma sobra do refino que evaporava, condensava no teto e pingava na pele ferida de chicotadas dos escravos, fazendo-a arder. (Cumequié? Essa nem vale a pena contestar!)

Ou outra forçação de barra sobre a relação entre a expressão "feito nas coxas" e um suposto modo de fabricar telhas usando as próprias coxas dos trabalhadores/escravos, que resultaria em telhas irregulares. Além de ignorar a versão sexual da expressão, ignora a simples verificação prática de que fazer qualquer coisa sem uma mesa de trabalho adequada vai resultar em um serviço malfeito.

Ou o tal de "Quem não tem cão caça 'como' gato", que também me parece forçado. Como no exemplo do seu texto, também tira o ritmo do ditado, e a explicação de que significa "caçar sozinho" me parece forçada. Outras versões dessa hipercorreção dizem que significaria "caçar com atenção redobrada", e também acho forçada. O ditado corrente, "caça COM gato", tem mais cara de ser o original, tanto pela graça da expressão e seu inusitado, quanto pelo significado mais que óbvio, "na cara": "Quem não tem o que é preciso para cumprir uma tarefa improvisa!"