sábado, 23 de agosto de 2014

Cala boca, Dawkins. Da odiosa recriminação a pais de downianos.

Minha primeira reação ao ler os tweets do Dawkins sobre a imoralidade de se ter filhos downianos foi de nojo. Depois que li os esclarecimentos dele minha reação foi de vomitar (ainda que só metaforicamente).

O que me assusta é haver tantos eugenistas por aí- ainda que uns e outros tenham vergonha de dizer o nome (um cunhou o termo "para-eugenista" pra não falar que Dawkins é eugenista). Embora, num segundo pensamento, isso não seja uma surpresa.

Há os que confundem - propositadamente ou não - a discussão e querem crer que a reação de crítica a Dawkins seja por ele ter falado em aborto. O problema não é ele aceitar o abortamento (embora para os grupos pró-vida seja, mas, nem de longe apenas os pró-vida censuram o cientista inglês), o problema é ele considerar imoral quem deseja continuar a gestão e dar à luz um filho com síndrome de Down. É recriminar moralmente quem opta pelo contrário.

A premissa oculta assumida por Dawkins, de que downianos não são capazes de ter uma vida feliz e plena, é desmontada pela Down's Syndrome Association do Reino Unido: "People with Down's syndrome can and do live full and rewarding lives, they also make a valuable contribution to our society" ["Pessoas com síndrome de Down pode viver vidas plenas e recompensadoras e assim o fazem, elas podem ainda trazer valiosas contribuições a nossa sociedade."] Débora Seabra, a primeira professora downiana no Brasil, é um exemplo dessa valiosa contribuição à sociedade.

A síndrome tem um espectro de manifestação: há casos mais severos, com inúmeras complicações cardiorrespiratórias, e casos mais leves. Há os com mais e os com menos retardo mental.

A escolha deve caber exclusivamente aos pais a respeito de se querem ou não levar a gestação a termo. E não há que se recriminá-los se escolherem por abortar ou por terem filhos downianos.*

Baseando-nos no argumento de Dawkins de que se deve abortar um feto que daria origem a uma criança que não seria feliz neste mundo, se o ateísmo fosse ligado a alguma variante genética, fetos com tais variantes deveriam ser abortados - seriam infelizes num mundo dominado pela religião. Mas mesmo que o ateísmo não seja geneticamente influenciado, deveríamos criar as crianças para serem religiosas, já que estariam mais ajustadas em um mundo predominantemente religioso. E assim vai com qualquer outro desajustamento - inclusive os que poderiam ser tratados ou curados: um míope sofre até ter acesso a óculos (e nem todos terão acesso a um bom par de óculos ou lentes ou cirurgias corretivas).

A linha de argumentação de Dawkins, de pragmatismo ético calcado na maximização da felicidade e minimização do sofrimento, é da mesma escola singeriana: que admite o infanticídio no caso de pais que não podem criar os filhos.
 

*Upideite(23/ago/2014): A legislação brasileira não admite aborto nesses casos (só se a gravidez ameaçar a vida da gestante ou for resultante de estupro - independentemente de se ameaça ou não a vida da mãe - e a jurisprudência tem autorizado para os casos em que o concepto é incompatível com a vida - como nos casos de fetos anencefálicos). Embora eu não tenha uma opinião fechada a respeito de se a lei deveria ou não ser ampliada para abarcar mais casos, minha tendência é achar que deva se permitir a interrupção pelo menos até a terceira semana da gestação. Mas isso deveria ser um *direito* da mulher/casal; não uma obrigação (ainda que apenas moral).

5 comentários:

mari.sz disse...

Legal! Mais um assunto pra uma leiga ir atrás e, se me permite, fazer um comentário meio superficial. Mr. D talvez estivesse querendo contrapor a imoralidade do aborto à imoralidade, digamos, "eugênica". Sem dúvida uma declaração "tactlessly vulnerable to misunderstanding", segundo ele mesmo tenta arrumar. Mas o grave é que me parece extremamente presunçoso achar que pessoas "sadias" tem melhores condições de aproveitar a vida que outros.

none disse...

Oi, Mari,

A decisão é complexa, complicada e delicada. Mais um motivo para criticar o simplismo condenatório (moralmente) do Dawkins.

[]s,

Roberto Takata

André disse...

Criticar os pais que optam por levar adiante a gestação de um feto com Down, que pode ser tipo grave ou não, não é equivalente a criticar as testemunhas de Jeová que colocam os filhos em risco ao não autorizar transfusões?

JDW disse...

Sem chance. Vou criticar e questionar a moralidade do ato, sim senhor, doa a quem doer. Não estou de modo algum sugerindo a ilegalidade do ato, pois acredito que as pessoas tenham o direito de tomar decisões estúpidas. Assim como não abro mão do meu direito de achar algumas pessoas estúpidas.

none disse...

André, Alexandre,

Valeu pela visita e comentários.

André,

Creio que não. Não autorizar transfusão é um risco altíssimo de morte.

Alexandre,

Assim como as pessoas têm o direito de criticá-lo por criticar. Etc. Não é uma decisão estúpida. A menos que haja um estudo mostrando que downianos prefeririam nunca ter nascido.

[]s,

Roberto Takata