Ser um cético - no sentido de ser alguém que tenha uma visão baseada na dúvida sistemática das alegações apresentadas (geralmente vinculada a um racionalismo - valorização e uso de processos racionais de análise, em particular das ciências), isto é, um adepto do ceticismo científico - é algo que demanda trabalho.
De um lado, exige bastante cultura: é preciso aprender as bases da lógica (pelo menos a aristotélica), da epistemologia (o que fundamenta o conhecimento científico, como sabemos o que sabemos), de psicologia (quais são os vieses cognitivos que nos afetam?), ter um razoável domínio do conhecimento científico (uma boa noção da cosmologia, física, química, biologia), um bom conhecimento a respeito das pseudociências (quais são as alegações principais e por que estão furadas), uma boa pincelada a respeito da história das religiões... E são conhecimentos que precisam ser constantemente atualizados - não apenas o conhecimento científico muda, como novas formas de pseudociências surgem a todo momento. Fácil, fácil daria para montar um curso de graduação.
De outro, mesmo se você não for um ativista cético, vai se meter em intermináveis discussões: afinal, ser cético é ser minoria e muitos dos partidários de visões contrárias são bastante empenhados na evangelização e catequisação, isto é, as oportunidades de confrontação são inúmeras.É muita energia mental investida (ou desperdiçada) e eventuais ameaças físicas não estão fora de cogitação. Se você for um cético low profile, ainda assim vai gastar energias *evitando* debates.
Em mais um lado (quem disse que há apenas dois lados sempre?), ocorre que ser cético não importa um pacote completo. Há uma série de outros elementos de visões de mundo que não vêm junto com a cultura cética: visões políticas, por exemplo. E isso, bem, isso vai potencializar estranhamentos *entre* os céticos.
Vida dura. Mas há grupos - que de resto não formam necessariamente um conjunto homogêneo - que acabam de certo modo adotando uma postura automática de ceticismo. Deixe-me pôr isso em uma forma de (pseudo)paradoxo: apesar da cultura cética exigir esforço mental, alguns céticos usam o ceticismo como uma espécie de muleta intelectual.
Algumas alegações são rapidamente dispensadas como bobagens sem fundamento apenas porque o cético consegue pensar em uma contra-argumentação razoável. Ok, como primeira abordagem não é má - há muitas bobagens por aí, e se não resistem a um primeiro exame superficial, não precisamos insistir muito. Ocorre que essa atitude, em não poucos casos, persiste mesmo quando uma contra-contra-argumentação igualmente razoável é apresentada. A coisa piora quando *dados* são apresentados em apoio à visão com que o cético não concorda. Todo o mecanismo do ceticismo de filtro de bobagens é colocado no modo superpowernitro e o cético passa a racionalizar meios para interpretar os dados de modo que mais bem se encaixem em sua visão de mundo. Mais e mais dados são apresentados de modo a refutar os argumentos do cético. Mas o cético não se convence. E pior, ele não irá apresentar novos dados que estejam de acordo com seu ponto de vista, e sim, no máximo, novas interpretações - tal cético poderá até mudar de opinião em relação ao seu ponto inicial, no entanto sem convergir com a visão que pretende combater de todo modo.
Ele terá criado um pequeno dragão invisível em sua garagem. Mas como foi um dragão geneticamente engenheirado a partir de um lagarto monitor de Komodo e usando um manto de invisibilidade com tecnologia de fibra óptica - qual seja, dentro das possibilidades do que ele conhece a respeito de ciências - tal dragão não lhe parecerá um anátema.
Essa descrição serve (parcialmente) para os autodenominados céticos climáticos (apenas parcialmente porque nem todos realmente adotam a cultura cética, sendo mais bem descritos como negacionistas climáticos), mas não apenas a eles. Enfrentei uma situação dessas certa vez quando, em uma lista de ceticismo e racionalismo, na defesa de cotas raciais usei as diferenças de rendimento entre negros e brancos como indício da discriminação racial. Uma série de argumentos muito similares a que abordei neste blogue sobre os rendimentos das mulheres foram levantados. A cada fator novo que levantavam (região, escolaridade, tipo de emprego...), eu mostrava uma pesquisa que mostrava a persistência de diferenças. Sinceramente não sei se convenci alguém. O argumento final que usaram é que sempre se pode pensar em um fator não levado em consideração antes. Isso é rigorosamente verdadeiro. Mas, ironia, defensores da visão popperiana que eram, queriam uma espécie de prova absoluta da existência de discriminação racial no Brasil. Não enxergavam que cada fator derrubado era um teste de hipótese, qual seja, de que há discriminação racial no que se refere à renda, que a corroborava. Conseguiam usar Popper para atacar bobagens como astromancia, homeopatia e quejandos; mas falhavam em aplicá-lo em suas próprias hipóteses. Alguns estiveram por bem pouco de insinuar que a persistência das diferenças significava uma inferioridade intelectual/biológica dos negros. (Não devo ser injusto em sugerir que todos da referida lista tinham esse posicionamento impermeável a dados contrários. Não obstante, dentre os que se manifestaram 'céticos' à hipótese desde o início, não me lembro de nenhum ter mudado de posição. Os que admitiam a ocorrência de discriminação o fizeram de cara.)
Já que construí o argumento na forma de um paradoxo, deixe-me também encaixar um segundo paradoxo: tais céticos terão gastado muito mais energia em defesa de sua preguiça inicial.
Não sei se é apropriado chamar essa subcultura de hiperceticismo ou ultraceticismo - em analogia à hipercorreção ou ultracorreção.
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6 comentários:
Concordo, mas acho que a situação torna-se realmente complicada quando as questões debatidas chegam a ameaçar convicções políticas e econômicas muito arraigadas. A questão das cotas e da discriminação racial e de gênero no Brasil é um ótimo exemplo.
Tive experiências parecidas com a sua ao discutir racismo e cotas no Brasil, e em, pelo menos, uma ocasião uma pessoa, pelo qual tenho grande carinho e respeito intelectual, chegou (após minha argumentação de que as diferenças de performance e nos indicadores sociais refletiam o efeito do preconceito sobre essas pessoas) a afirmar que essas pessoas teriam realmente algum tipo de inferioridade intrínseca, para logo depois negar e afirmar que estava 'apenas brincando'. Isso me deixou bastante decepcionado. Entendo que isso se deva, em parte, ao fato de que admitir este nível de discriminação em nossa sociedade passa por reconhecer que, como membro da 'maioria', se é, pelo menos, conivente com o sistema de preconceito e, portanto, responsável por sua manutenção, estando realmente se beneficiando de um privilégio.
Grande abraço,
Ahh, antes que eu me esqueça. Acho que o termo deveria ser 'cabeça-dura' mesmo.:)
[ ]s
Salve Véras,
Valeu pela visita e comentários.
"ameaçar convicções políticas e econômicas muito arraigadas"<=Sim, eu até desenvolvi uma equação q relaciona o grau de modificação de convicções preexistentes, a profundidade de tais convicções (o qto elas são essenciais para a visão de mundo da pessoa) e a intensidade dos indícios necessários para modificar essas convicções. (Nunca cheguei a testar a equação por falta de um modo adequado para se medir quantitativamente as variáveis.)
Sim, é uma forma de esclerocefalia, mas um subtipo especial. rere.
[]s,
Roberto Takata
Excelente artigo, Takata.
Posso estar enganado, mas a impressão que tenho é que o ceticismo científico está sendo instrumentalizado por criptorreligiões cientificistas e seu racionalismo ingênuo. Como, por exemplo, o ultraliberalismo econômico "fisiocrático". Seu sectarismo se deve a um medo irracional do irracional.
Abs.,
Manuel Bulcão
Salve, Bulcão,
Não sei se chega a haver uma instrumentalização. Há um grupo q realmente tem uma visão ultraliberal irredutível. Mas há um grupo q vai na ponta oposta: marxista de carteirinha q não aceita dados contrários.
[]s,
Roberto Takata
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