terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Zika e danos neurológicos: na ausência de indícios, especular não é a solução

Artigo no Observatório da Imprensa assinado pelo jornalista João Ricardo Zini - que não conheço e de cujas referências não encontro no Google traço além desse próprio artigo - questiona a validade das evidências científicas - ou, antes, o status ontológico e deontológico da "ausência de evidências científicas".

"Mas a afirmação de que 'não há evidência científica' é um velho clichê que, em certas situações, mais inquieta do que explica. Quando vidas podem ser comprometidas, a falta de demonstração cartesiana dos riscos não significa que eles não existam."

Não é exatamente uma questão de cartesianismo. A qualificação 'científica' (que o autor quer passar por 'cartesiana' - que, não com rara frequência, é usada como um qualificativo negativo) quer dizer somente que se seguem critérios de objetividade, verificabilidade, reprodutibilidade - que buscam minimizar efeitos da mera opinião, das subjetividades, da má fé.

Porém a questão vai um pouco além de não se ter indícios. O sistema de vigilância sanitária no Brasil é relativamente bem desenvolvido.

Casos de quadros sintomatológicos tão importantes como problemas neurológicos graves e, ainda mais, como o coma são relativamente fáceis de se rastrear a partir de registros hospitalares. É esse sistema que permitiu detectar o surto de microcefalia, por exemplo.

Ou seja, nesse caso, a ausência de registro é mais eloquente do que uma situação em que não há registro simplesmente porque nenhuma busca foi feita. É uma ausência de registro que atua com um indicador da ausência do evento. Como a falta de marcação no ponto do funcionário é um indicador de que o funcionário faltou - porque o default é que, na presença, haja a marcação.

(Talvez valha lembrar a piada do capitão do navio que, ao flagrar o imediato bêbado registrou no diário de bordo: "Hoje o imediato estava embriagado". No dia seguinte, o imediato sabendo do que se sucedera resolveu também registrar: "Hoje o capitão estava sóbrio". Peço perdão ao solitário leitor ou solitária leitora do blogue por explicar a piada. Mas a ausência de registro em outros dias do estado alcoolizado do imediato *é* um indício de que ele *não* estava alcoolizado nesses outros dias. Enquanto que a ausência de registro de sobriedade do capitão nos demais dias, *não* é um indício de que o capitão estivesse borracho; porque *não* é objetivo das bitácoras registrar estados de normalidade, mas de excepcionalidade.)

Ou seja, embora a velha máxima saganiana de que "ausência de evidência não é evidência da ausência" continue válida; aqui trata-se de efetivamente de "evidência da ausência". Não um indício absoluto, claro. Tais registros não são perfeitos e poderia haver casos em um nível baixo o suficiente para não se destacar nos números de agravos neurológicos que são normalmente esperados por outras causas.

No entanto, isso seria um indicativo de que, se ocorressem tais problemas associados à infecção por vírus zika, seriam suficientemente raros. E os pesquisadores e autoridades de saúde foram suficientemente conscienciosos para dizer que, sim, poderiam eventualmente ocorrer tais casos.

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Diz a nota da Fiocruz:
"É importante também esclarecer que, assim como outros vírus, a exemplo de varicela, enterovírus e herpes, o zika poderia causar, em pequeno percentual, complicações clínicas e neurológicas em adultos e crianças, sem distinção de idade."
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Mas o "não há evidências científicas" é mais do que declaração protocolar ou "clichê" como diz o articulista. Trata-se de um claro *desmentido* de que os casos mencionados nos boatos sejam reais.

Suponhamos, no entanto, que não houvesse um sistema de registro e vigilância de saúde no Brasil - como não há em vários países. Ou seja, que fosse o caso de "ausência de evidência" e não de "evidência de ausência". Oras, é o caso justamente de suspender o juízo de fato.

"Há apenas alguns meses, provavelmente muitos doutores achariam delírio dizer que o aedes aegypti tem alguma relação com microcefalia em recém-nascidos. Como sempre, muita gente teve de morrer para que o conhecimento científico reconhecesse tais evidências."

Bobajada. Até agora há um único óbito atribuível ao ZIKV. A microcefalia não é, em si, letal, ainda que uma má formação de gravidade. E, mais importante, a relação entre a microcefalia e infecção por ZIKV não foi fruto de um boato, mas de, primeiro, uma detecção pelo sistema de vigilância de saúde de um surto de casos de microcefalia e de uma epidemia de febre zika; e depois de inferências a partir de coincidências ecológicas de tempo e espaço entre as duas enfermidades - e, então, de uma busca sistemática pela presença de ZIKV nos pacientes com microcefalia (e seguirá com experimentos controlados para a determinação da natureza dessa relação), ao mesmo tempo em que se descartava a ocorrência de outras causas possíveis conhecidas: sífilis, citomegalovírus, rubéola, etc.

Não foi um caso de denegação peremptória de relação para uma posterior admissão a contragosto frente a indícios esfregados na cara e que não conseguem mais negar.

Já em julho deste ano, tão logo o aumento de casos de microcefalia começou a emergir, a suspeita da relação com o ZIKV foi levantada.

"Tão ou mais importante talvez seja discutir possíveis riscos e, sobretudo, os casos que possam sugerir esta ou aquela hipótese, na medida em que isso seja relevante para antecipar medidas preventivas."

Primeiro que falar em risco na ausência de indícios é puro exercício de especulação. Pode-se alegar o princípio da precaução; nesse caso, porém, está a se falar não de riscos, mas de incerteza e, mais do que isso, é preciso ter uma boa margem para que o dano causado não seja maior do que o potencialmente evitado: por exemplos, causar pânico, levar à automedicação, fomentar a exploração da boa fé... Sem uma boa garantia a esse respeito, estaremos no terreno irresponsável do sensacionalismo.

Quanto a discutir "casos que possam sugerir esta ou aquela hipótese", se existem tais casos, então existem indícios científicos. O que um jornalista pode (e deve) fazer é apresentá-los em contra-argumentação à negação das autoridades. Mas não é a negação de que a ausência de indícios não deve servir de desculpas para a especulação, é tão somente (e 'tão somente' é tão somente uma expressão - já que seria algo de boa monta) a negação da alegação de que não há indícios científicos.

E "antecipar medidas preventivas" é ocioso, porque a medida preventiva seria a mesma: combater o mosquito transmissor. (Sério, digamos que se descubra mesmo que o ZIKV possa levar os indivíduos ao coma - sempre lembrando que é algo que não é impossível de vir a ocorrer - que medida preventiva efetiva diferente haveria de ser tomada que não a de evitar a infecção pelo ZIKV?)

Upideite(31/dez/2015): Vamos fazer uma analogia. Digamos que corre boato pelo whatsapp de que um famoso artista cometeu um grave crime contra a vida. A polícia diz que não há nenhum registro de passagem dele, nem queixa contra ele. Sabemos que a polícia já errou no passado. Seria o caso de ficar discutindo na imprensa as consequências para a vítima, para a carreira do artista e do futuro do staff que trabalha com ele, a possibilidade de se prendê-lo preventivamente? Afinal, se for mesmo criminoso, outras pessoas poderão ser atacadas. Veja bem, tudo isso só com base no fato de que rolou um boato - cuja origem desconhecemos - em uma rede social, nada mais: nenhuma vítima nomeada, nenhum detalhe sobre o crime imputado como data e local, nenhuma testemunha a confirmar.

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