Em seu blogue, Carlos Orsi defende a tese do "naturalismo como conclusão lógica da ciência".
Herton Escobar, do Estadão, relata um estudo feito por um grupo do Instituto de Biociências comparando citações religiosas em dissertações e teses defendidas por pós-graduando de Ciências Biológicas e de Medicina Veterinária. O coordenador da pesquisa, o Prof. Dr. Antonio Carlos Marques comenta a respeito do índice de 8% dos trabalhos de alunos de Biologia: "Por um lado, é uma porcentagem baixa, comparada ao nível de religiosidade da sociedade como um todo. Por outro, é um número alto, se pensarmos que estes alunos são treinados para pesquisar e ensinar disciplinas que têm a evolução biológica como princípio fundamental". Na mesma linha de Dawkins, Marques condiciona a aceitação da realidade da evolução biológica ao ateísmo (ou à ateidade). E mais, a respeito da presença das citações: "É um antagonismo curioso, ver duas visões contraditórias incorporadas no mesmo documento". Ou seja, para o pesquisador ciência e religião são incompatíveis.
Discordo.
Alhures desenvolvi a argumentação que reproduzo abaixo.
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"Podemos assumir que nosso mundo se ordena a partir de leis naturais. E moldamos a nossa visão de como o mundo funciona sob a perspectiva dessas leis. Podemos a todo instante reformular o modo como expressamos essas leis, mas não iremos questionar se tais leis existem.
É a hipótese da existência de leis naturais que torna possível todo o processo posterior de estudo do mundo sob o ponto de vista cientifico. (Existem outras visões complementares, como a de que o mundo é inteligível, que ele não é autocontraditório, etc.)
Mas quando uma previsão falha, isto é, uma teoria falha no teste de hipótese, não dizemos: 'isso prova que a lei não existe'. E sim: 'isso faz com que tenhamos que reformular a lei'. E tocamos o barco. (E não imaginaremos que a lei mudou entre um teste e outro, e sim que a formulação anterior deveria estar errada: a lei era a mesma desde sempre, apenas não a compreendíamos bem antes.) Já houve casos em que dados consistentes não poderiam ser explicados por nenhum processo natural conhecido. O que fizeram? Criaram uma nova lei. As forças que mantêm os núcleons unidos no interior do átomo não poderiam ser explicadas em termos das então conhecidas forças gravitacional e eletromagnética – inventaram a força nuclear forte. (A invenção em si não traz nenhum problema, é uma solução perfeitamente aceitável, apenas é preciso que se possa testar essa hipótese.)
Por outro lado, uma das alternativas é assumir que o mundo se ordena a partir de uma entidade metafísica que, na falta de um nome melhor, podemos chamar de deus. E essa a ideia da existência de uma divindade? Ela poderia ser a substituta da ideia da existência de leis naturais? No meu entender, sim. O custo seria que não teremos como sustentar uma visão eterna de um deus – teríamos que estar dispostos a reformular constantemente a ideia que fazemos a respeito dela – do mesmo modo como fazemos com as leis naturais. Provavelmente um religioso do tipo mais comum teria certa dificuldade em operar desse modo, mas é uma alternativa, tanto quanto podemos perceber, viável de se encarar o mundo.
Em resumo, duas grandes concepções de mundo possíveis:
A visão naturalista:
1 - existem leis naturais;
2 - as leis naturais possuem estas características;
3 - essas características determinam estas consequências.
Podemos verificar as consequências por meio empírico. Se os resultados batem com as previsões, mantemos o esquema. Se os resultados são diferentes, alteramos a premissa 2 e não a premissa 1.
A visão espiritualista:
A - existe deus (ou outras divindades ou uma força transcendente);
B - deus possui estas características;
C - essas características determinam estas consequências
E a pessoa pode mudar B, sem abandonar A, caso C não se confirme.
É uma situação análoga à visão naturalista.
A grande questão é que muitos adeptos da visão espiritualista se aferram tanto a A quanto a B. E nisso acaba-se por gerar necessariamente um conflito com o conhecimento científico. Se estivessem dispostos a mudar B sempre que necessário, talvez tivessem condições de produzir alguma coisa com essa visão. Repare-se, então, que o conflito entre uma visão espiritualista e uma visão científica não reside necessariamente na hipótese da existência de uma divindade, mas sim em um dogmatismo sobre preconcepções a respeito dessa divindade. (Como nota acrescente-se que, como estamos considerando divindade aqui como uma entidade metafísica, seria possível criar visões equivalentes a partir de entidades afins como o Monstro de Espaguete Voador, o Unicórnio Invisível Cor-de-Rosa, o Porco Voador, ou até mesmo a xícara espacial de Russell, caso se trate de uma xícara metafísica: isto é, um princípio ordenador de visão de mundo.)
Também não iríamos analisar a própria existência de deus a partir dos parâmetros que analisaríamos as formulações a respeito de como seria esse deus.
Agora, uma vez que se escolha uma das alternativas, claro que a outra é analisável sob esse ângulo. Se escolhemos a via da aceitação da existência de leis naturais, podemos questionar o que significa aceitar a existência de deus, com consequências geradas a partir da aceitação da existência de leis naturais: como quebra de princípio da conservação da energia ou a própria inexistência de algo fora da natureza, a questão da complexidade, etc. [...]
De outra feita, se escolhemos a via da aceitação de uma 'vontade' superior, uma entidade metafísica divina; podemos analisar a questão da existência de leis naturais: por que elas são dessa forma e não de outro modo, como na questão do princípio antrópico forte.
Em suma, o que os fatos podem sim é eventualmente refutar uma determinada concepção de divindade, assim como refutar uma determinada concepção de leis naturais. O que os cientistas não-religiosos preferem é manter a tese de que leis naturais existem e que, se o resultado contradiz a previsão, então a concepção atual de leis naturais está errada e essa concepção precisa ser reformulada. O mesmo, em tese, poderia ocorrer com as concepções de divindades, mas por tradição isso não é feito."
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É, a meu ver, então bobagem forçar a barra e vincular as ciências ao ateísmo/ateidade. Se não por outra coisa, pelo efeito deletério que parece ter em relação à aceitação das ciências pela população em geral. (Pesquisas qualitativas e quantitativas indicam isso. Sempre que se faz a dicotomia evolução/deus, a aceitação da teoria evolutiva cai entre os pesquisados. Em painéis de testes de enquadramento de apresentação da teoria evolutiva, as Academias Nacionais de Ciências dos EUA verificaram que quando a teoria evolutiva é ensinada sem conflito aberto com a religiosidade, o público a aceita melhor.) Mas, sobretudo, porque é mentira que ciência e religião sejam necessariamente incompatíveis.
Considero que seja inevitável (ou quase) a intervenção de uma viés ideológico. Não devemos, porém, atropelar os fatos, substituindo dados consubstanciados por achismos, preencher lacunas com pensamentos volitivos (whishful thinking). Há já alguns bons dados para se guiar a discussão.
Se, com razão, os cientófilos defendem a análise factual nas questões sobre homossexualidade, aborto, células-tronco, evolução... devemos defender, então, também a análise factual na questão do embate entre a visão científica e a visão religiosa.
segunda-feira, 2 de julho de 2012
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3 comentários:
Hey, I like your blog, It is amazin!! I have a blog too :)
Deus, meio ambiente, golpes de estado. Todo assunto ficou pequeno hoje.
Salve, André,
Valeu pela visita e comentário (que só vi hoje).
Pois é, só essas bobagenzinhas de sempre. A única coisa séria q aparece no NAQ é o Timão. rere
[]s,
Roberto Takata
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