quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Não é sobre Cachinhos Dourados

Este é meu segundo conto de ficção pretensamente científica (cientificóide mais exatamente). (Terceiro se contarmos um sobre zumbis - não exatamente sobre zumbis - como FC.)
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Huwasuyisha, o pequeno anão cientista, começou a gargalhar. A princípio ninguém entendeu. Huwa explicou o que acabara de ouvir. Então fez-se um silêncio constrangedor. Não que se tivesse dito alguma coisa absurda, houvesse se quebrado alguma norma social. Apenas que os companheiros leigos não conseguiam alcançar o raciocínio de Huwa. Ele, então, começou a explicar o que era tão engraçado naqueles zunidos que ele captara.

O parágrafo acima, na verdade, contém algumas incorreções – um tanto inevitáveis pela necessidade de aproximações conceituais. Do mesmo modo que um “grande pássaro metálico” é uma aproximação do conceito de avião.

'Huwasuyisha' é uma aproximação fonética de algo que nem mesmo é originalmente fonético. Seu nome é dado em termos de ondas gravitacionais, não sonoras. O sistema Ligo seria capaz de detectá-lo – se estivesse algumas dezenas de Gigaparsecs mais próximo – quando emitido por um dos seres a cuja 'espécie' (ou 'tribo') pertence Huwa, os guranihaya (ou garanihaya). A frequência da oscilação interferométrica convertida em som resultaria em uma 'fala' gutural. Mas ainda assim o som resultante seria tão equivalente a 'Huwasuyisha' quanto 'bem-te-vi' corresponde de fato ao canto emitido pela ave. O mesmo para a denominação 'guranihaya'.

O anão é por comparação. Como uma estrela anã é gigantesca em comparação a planetas considerados gigantes. Huwa tem bem algumas centenas de anos-luz em sua dimensão mais longa. Um décimo de seus companheiros nas cercanias. Mas é uma estimativa grosseira. É difícil estabelecer os limites de um indivíduo guranihaya.

É mais incerto que se possa considerar o conjunto de ondas gravitacionais emitidas de 'gargalhadas'. Mas elas são produzidas de modo consistentemente associado a situações de quebras de expectativas. Poderiam, de outro modo, ser interpretadas como 'suspiros de decepção', no entanto.

'Ouvir' certamente não é algo a ser tomado literalmente para percepção e decodificação de sinais constituídos por ondas gravitacionais. 'Silêncio' não é um termo tão ruim para se referir a um período de cessação de sinais comunicativos, mesmo considerando-se o 'ruído' de fundo. O 'constrangedor' é certamente uma licença poética; porém, certamente nada inadequado se compararmos com o uso alternativo de termos como 'de apoio'. Do mesmo modo que 'ouvir', 'dizer' é uma analogia para se referir a uma emissão de sinais: o que os vaga-lumes 'dizem' com sua luz?

'Norma social' é um palpite arriscado; é possível se referir a um conjunto de seres intercomunicantes de algum nível de inteligência de sociedade? Os humanos aceitam falar em 'sociedade das formigas', mesmo considerando-se a inteligência limitada exibida por seus constituintes, principalmente pelas atividades realizadas de modo coordenado garantindo o funcionamento do conjunto. É difícil detectar atividades coordenadas entre os guranihaya. Não há algo que se possa considerar como construção, menos ainda como produto de ações coletivas. Porém, aparentemente há uma cultura desenvolvida. E mesmo uma ciência – o conjunto de conhecimentos acerca do mundo natural e os processos de obter tais conhecimentos. Ainda que não partilhada nem apreciada por todos os indivíduos que se identificam como guranihaya.

Os guranihaya são criaturas – novamente, usando criatura por aproximação conceitual – constituídas não pela matéria comum, mas por uma matéria ainda mais comum (em termos de abundância no universo): a matéria escura. Em princípio a matéria escura interage apenas gravitacionalmente; não forma átomos, pela falta de interação elétrica. Bem, ao menos não átomos como conhecemos. Ocorre que, resultantes do decaimento de oscilons primordiais de inflatons, a própria matéria escura herdou o caráter oscilatório. Oscilons em fases opostas se atraem de modo similar a que partículas de matérias de cargas elétricas opostas se atraem; enquanto oscilons em fases sincrônicas se repelem. 'Átomos' de matéria escura formam 'moléculas' de matéria escura. Níveis maiores de oscilação colocam conjuntos inteiros de 'moléculas' – de bilhões e bilhões e bilhões e bilhões... de mols de 'moléculas' – em ressonância (sem comprometer as oscilações individuais). Massas de tamanho aproximado de uma bola de basquete formam unidades de ressonância. As unidades de ressonância interagem entre si formando sistemas FPUT em vez de termalizarem em sistemas ergódicos e vibrarem em uma mesma frequência. Não está certo se sólitons ou fónons atuam como transportadores de energia ao longo do sistema. Um ou outro serve como base para o processamento básico de sinais no interior dos guranihaya – embora o termo 'interior' seja mal aplicado por ser difícil, como dito, traçar os limites externos de um guranihaya. Um modo de diferenciar um indivíduo de outro é pela frequência mais baixa de oscilação – que envolve todo o sistema. Em teoria. Na prática, há variação dessa frequência, e é difícil de saber se uma dada unidade de ressonância (ou mesmo unidades maiores) faz ou não parte de um indivíduo. Mas isso é um problema de escala – visto a milhões de anos-luz de distância, cada indivíduo parece mesmo um indivíduo e estável (isso se fosse possível vê-los). Humanos também – vistos bem de perto, beeeeem de perto, é difícil delimitar um indivíduo: átomos e moléculas chegam e saem o tempo todo.

Vivem no interior dos vazios cósmicos. Esses seres são ilhas de concentração de matéria escura em um espaço particularmente rarefeito de matéria. Com integridade mantida basicamente pela força gravitacional de seus componentes, um garanihaya, sem forças elétricas a manterem seus 'átomos' reunidos, seria destroçado se se aproximasse demais dos filamentos galáticos.

A vida reprodutiva de Huwa e seus amigos – talvez seja forçar a amizade falar em 'amigos' –, bem grosso modo, é um canhão deslizante em um jogo da vida de John Conway. Com a diferença de que as 'naves espaciais' (ou sementes) lançadas pelo canhão crescem com o tempo – com muito, muito tempo –, gerando novos canhões. Não apenas o ritmo de crescimento dos garanihaya é algo extremamente lento, mas tudo o que diz respeito a eles. Um sinal para atravessar de uma extremidade a outra de um indivíduo – sempre levando em conta as dificuldades inerentes de determinar as extremidades e mesmo os indivíduos – leva centenas de milhares de anos. Mas, naturalmente, um garanihaya não interpreta esse ritmo como lento, é um piscar de olhos para eles – ainda que “piscar de olhos” seja uma expressão que jamais lhes faria sentido. O canhão pode ter consequências não apenas de gerar novos guranihayas, mas também de eliminar alguns. Ocasionalmente, a mira pode ser defeituosa e a nave "chocar-se" contra alguém nas vizinhanças. ("Choque" entre aspas porque os guranihayas não são exatamente constituídos de matéria mutuamente impenetráveis, outra consequência de não serem formados por átomos resultantes de interações elétricas. As forças de atração e repulsão entre solitons não impedem que partículas de matéria escura atravessem uma massa de matéria escura.) A nave pode perturbar as configurações ressonantes no interior de um indivíduo de modo disruptivo ou, com seu crescimento, canibalizar as unidades de ressonância. Em raras ocasiões, pode crescer compartilhando as unidades com seu hospedeiro, sem lhe causar maiores danos.

Ondas gravitacionais são a vida e a morte dos garanihaya. São seu modo de comunicação, e seu alimento – coletando as ondas gravitacionais que viajam pelo espaço recolhem a energia que os faz funcionarem. Mas a exposição a certas frequências de ondas desestabiliza todo o sistema, destruindo-os. Outras frequências podem modificá-los, alterando mesmo o funcionamento dos canhões e, o que mais importa, das naves, gerando indivíduos diferentes: em tamanho, por exemplo.

O que Huwasuyisha havia recolhido naquele dia – e dia é um conceito que definitivamente não faz sentido entre os garanihaya – era um sinal extremamente compacto – do ponto de vista dos garanihaya – emitido bilhões de anos atrás codificado na forma de ondas gravitacionais. Alguém havia achado uma boa ideia lançar ao espaço mensagens de saudações e outras informações assim apenas porque podia – e talvez com algum otimismo de que alguém respondesse a tempo, e com bom grau de irresponsabilidade por confiar na sorte de que esse alguém fosse amistoso. Levou um certo tempo – algumas dezenas de milhões de anos – para Huwa decodificá-la em seus próprios termos. Instruções sobre correspondências binárias e outros truques matemáticos certamente ajudaram a encontrar regularidade suficiente para ser possível a decifração e irregularidade suficiente para tornar a mensagem interessante. A parte engraçada dizia respeito ao conceito de 'zona de habitabilidade'. Era algo que alguns indivíduos garanihaya haviam desenvolvido com sua ciência. Mas o entendimento do que seria uma zona habitável para as criaturas que lançaram a mensagem ao espaço era tão díspar que só restava a Huwa rir desbragadamente segurando a barriga com as duas mãos – exceto que, como sugerido anteriormente, 'rir' seja um conceito arriscado e definitivamente 'barriga' e 'mãos' não se aplicassem aos garanihaya.

Os amigos de Huwa escutaram – modo de dizer – com atenção a Huwa e sua explicação. Decidiram rir, então, para recompensá-lo por seu esforço e não magoar seus sentimentos (se 'mágoa' e 'sentimentos' são expressões que cabem à situação), disfarçando que ainda não compreendiam o que significavam 'calor', 'luz', 'água', 'líquida'... Por 'sol' e 'planeta' parecia ser o equivalente a algo que deveria estar nas regiões distantes, bem distantes, onde a intensa gravidade tornava tudo mortal.
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Um comentário:

ita disse...

ótima criatividade. Gostei do desenvolvimento do conto, unindo um certo mistério.
Mostra bem, ao extremo, as dificuldades da comunicação entre culturas diferentes.