sábado, 22 de março de 2014

"Meu nome é Ciência, mas pode me chamar de Geni"

Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, em seu texto "A Universidade do Século XXI: Para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade" (2005) escreve sobre ecologia dos saberes e o papel das ciências:

"A ecologia dos saberes [...] é algo que implica uma revolução epistemológica no seio da universidade e, como tal, não pode ser decretada por lei. [...] A ecologia de saberes é, por assim dizer, uma forma de extensão ao contrário, de fora da universidade para dentro da universidade. Consiste na promoção de diálogos entre o saber científico ou humanístico, que a universidade produz, e saberes leigos, populares, tradicionais, urbanos, camponeses, provindos de culturas não ocidentais (indígenas, de origem africana, oriental, etc.) que circulam na sociedade. De par com a euforia tecnológica, ocorre hoje uma situação de falta de confiança epistemológica na ciência que deriva da crescente visibilidade das consequências perversas de alguns progressos científicos e do facto de muitas das promessas sociais da ciência moderna não terem se cumprido. Começa a ser socialmente perceptível que a universidade, ao especializar-se no conhecimento científico e ao considerá-lo a única forma de conhecimento válido, contribui activamente para a desqualificação e mesmo destruição de muito conhecimento não-científico e que, com isso, contribui para a marginalização dos grupos sociais que só tinham ao seu dispor essas formas de conhecimento. Ou seja, a injustiça social contém no seu âmago uma injustiça cognitiva. Isto é particularmente óbvio à escala global já que os países periféricos, ricos em saberes não científicos, mas pobres em conhecimento científico, viram este último, sob a forma da ciência económica, destruir as suas formas de sociabilidade, as suas economias, as suas comunidades indígenas e camponesas, o seu meio ambiente." (pág. 56)

A questão da universidade ser sensível a saberes tradicionais e trazer para dentro de sua circunscrição me parece uma ideia defensável e tendo a apoiá-la. Discordo de sua visão do papel das ciências no massacre de tais saberes.

A tal desconfiança epistemológica das ciências não deriva inteiramente das tais "consequências perversas de alguns progressos científicos" nem do "facto de muitas das promessas sociais da ciência moderna não terem se cumprido".

Há, de fato, uma apropriação - aceita de bom grado por boa parte da comunidade científica - do saber científico a serviço de corporações interessadas unicamente no lucro a despeito das consequências socioambientais da aplicação tecnológica (seja o desemprego estrutural gerado pela hiperautomação, seja a poluição gerada pelo uso intensivo de energia fóssil, etc.). Mas isso não gera, em si, uma suspeição epistemológica, é, antes, um problema de aplicação, pragmático.

De todo modo, parte da desconfiança surge exatamente do discurso pós-modernista do relativismo epistemológico - um relativismo um tanto matreiro, já que, quando possível, não apenas diz que o conhecimento não-científico é tão válido quanto o cientifico, como diz que o não-científico é mais válido, tem mais legitimidade (se não por outra coisa, por ser uma forma de conhecimento de resistência, da população excluída). Quando confrontado com o fato do desenvolvimento tecnológico produzido pelas ciências aí o discurso se volta para o relativismo propriamente dito (e não um puro anticientificismo) de tentar valorar também os conhecimentos não-científicos.

O discurso de que o conhecimento científico não produziu o resultado prometido é uma carta blefe. Há os profetas da tecnociência que dizem maravilhas de pesquisas que não conduzem ao Éden, isso é fato. Que parte da comunidade científica abona tais promessas - muitas sabidamente falsas - sob a perspectiva de obter bons financiamentos também é um fato. Então... onde o blefe? O blefe é duplo:
1) usar essa carta para, sem bases, desconsiderar as promessas cumpridas pelo conhecimento científico e seus avanços não prometidos (por inesperados), mas mesmo assim obtidos.
2) usar essa carta para esconder as promessas não cumpridas pelo conhecimento tradicional, não-científico.

O nome tradicional não é casual. Implica tradição. Uma certa história, nem um pouco curta, de aplicação e uso. Formas tradicionais são mantidas com relativamente poucas alterações ao longo das gerações. E... não necessariamente porque funcionam. Ou até funcionam, mas não de forma necessariamente eficiente. Danças da chuva, digam o que quiserem, não funcionam para os propósitos primordiais a que se destinam. Tem seu papel dentro do conjunto de valores da cultura, mas isso não faz com que aumente em um milímetro sequer a precipitação local diante da alternativa de sua não realização.

E se o conhecimento científico é vergonhosamente sequestrado para interesses de dominação; isso não é menos verdadeiro para conhecimentos não-científicos. Acusações de bruxaria - que ocorrem ainda hoje, especialmente em certas regiões africanas, mas não apenas ali - baseiam-se em práticas tradicionais e não-científicas que implicam em dominação patriarcal: as vítimas quase invariavelmente são mulheres. Práticas religiosas milenares são instrumentos de dominação social. As castas - ainda que leis indianas tentem eliminá-las - é uma forma de dominação tradicional, sem origem em aplicação de conhecimento científico. Se poder político e econômico podem ser derivados de práticas tradicionais, o sequestro e adestramento será feito.

Se o uso de conhecimento científico para a dominação social e econômica é mais extenso e tem mais consequências, é justamente pelo fato de o conhecimento científico ser mais eficiente - em outras palavras, porque funciona.

Empresas podem tornar agricultores dependentes de suas sementes ao inserirem genes de autoinfertilidade porque genes de autoinfertilidade funcionam de acordo com o previsto pelo conhecimento científico. Empresas não corrompem dançadores da chuva para ameaçar regiões de seca porque, bem, danças da chuva não trazem chuva. Não tem nada a ver com ideologia de só usarem o conhecimento científico.

O modo de limitar o poder das empresas é uma regulação por meio de leis - com sanções penais em caso de descumprimento -, não por relativização do poder do conhecimento das ciências.

Se agricultores familiares passarem a acreditar que sementes com gene terminator não funciona, tais sementes não passarão a produzir plantas que permitem a produção de novas sementes. Novamente, a questão não é epistemológica. A questão é pragmática. A injustiça é política, não cognitiva.

Se a ecologia dos saberes dentro da universidade - ou de qualquer instituição científica - se der nos termos de ataque epistemológico e cognitivo, teremos sérios problemas. Conforme escrevi alhures, a valor(iz)ação dos saberes tradicionais deve se dar em outros termos.

2 comentários:

André disse...

Ou o cara não aprendeu nada com a Grande Revolução Cultural Proletária ou aprendeu muito bem.

none disse...

Salve, André,

A bem dizer, é um comentário só de passagem de um texto bem mais longo - quase 90 páginas.

Mas esse relativismo epistemológico parece ser bem disseminado entre o pessoal de humanas.

[]s,

Roberto Takata