sábado, 16 de abril de 2011

Desventuras em BH

Pedrinho não chega ser um safo, mas com um mapa na mão sabe se virar em qualquer cidade. Ao menos achava isso até passar por beagá.

Notou que é uma boa cidade, mas que tem lá suas armadilhas contra os incautos e novatos.

Se em guerras de conquistas recentes, moradores das cidades removiam placas indicativas a fim de desnortear os invasores, algo não muito menos radical ocorre em alguns recantos da capital mineira.

Há estranhas ruas que serpenteiam e coleiam como rios meandrosos de planícies aluviais. Literalmente, ruas que dobram esquinas. A falta de placas indicadoras de ruas ocorre em alguns trechos, enquanto outros são mais bem sinalizados.

Aquela rua era lhe ainda mais perturbadora. Não apenas se dobrava sobre si mesma, como, vira no mapa, ela era até mesmo descontínua: desaparecia em uma extremidade e ressurgia mais além - em outra direção - como rios que caem em sumidouros e reemergem mais adiante. As placas ao menos indicavam-lhe o nome da labiríntica via; mas a armadilha mesmo era a numeração.

Acostumara-se a alguma ordem da numeração das ruas - pares a um lado, ímpares a outro, os números sempre descrentes em um dado sentido da rua (em geral no sentido a se afastar do centro histórico da cidade dada). Em muitas cidades, a numeração obedece até mesma a uma metragem fixa: a casa 500 estaria a mais ou menos 500 m do início da rua, e estaria a mais ou menos 300 metros da casa 800.

Não, não naquela rua peculiar.

- Número 612, número 612 - seguia Pedrinho relembrando em voz baixa o local em que deveria estar dali a 10 minutos. ("Beleza, vou chegar no horário.")

Vira logo de cara o número 580. "Que bom, estou perto". Não havia mais numeração do lado par, mas no ímpar seguia: 597 - estava no sentido correto, pois não?

Alguns metros mais e... número 32. Não, não era possível... Ou era? Mais adiante ainda: número 48.

Como séries quadrinísticas em crise, a numeração havia recomeçado. Como em bibliotecas públicas, justamente a edição do periódico que se queria estava a faltar.

- Já sei - foi o eureca de Pedrinho, quase a acordar um mendigo que se espraiava na calçada oposta sob um aconchegante sol da manhã de sábado.

A ideia lhe pareceu brilhante. Lá estava o 580, mais à frente, do outro lado da rua, o 597. Uma simples extrapolação linear lhe daria alguma indicação do 612.

Parou em frente a um prédio que estava onde a matemática lhe indicava.

- Sala 601. - Bem ali, no interfone: 101, 201, 301, 401, 501, 601, 701, 801... Apertou o 601.
- Pois não?
- Queria falar com a Tereza.
Bzzzz. A trava elétrica se abre. Yes, matemática for the win. Já pensava em sugerir um post a um amigo blogueiro: "Como a matemática me ajudou a achar a Batcaverna".

Empurra a porta, fecha-a e segue. A porta do hall do prédio: "Verifique se a porta está trancada". Ou algum morador não observara o alerta do adesivo ou o mesmo sinal que lhe abrira a porta da entrada lhe destravara a segunda porta.

Sobe ao elevador. 6o andar. A luz não se acende, nem a porta se fecha. Sai. Subiria de escada?

Chega uma jovem.

- Bom dia!
- Bom dia!

Aperta-lhe o botão do elevador e estende o braço para manter a porta aberta para a entrada da jovem. Ela aperta o botão 6. Maravilha, mesmo andar. Ambos descem no sexto.

Ele se dirige à porta 601. A jovem estranha.

- Você está procurando quem?
- Tereza.
- Tereza?
- Sim, Tereza Matsumoto.

"Ele está querendo assaltar o prédio", pensa a jovem. Junta-se uma senhora saída não se sabe de onde.

- Pois não?
- Estou procurando Tereza Matsumoto.
- Hmmm, eu sou nova no prédio então não sei. Vá ao oitavo andar pra falar com o síndico. Ele deve saber.

Pedrinho sobe as escadas. Para em frente ao 801.

"Aperto a campainha ou não?". Estava na cara que era o prédio errado. Pareceu-lhe mais simples descer e ir embora para retornar a sua busca.

"Burro, deveria ter anotado o celular da Tereza." Inês era morta.

Sai do hall, bate a porta. Dirige-se à saída e... Não, não tem botão de abertura. A porta de vidro blindado o impede de esticar o braço e alcançar o interfone. O muro não é alto, mas dotado de cerca elétrica. Quase ouviu um: "Let's the game begin".

Uma moçada sentada na calçada... "Não, seria muita pagação de mico."

Decide esperar algum morador descer ou chegar. Não chega nenhum em minutos. Sábado de manhã. Manhã quase morta. O sol agradável começa a lhe esquentar o cocuruto. Era o Neo preso em uma estação de trem entre a realidade e a Matrix. Um peixe em um aquário a ver solitárias almas passarem pela rua.

Talvez pedir pro pessoal à calçada seja o menor dos males... Já tinham indo embora.

De repente descobrira o valor do celular. Não, não ligaria para o único conhecido na cidade de quem tinha o número. Polícia? Hmm, talvez em último caso. Seria esquisito narrar a história. Poderia pegar algum policial de ovo mais virado.

Um colante na porta. Do serviço de chaveiro responsável pelo sistema de travas do prédio. Chama pelo número fixo. Claro que titio Murphy não deixaria tão barato: "Este número não existe". Ok, valeria a pena gastar mais dos créditos poucos para ligar para o número do celular que havia ao lado.

Sucesso. O chaveiro atende. Ele acha que é um morador que ficou preso sem as chaves. Não seria prático desmenti-lo agora. Estava em outro atendimento, retornaria a ligação logo mais. (Sim, tinha captado o número do celular de Pedrinho.) Afora um leve incômodo da insolação - que poderia ser aliviada pela pouca sombra projetada pelo muro - era uma situação suportável, ademais não havia escolha. Esperou.

Toca o celular dali a uns dez minutos (a cobrar, claro - não importa, e perfeitamente compreensível). O chaveiro pedia a indicação do local. Não havia número no prédio, Pedrinho não conhecia aquele local. Como orientar-lhe a navegação? Conseguiu ler a placa do outro lado da rua: "Rua X". "Esquina da rua Y com a rua X, edifício ABC."

Mais uns cinco minutos e toca de novo o celular. Não conseguia encontrar. Descreve os prédios em volta: "Em frente em um azulejado de azul e branco. Com placa de 'Aluga-se'". "Não, não estou em um prédio de vidro esfumaçado. Ele tem terraços de granito e é azulejado de branco. Não, não tem guarita." (Salvo algum problema de regionalismos, de resto parecia haver boa comunicação. Agradeceu ao Marquês de Pombal e aos imperadores - e à TV Globo - a relativa homogeneização da lingua nacional no vasto território brasileiro.)

Quinze minutos depois, um homem de boné vermelho sobe a rua X, olhando as coisas com atenção. Ele se aproxima apontando o dedo com um 'arrá!": "É você?". Era.

O chaveiro abre sua maleta e se prepara para destrancar. Nesse momento, aproximadamente uma hora depois do início da prisão insólita, um morador se aproxima para entrar. A porta se abre. A tela fica branca e sobem os créditos finais. Não, não era um jogo de escapada. Mas era.

Pedrinho hesita. Deveria esclarecer o síndico? Não, seria confuso demais. Criaria desconfiança desnecessária. Paga ao chaveiro pelo tempo tomado. Este retribui dando-lhe uma carona até o local certo - mas toma voltas e mais voltas para desvendar aquela rua. O chaveiro atendia nas vizinhanças, mas ele mesmo se perdia por lá.

Finalmente, Rua Y, 612. Desce, agradece ao chaveiro e lhe deseja um bom dia de trabalho. Leva a mão ao bolso. Seu celular havia caído no carro. Corre a gritar. Tarde demais. O chaveiro some em uma das curvas daquele labirinto.

"Só falta não ser aqui".

Murphy estava condescendente. Era. (E mais tarde conseguiu falar com o chaveiro e reaver o celular perdido.)

Pedrinho acha que alguma hora verão as fitas de segurança, os moradores do prédio comentarão e acharão que houve invasão do condomínio e uma tentativa frustrada de roubo. O chaveiro será chamado e ele dará o número do celular. Pedrinho não sabe se isso será um bom filme de comédia, mas acha que poderá ser um bom filme educativo sobre sistemas numéricos.

2 comentários:

galak disse...

Nó no cérebro.

none disse...

Ainda bem que se pode rir disso, Ju.

[]s,

Roberto Takata