segunda-feira, 8 de outubro de 2012
Zero tom de verde - capítulo 9
Esta é uma obra de ficção. Qualquer coincidência com a realidade será mera semelhança
(Capítulo 1 aqui.) (Capítulo 8 aqui.)
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"Georgegeorgeaimeudeusvocêtábem?", Flora agarrava-se desesperadamente a George.
"Calma, Florita. Estou bem."
"Estou bem." Mesmo que ele não estivesse com o corpo todo e metade do rosto enfaixados, apenas pelo tom de voz se notaria o mau ator que era.
"Não devia ter deixado você sozinho na fazenda."
"Você tem suas aulas, Flora. E além disso era perigoso."
"E eu não sei? Você nesse estado. Tinha que ter deixado com a guarda florestal."
"Eram meus animais. Aquele monstro... Flora, você precisava ver. A fera vindo em minha direção. A arma emperrada. Os dentes rasgando minha carne..."
"Não, por favor, pare. Meu deus, quando Cássio me falou do que aconteceu, eu fiquei com tanto medo de..."
"Do quê, Flora?"
"De... de te perder."
A voz de George era agora de uma ternura real.
"Mas que bobagem. Você nunca vai me perder."
Ela sabia que era mentira.
"Flora, queria te pedir um favor. Você realizaria o desejo de um condenado?"
"Condenado? Não diga isso, por favor."
"Canta pra mim aquela música."
"Qual?"
"Você sabe. Aquela."
Um pequeno silêncio. E uma voz embargada, porém ainda afinada.
"God, I feel like hell tonight Tears of rage I cannot fight..."
George levantou levemente o canto esquerdo da boca. E, provavelmente, o direito também.
"...I'd be the last to help you understand Are you strong enough to be my man?"
Flora fechou os olhos em angústia.
"Nothing's true and nothing's right So let me be alone tonight..."
George sorria.
"...Cause you can't change the way I am Are you strong enough to be my man?"
Flora chorava.
"Lie to me I promise I'll believe Lie to me But please don't leave, don't leave"
O semblante (ao menos a parte que se fazia visível por entre as gazes e esparadrapo) de George não passava nada do sofrimento que alguém naquelas condições haveria de sentir. Ao contrário, até. Uma felicidade, melhor, um júbilo algo indecente resplandecia.
"When I've shown you that I just don't care When I'm throwing punches in the air When I'm broken down and I can't stand Would you be man enough to be my man?"
Nesse momento, Flora não conseguia mais prosseguir. O esgotamento emocional a tomava. Se alguém realmente sentia dor naquele quarto de hospital era ela.
George segurou a mão de Flora. Olho contra olho.
"Eu menti, Flora."
"O quê?
"Eu menti. Esse não é meu último desejo. Meu último desejo é... Case-se comigo, Flora."
"O quê?"
"Case-se comigo, Flora. Por favor, eu preciso de você. Eu preciso."
Há pouco mais de seis meses Flora tomaria aquele pedido não apenas como absurdo, mas até como ofensivo: aquilo para Flora meio ano mais nova seria machista por definição. Ele teria todo o tempo do mundo para pensar e planejar; ela, apenas minutos para decidir algo que afetaria profundamente sua vida. Uma situação assimétrica por gênero. Um despoderamento feminino, a mulher carregada a reboque dos desejos do homem.
As coisas, no entanto, mudaram nesse meio tempo.
"Aceito. Claro que aceito.", disse a Flora meio ano mais velha.
"Opa, então chego em boa hora.", disse, à porta, um senhor que parecia haver trocado cada fio de cabelo por quilos a mais na cintura e cuja ocupação era denunciada pela batina.
"Em hora boníssima, Padre Amaro."
Cássio chegou trazendo as alianças. Ele e duas auxiliares de enfermagem serviram de padrinhos e testemunhas das bênçãos do padre ao casal.
O médico chegou e pediu para todos, à exceção das auxiliares, aguardarem do lado de fora. Flora quis ficar, mas George achou melhor obedecer às ordens médicas.
"Flora, você sabe que na verdade eu havia vindo aqui para outro sacramento. Fui chamado para administrar a unção dos enfermos."
"Mas, padre, ele me parece bem agora."
"Não se deixe enganar pelas aparências."
Por um tempo, Flora tomaria essas palavras do Padre Amaro como um terrível vaticínio.
Barulhos vinham do quarto de George. O médico orientava com comandos ríspidos às auxiliares os procedimentos de reanimação. Cássio e o Padre Amaro contiveram Flora, que se desesperava.
O óbito foi declarado exatamente às 21h47. Cinquenta e dois minutos entre o 'sim' e a viuvez. Noventa horas e trinta e sete minutos entre o 'sim' e trinta e dois bilhões, quatrocentos e noventa e cinco milhões, seiscentos e sessenta e três mil, novecentos e dois reais e trinta e quatro centavos na conta bancária. Ou trinta e dois bilhões, quatrocentos e noventa e cinco milhões, quatrocentos e vinte e oito mil, seiscentos e noventa e cinco reais e vinte centavos, descontadas as despesas médicas. Ou vinte e cinco bilhões, novecentos e noventa e seis milhões, trezentos e trinta e quatro mil, novecentos e cinquenta e seis reais e dezesseis centavos, descontados os honorários advocatícios. Ou vinte e quatro bilhões, novecentos e cinquenta e seis milhões, quatrocentos e oitenta e nove mil, duzentos e trinta e sete reais e noventa e um centavos, descontada a alíquota incidente do Imposto de Transmissão Causa Mortis do Estado. E mais a parte do leão.
"Hush my darling, don't fear my darling The lion sleeps tonight..."
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(Capítulo 10.)
Aviso: Contém kibe.
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