quinta-feira, 1 de julho de 2010

Fuzzy Jesus: O Não-Paradoxo de Sodom e Amorah

Gênesis 18:20-33 (versão de Almeida Corrigida e Fiel)
"#Disse mais o Senhor: Porquanto o clamor de Sodoma e Gomorra se tem multiplicado, e porquanto o seu pecado se tem agravado muito, descerei agora, e verei se com efeito têm praticado segundo o seu clamor, que é vindo até mim; e se não, sabê-lo-ei.
#Então viraram aqueles homens os rostos dali, e foram-se para Sodoma; mas Abraão ficou ainda em pé diante da face do Senhor.
#E chegou-se Abraão, dizendo: Destruirás também o justo com o ímpio? Se porventura houver cinqüenta justos na cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar por causa dos cinqüenta justos que estão dentro dela? Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de ti. Não faria justiça o Juiz de toda a terra?
#Então disse o Senhor: Se eu em Sodoma achar cinqüenta justos dentro da cidade, pouparei a todo o lugar por amor deles.
#E respondeu Abraão dizendo: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor, ainda que sou pó e cinza. Se porventura de cinqüenta justos faltarem cinco, destruirás por aqueles cinco toda a cidade?
#E disse: Não a destruirei, se eu achar ali quarenta e cinco.
#E continuou ainda a falar-lhe, e disse: Se porventura se acharem ali quarenta?
#E disse: Não o farei por amor dos quarenta.
#Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, se eu ainda falar: Se porventura se acharem ali trinta?
#E disse: Não o farei se achar ali trinta.
#E disse: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor: Se porventura se acharem ali vinte?
#E disse: Não a destruirei por amor dos vinte.
#Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, que ainda só mais esta vez falo: Se porventura se acharem ali dez?
#E disse: Não a destruirei por amor dos dez. E retirou-se o Senhor, quando acabou de falar a Abraão; e Abraão tornou-se ao seu lugar."

A narrativa segue com as duas cidades sendo destruídas, depois da multidão querer estuprar dois enviados por Javé. Interpreta-se tradicionalmente que os únicos homens justos - em número menor do que os dez combinado - encontravam-se na casa de Ló, sobrinho de Abraão.

Há um falso paradoxo que combina com a história. Quantos fios de cabelo uma pessoa pode ter no máximo para ser considerada careca? 150 mil fios no couro cabeludo é de uma pessoa com respeitável cabeleira. Um fio a menos não faz diferença. Dois também não. Nem três, quatro, cinco... Dez mil não fazem... Mas seguramente 130 mil fios a menos serão notados. Onde fica o ponto intermediário que definiria a pessoa como careca? Não há um ponto fixo. O que não quer dizer que não existam pessoas carecas ou pessoas cabeludas. Matematicamente isso é resolvido pela chamada lógica fuzzy - em vez de definir categoricamente as pessoas como cabeludas ou carecas, cada pessoa possui uma probabilidade de ser careca ou cabeluda (no caso, probabilidades complementares). Uma pessoa com 150 mil fios teria, digamos, uma probabilidade 1 (ou 100%) de ser cabeluda, uma pessoa com a cabeça lisinha teria uma probabilidade de 0 de ser cabeluda. As com quantidades intermediárias teriam probabilidades intermediárias - não necessariamente com 50% para alguém com 75 mil fios de cabelo, mas o decréscimo ou acréscimo da probabilidade seria contínuo.

Vamos a um outro ponto que ligarei com a questão acima. Não é uma alegação extraordinária dizermos que havia uma pessoa não identificada na Judeia do século 1. Tampouco seria uma alegação extraordinária dizermos que haveria duas pessoas... ou três... ou quatro. Mas certamente não deveria haver 1 bilhão. Com excavações arqueológicas podemos fazer algumas inferências sobre a densidade populacional, número de cidades à época e ter uma estimativa. Não sei quanto seria - considerando-se Jaffa, Gaza, Jerusalém e Hebron, estas quatro cidades teriam uma população de cerca de 150 mil habitantes em conjunto. Digamos que fossem umas 500 mil na província romana. Dizer que haveria um, digamos, José não traria maiores complicações. Poderíamos dizer que haveria uma Maria. Uma Ana. Um Josué... A questão é que, cada indivíduo isoladamente não teria uma existência implausível. Porém, em conjunto, não poderiam ultrapassar uma marca razoável - aqui, bastante no chutômetro, 500 mil. Estamos na questão do mais um (ou menos um) fio de cabelo.

Sabemos que havia homens e mulheres na Judeia no começo da era Cristã. Então qual o problema de dizer que haveria uma pessoa em específico?

A questão é que quando começa a se detalhar a pessoa: seu nome, suas relações familiares, seu sexo, sua idade, sua condição social... isto é, quando a individualizamos - cada detalhe tem uma probabilidade (não-estimada em sua maior parte - embora o sexo possamos aproximar como tendo 50% de início e variando de acordo com o nome), parcialmente independente da probabilidade de outros detalhes. Se multiplicarmos essas frações independentes, a probabilidade cai. Digamos: 50% de ser homem, em sendo homem, 70% de ter cabelos escuros - a probabilidade será de 35% de ser homem de cabelos escuros. (Claro que isso não quer dizer que as chances de existir um homem de cabelos escuros seja de 35% - por exemplo, as chances uma pessoa tomada ao acaso ser homem seria de 50%, mas as chances de haver um ou mais homens seria muito próximo de 100%. Mas ambas as probabilidades decrescem - salvo informações extras - com o grau de detalhamento dado.)

O ponto portanto são as tais informações extras. Se pegarmos uma coordenada ao acaso da Judeia romana, as chances de se encontrar ali uma pessoa é muito baixa. Mas se tivermos a informação de que ali há uma cidade (ou sítio arqueológico), a probabilidade aumenta. As chances de haver um nativo americano é considerada nula - salvo se tivermos, p.e., um esqueleto completo cuja análise osteológica (ou melhor, exame genético) indique pertencer a um grupo como gês ou comanches.

Quais as chances de ter havido um prefeito romano chamado Gaius Antonius em Judeia em algum momento da história antiga? Se não houver nenhuma fonte, simplesmente desconsideramos essa possibilidade - mesmo que não seja nem um pouco impossível (é um nome romano da época e certamente haveria prefeitos romanos em outros tempos além de Pôncio Pilatos). Digamos que encontremos um texto de século 1 a.C. que fale de Gaius Antonius - que ele tinha 3 metros de altura, dois olhos, havia exterminado 3 bilhões de guerreiros árabes, gostava de flores, rezava à Júpiter toda sexta-feira, filho de Gaius Marco, sua mãe era a própria deusa Diana, comia pedras e gostava de muito vinho. Podemos abstrair tudo e considerar que Gaius Antonius tenha sido mesmo prefeito de Judeia? Esse texto seria uma fonte histórica credível? Haveria um Gaius Antonius histórico com dois olhos, provavelmente alto (mas certamente não com 3 metros), guerreiro famoso (mas que certamente não exterminou 3 bilhões de árabes), filho de Gaius Marco (mas com mãe terrena), talvez algo religioso, chegado a vinho (sem comer pedras) e flores? Imagine agora um texto, mais ou menos da mesma época, que lista vários nomes encimados com o título: Iudaeae Praefectorum (ou algo assim, não sei latim) - arrolado, Gaius Antonius. Nenhum outro comentário. Essa lista parece mais credível (não necessariamente será verdadeira).

Por que, em um julgamento, advogados do réu procuram estabelecer a credibilidade do depoente de defesa e diminuir a credibilidade dos depoentes de acusação? Ok, as chances de ser pura chicana são altas. Digamos que seja - ó, oxímoro - um advogado honesto (ei, advogados, não me processem, não é sério!). A credibilidade do depoente afeta a credibilidade do depoimento. Se um sujeito se senta e diz que viu o acusado falando com um elefante cor-de-rosa invisível e afirmando que iria matar a vítima, o fato de mencionar elefante cor-de-rosa invisível não faz com que se torne mentira a afirmação de que o acusado disse que iria matar a vítima, não o inocenta - mas faz com que a afirmação feita seja pouco acreditável. Provavelmente o acusado não pegará xadrez - se a única prova for o depoimento do sujeito acima -, mas aí por causa da presunção da inocência. E não porque o depoimento provou que o acusado não matou ninguém - o depoimento apenas falha em demonstrar a culpa. Mas se, digamos, uma gravação do local do homicídio mostra o acusado ameaçando a vítima e nela atirando teremos provavelmente uma condenação - o doido estaria certo, porém só sabemos disso por uma fonte independente (e mais credível).

A distinção entre "seguramente verdadeiro" e "seguramente falso" não é dicotômica. Na maior parte das vezes é impossível atribuir probabilidades. Algumas pessoas acharão alguém com, digamos, 50 mil fios de cabelo suficientemente cabeluda - especialmente se for uma pessoa sem cabelo algum -, outras a considerarão carecas - especialmente os cabeludos com 150 mil fios ou mais. Claro que quanto mais indícios, para um lado ou para outro, acumularem-se, menos defensável o posicionamento contrário ao conjunto de tais indícios.

Não temos exatamente um equivalente para a presunção da inocência no caso - o que mais se aproxima é a hipótese nula (no caso, de que não tenha havido um prefeito Gaius Antonius). Também não iremos fazer chover fogo e enxofre sobre o herege que duvida que Gaius Antonius tenha existido.

Um comentário:

Osame Kinouchi disse...

Informacões muito interessantes sobre Pitágoras:

http://comciencias.blogspot.com/2010/07/era-pitagoras-um-charlatao.html