A lei francesa 2010-1192 em pleno vigor a partir de 11 de abril de 2011 que trata de ocultação da face em locais públicos é, ela mesma, dissimulada.
Diz o texto do artigo 1o:
"Nul ne peut, dans l'espace public, porter une tenue destinée à dissimuler son visage."
Aparentemente é livre de qualquer conotação antirreligiosa em geral e anti-islâmica em particular. Afinal, não apenas não menciona nenhum tipo em específico como burqa e niqab como implica na proibição da ocultação da face por quaisquer meios: como capacetes, máscaras, balaclavas, etc.
Mas aí vem o segundo parágrafo do art. 2o que lista as exceções:
"II. ― L'interdiction prévue à l'article 1er ne s'applique pas si la tenue est prescrite ou autorisée par des dispositions législatives ou réglementaires, si elle est justifiée par des raisons de santé ou des motifs professionnels, ou si elle s'inscrit dans le cadre de pratiques sportives, de fêtes ou de manifestations artistiques ou traditionnelles."
Claro, bombeiros precisam usar máscaras de oxigênio em incêndios, não faz sentido proibi-los. E esgrimistas? Sim, também liberado. E máscaras de carnaval? Opa, pode sim. E capacete para motocicletas? Claro que pode usar. E máscaras de proteção para vítimas de queimaduras? Sim, sim, não faz sentido proibi-los. Isto é, o artigo 2o em seu parágrafo II desfaz toda a proibição abrangente do artigo 1o menos para... sim, você adivinhou, os aparatos usados por mulheres muçulmanas. O mesmo artifício que baniu das escolas públicas francesas o uso de símbolos religiosos pelos alunos: para não se referir especificamente aos véus islâmicos, referiu-se genericamente a símbolos religiosos, mas para que se aplicasse somente aos véus islâmicos, adjetivou-se com "ostensivo" - a senha para o uso de outros símbolos, menos os véus.
(Se eu fosse advogado de uma muçulmana multada por uso de burqa apelaria para "manifestations traditionnelles" - ao menos no que se refere a alimentos, a legislação europeia considera como tradicional algo em uso contínuo por 25 anos.)
Claro que tem pouco efeito prático, nós daqui manifestarmo-nos sobre leis de acolá, mas é preocupante a escalada do cerco islamofóbico - e xenofóbico mais genericamente (ciganos também são afetados com leis restritivas, além de imigrantes africanos, asiáticos e latinoamericanos) - travestida em atos laicizantes e libertários.
Na edição de 23/abr/2011 da Folha, a Procuradora do MP/SP Luiza Nagib Eluf defende a lei francesa (só pra asssinantes aqui)*. Para responder que a lei *não* fere a laicidade estatal ela elenca três argumentos.
1) "Primeiro, porque, conforme as leis francesas, a humilhação ou a escravização da mulher não é permitida."
2) "Segundo, porque o Alcorão não determina o uso do véu."
3) "Em terceiro lugar, é preciso lembrar que as regras mais elementares de segurança pública recomendam que as pessoas não cubram suas faces e não se ponham mascaradas ao frequentar espaços de uso comum."
1a - se há já uma lei, para que uma nova?
1b - o problema é a humilhação, puna-se a agressão às mulheres. Se um homem açoita uma mulher, o problema é resolvido proibindo-se a posse de açoite ou punindo-se o uso do açoite contra pessoas? E se o homem humilha a esposa fazendo a vestir uma camiseta com os dizeres "sou uma prostituta", vai se proibir o uso de camisetas (talvez camisetas com qualquer tipo de frases)?
2 - para efeito da laicidade pouco importa o que o Corão determina ou deixa de determinar, a laicidade é cega a isso. Ou para se elaborar, aprovar e aplicar uma lei de um estado laico deve consultar primeiro o que um livro sagrado diz para ver se é ou não o caso?
3 - as regras que, pela própria redação da lei, admitem exceções. Por que exatamente a burqa e o niqab seriam perigosos para a segurança pública enquanto palhaços não?
A procuradora segue dizendo: "Por outro lado, quando algumas mulheres árabes se posicionam publicamente a favor da burca ou do niqab (os dois tipos de véu que cobrem o rosto, bem como todo o corpo e até as mãos), essas declarações demonstram a total falta de percepção da realidade e de sua própria condição. São pessoas que foram condicionadas a esse uso durante toda a existência e começaram a acreditar que são felizes assim." Ou seja, reduz essas mulheres a umas incapazes e que necessitam da tutela do estado.
Uma coisa é proibir que se obrigue alguém a fazer uma coisa, outra é proibir qualquer um de fazer essa uma coisa. Será que proibindo o uso de burqa e niqab magicamente as mulheres muçulmanas que são escravizadas pelos maridos ganharão uma consciência emancipatória (não estou nem considerando aqui os maridos que simplesmente proibirão suas esposas de sairem sem burqa e niqab)? Não seria liberdade garantir condições para que ninguém seja obrigado a usar burqas, nuqabs ou qualquer outra coisa contra sua vontade - e que quem quiser, de sua própria vontade, usar possa usá-los?
Proibir a burqa e niqab é, por si só, ineficiente para se atingir o objetivo de impedir a humilhação das mulheres. Enquanto priva dessa opção aquelas que realmente a desejam usar. Para se resolver a crítica situação das muitas mulheres muçulmanas (e não apenas as muçulmanas) submetidas a seus maridos é preciso criar condições: sistemas de denúncias de maus tratos e proteção à mulher, educação e trabalho, assistência social... e, nesse caso, proibir a burqa e niqab é inútil: as que não quiserem utilizar, não utilizarão.
Para algumas seitas cristãs, é obrigatório que as mulheres usem saias. Elas não podem, sob nenhuma hipótese, usar calças. Vai se proibir o uso de saias para libertar mulheres dessas seitas cristãs?
(*via @carloshotta)
Obs: O mesmo disclaimer feito na ocasião da discussão sobre o machismo nos blogues ditos progressistas vale aqui.
domingo, 24 de abril de 2011
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário