quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Novelas: entre tapas e beijos

Causou buchinchobochincho a postagem de Sakamoto a respeito da violência contra a mulher sancionada em um capítulo da novela Avenida Brasil, quando um dos personagens principais - Jorge (Tufão) Araújo - esbofeteia sua esposa - Carmen Lúcia (Carminha) Moreira de Araújo - ao descobrir sua traição com Maxwell (Max) Oliveira - cunhado de Tufão e comparsa de Carminha nas armações para tomar dinheiro do ex-jogador de futebol.

A reação do Sakamoto foi previsível, eu mesmo tuitei na hora: "Maria da Penha no Tufão!", meio na brincadeira, mas que, sim, se fosse na vida real, haveria de ser aplicada a lei que pune violência contra a mulher**.

Traição e roubo não justificam o uso de violência física contra alguém mais fraco. (Claro que Carminha deveria também ser devidamente processada pelas falcatruas: falsidade ideológica, desvio de verbas - e crimes mais graves: abandono de incapaz - não sei se já prescreveu -, tentativa de homicídio contra Max - mas isso, acho, é direito privado e dependeria de representação do Max contra Carminha.)

A contrarreação à proposta de Sakamoto também foi previsível. Muita gente boa levou a brincadeira do jornalista a sério - passando um tanto ao largo do cerne da questão que é a violência contra a mulher e as sanções a isso pelos diversos mecanismos da sociedade, inclusive culturais - e se pôs a criticá-lo. Por exemplo, aqui, aqui, aqui - em uma rápida contagem usando o search do twitter pelas palavras "Sakamoto maria da penha", contei: contrários ao Sakamoto - 18 homens, 2 mulheres; favoráveis - 1 homem, 3 mulheres; neutros - 0 homem, 1 mulher. E um tweet que não consegui classificar se era a favor, contra ou neutro.

Um argumento mais elaborado contra a sugestão do Sakamoto foi feita por uma blogueira feminista.

A questão não é, como alguns disseram, de censura à novela (Sakamoto não pediu que a novela fosse tirada do ar, mas sim que o personagem fosse punido pelo seu ato). Nem à pasteurização dramática (ao contrário, ganharia em tonalidades ao mostrar que não é porque é mocinho que todas as atitudes são boas). (Alguns compararam a cena com outras violências - inclusive contra as mulheres - passadas na ficção que não causaram essa comoção da "patrulha do politicamente correto", há que se atentar para o fato de haver uma diferença fundamental - os outros casos são cenas em que a violência é retratada sob o ponto de vista *negativo*, é coisa de vilão, de mau caráter, de machista... no caso em discussão, pega exatamente por ser um dos mocinhos, conferindo à violência um caráter *positivo* de punição, a sensação é de que "Carminha mereceu apanhar", oras esse é exatamente o discurso machista: a mulher sempre merece apanhar.) Mas uma coisa é preciso ter claro. Há dados muito sólidos que indicam que novelas influenciam atitudes e comportamentos dos telespectadores.

Phillips 1982, sobre o efeito de suicídio em uma novela americana em 1977:
"In 1977, suicides, motor vehicles deaths, and nonfatal accidents all rose immediately following soap opera suicide stories. [...] These increases apparently occur because soap opera suicide stories trigger imitative suicides and suicide attempts, some of which are disguised as single-vehicle accidents."

Rogers et al. 1999, sobre o efeito de uma novela na Tanzania em 1993:
"The soap opera had strong behavioral effects on family planning adoption; it increased listeners' self-efficacy regarding family planning adoption and influenced listeners to talk with their spouses and peers about contraception."

Vaughman et al. 2000, sobre efeito da telenovela Apwe Piezi em Santa Lúcia entre 1996 e 1998.
"Apwe Piezi influenced listeners to increase their awareness of contraceptives, improve important attitudes about fidelity and family relations, and adopt family planning methods."

*Ward, 2002, em um estudo controlado de exposição televisiva de cenas de estereótipos sexuais:
"More frequent and more involved viewing were repeatedly associated with students' support of the sexual stereotypes surveyed. Similarly, women exposed to clips representing a particular sexual stereotype were more likely to endorse that notion than were women exposed to nonsexual content. Finally, both experimental exposure and aspects of regular viewing significantly predicted students' sexual attitudes and assumptions, even with demographics and previous sexual experiences controlled."

Não é nem perto de uma lista exaustiva, claro, mas é uma amostra de estudos sobre o efeito - positivo e negativo - em populações de diversas regiões, com diferentes condições de vida e em diferentes épocas da exposição às telenovelas.

Os dados são bastante claros sobre os efeitos. Não podemos usar o princípio Ricupero e pegar apenas o que favorece nossos pontos de vista. Novelas influenciam para o bem e para o mal. E isso traz responsabilidades para todos os envolvidos.

(Coincidentemente, abordei esse duplipensar televisivo no capítulo 8 de "Zero tom de verde".)

Disclêimer: O aviso de praxe - sou machista, mas não me orgulho disso.

*Upideite(10/out/2012): adido a esta data.
**Upideite(10/out/2012): Há uma discussão a respeito de se o tapa naquela situação seria caracterizado como motivado "por gênero", no entanto.

6 comentários:

André disse...

Acho que não interessa se o tapa foi motivado "por gênero" ou não, a LMP se aplica a qualquer agressão doméstica feita por um homem contra uma mulher.

none disse...

Salve, André,

A LMP especificamente é sobre violência contra mulher baseada no gênero.

"Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão BASEADA NO GÊNERO que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:"
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
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http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/7/docs/lei_maria_da_penha__conduta_baseada_no_genero.pdf
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Mas valeu pelo comentário e pela visita.

[]s,

Roberto Takata

André disse...

De fato a lei da letra é essa, mas qual juiz tem o poder de ler a mente e as intenções das pessoas? Na prática, um homem quando agride uma mulher de sua convivência fica sujeito à LMP, seja chefe com empregada, marido com mulher, pai com filha, e suas variantes. Pode ser que a intenção do legislador não fosse essa, e que algumas decisões sejam derrubadas em instâncias superiores, mas na prática o Tufão seria enquadrado se a Carminha o denunciasse.

André disse...

>> transpose(lei da letra)

none disse...

Salve, André,

Sim, há muita coisa que vai depender da interpretação do juiz.

E como tem muito juiz machista (teve alguns que escreveram barbaridades sobre a LMP) não sei como o caso seria tratado nas instâncias inferiores.

De todo modo, há essa questão de se aquele tapa pode ou não ser interpretado como baseado no gênero. Eu acho que pode, mas enfim...

[]s,

Roberto Takata

André disse...

Eu até acho que o tapa não deve ter sido por uma questão de gênero, caso a reação do Tufão fosse a mesma diante de um homem. O que eu acho complicado é uma lei que requeira a interpretação prévia da vontade do autor. Quando é para criar atenuantes ou agravantes vá lá, mas para determinar se a lei se aplica ou não eu acho muito problemático. Claro que na teoria, porque na prática, até onde eu já vi, tão enquadrando geral.